4/13/2025

Visão (Conto), de Aurélio Veríssimo de Bittencourt


VISÃO 

Geme a brisa e solta sentidas notas a rola nas selvas.

O céu traja seu manto azul, orlado de branco, e a lua desliza-se donosa; às vezes, ocultando seu brilho em meio às diáfanas nuvens, para depois resplender inda mais faceira.

Tudo é paz na Terra! Todos dormem!

Mas não: um vulto de branco além se mostra. Vejamo-lo.

* * *

É no cemitério — morada dos mortos.

De mausoléu marmóreo e majéstico, levanta-se um vulto trajando as alvas vestes do noivado.

O véu sedoso pende ao chão, e a grinalda de flores de laranja semelha um fulguroso diadema de rainha!

Natércia invejara aquele pé mimoso de sílfide, como o das antigas ninfas que estradavam só caminhos alastrados de mimosas flores.

Devoraria Berenice grande ciúme se vira aquele cabelo tão graciosamente penteado!

É bela, é majestosa!

* * *

Ei-la que entreabre os olhos!

Brilham com fulgor ignoto; olhos como estes fazem morrer de amor o coração mais descrente.

Oculta-te, Leonor, foge, Laura, que surge quem vos exceda!

Que moça e que olhos!

Eu curvo os joelhos, e admiro-a!

* * *

Deu dois passos e parou.

Volve os olhos por todos os ângulos deste tristonho sítio: ei-la que ajoelha-se e beija uma lápida que ali jaz só; e talvez só por ela lembrada.

Ela fala e suas palavras são doces e harmoniosas como os sons da harpa tangida outrora por Davi.

Adiantemo-nos a escutar.

* * *

Ela começa:

— Acorda, anjo, e escuta a voz de tua amada.

“Faz hoje um ano, bem me recordo! Nossos pais lembraram-se deste dia, e nossas almas foram hoje sufragadas. Ainda bem.

Chega o arrependimento e quiçá o remorso para eles.

Faz hoje um ano: consente que eu te venha visitar.

Eras jovem e eras belo. Apaixonei-me às veras pelo acarminado de teus lábios, pela doçura de tua voz, pela beleza de teu semblante, pela brandura de teu coração.

Tu também me amavas, e davas-me constantes provas de teu puro amor.

Éramos felizes.

Às vezes turbava-nos o sorrir a ideia de que meu pai tudo ignorava: mas logo a alegria tornava, reinava indizível contentamento.

Um dia... Dia para sempre nefasto, dia de amargores, dia de luto!”

 * * *

E a visão parou, para dar curso às lágrimas que anuviavam-lhe os olhos.

Enxugou-as depois, com a ponta do véu, e prosseguiu:

— Nossos virgens corações transbordavam de prazer: jurávamo-nos amor eterno e ardente e tomávamos como testemunhas as estrelas que cintilavam em meio do azulado céu.

“Nos extremos do amor, ao estalar do primeiro beijo... um punhal traspassou-me o peito, uma bala arrebatou-te o crânio!...  

“E era meu pai o autor de tal atentado. Antes houvera só eu sido a vítima e que tu gozásseis na terra delícias e prazer.

“Tombastes logo, e eu sobrevivi inda para ouvir de meu pai — encolerizado e sedento de sangue, como as feras da floresta — baldões pungitivos que eu não merecera!

“Ouvi-os e perdoei.

Na hora do passamento pedi-lhe a benção; negou-ma, voltando as costas.

Abracei-me à Santa Virgem... e expirei!

Faz hoje um ano... Vem dizer-me adeus!”

 * * *

E a voz calou-se e a visão sentou-se sobre a lápida.

E eis que surge um vulto daquela campa. A visão não se perturba.

É ele. Envolve-lhe o corpo um manto de veludo azul, tão grande como o usara em tempos já idos o sábio Salomão.

— Emma!

— Olímpio!

E os dois vultos abraçaram-se na efusão do júbilo, e o estalo de um beijo repercutiu.

 * * *

Ele fala: ouçamo-lo.

— O coração acordava-se aos primeiros toques do sentimento, e, ao ver-te, nele erigi-te um sacrário de adoração.

“Devotei-te culto ardente e dei-te as mostras todas do meu amor!

Teu pai foi cruel demais! Ceifou de chofre — bárbaro que foi — as esperanças que eu acalentara tão belas, e derrubou no hastil a flor mimosa que descerrava à brisa a corola.

Tu e eu fomos vítimas! Antes assim. Ao menos não sobrevivestes,  para, em braços de outrem, jurares o mesmo amor que a mim!”

E novo beijo estalou.

* * *

Voltei as costas para o Oriente e nas fraldas dos montes desenhava-se já o avermelhado do sol que se aproximava.

A natureza acordava!

Demorei-me a contemplar tão soberba paisagem. Quando procurei os dois amantes, os vi descer abraçados ao fundo da campa!

 * * *

Saí do cemitério profundamente impressionado!

Já então raiava o sol em toda a sua majestade e os pássaros entoavam sonoros os seus hinos matutinos.

Quando tive consciência de que já não demorava naquela pavorosa mansão, foi quando transpus o limiar da porta de minha casa.

Protesto que nunca mais irei passear ao cemitério, em horas mortas.  



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...