VISÃO
Geme a brisa e solta sentidas notas a rola nas
selvas.
O céu traja seu manto azul, orlado de branco,
e a lua desliza-se donosa; às vezes, ocultando seu brilho em meio às diáfanas
nuvens, para depois resplender inda mais faceira.
Tudo é paz na Terra! Todos dormem!
Mas não: um vulto de branco além se mostra.
Vejamo-lo.
É no cemitério — morada dos mortos.
De mausoléu marmóreo e majéstico, levanta-se
um vulto trajando as alvas vestes do noivado.
O véu sedoso pende ao chão, e a grinalda de
flores de laranja semelha um fulguroso diadema de rainha!
Natércia invejara aquele pé mimoso de sílfide,
como o das antigas ninfas que estradavam só caminhos alastrados de mimosas
flores.
Devoraria Berenice grande ciúme se vira aquele
cabelo tão graciosamente penteado!
É bela, é majestosa!
* * *
Ei-la que entreabre os olhos!
Brilham com fulgor ignoto; olhos como estes
fazem morrer de amor o coração mais descrente.
Oculta-te, Leonor, foge, Laura, que surge quem
vos exceda!
Que moça e que olhos!
Eu curvo os joelhos, e admiro-a!
* * *
Deu dois passos e parou.
Volve os olhos por todos os ângulos deste
tristonho sítio: ei-la que ajoelha-se e beija uma lápida que ali jaz só; e
talvez só por ela lembrada.
Ela fala e suas palavras são doces e
harmoniosas como os sons da harpa tangida outrora por Davi.
Adiantemo-nos a escutar.
* * *
Ela começa:
— Acorda, anjo, e escuta a voz de tua amada.
“Faz hoje um ano, bem me recordo! Nossos pais
lembraram-se deste dia, e nossas almas foram hoje sufragadas. Ainda bem.
Chega o arrependimento e quiçá o remorso para
eles.
Faz hoje um ano: consente que eu te venha
visitar.
Eras jovem e eras belo. Apaixonei-me às veras
pelo acarminado de teus lábios, pela doçura de tua voz, pela beleza de teu
semblante, pela brandura de teu coração.
Tu também me amavas, e davas-me constantes
provas de teu puro amor.
Éramos felizes.
Às vezes turbava-nos o sorrir a ideia de que
meu pai tudo ignorava: mas logo a alegria tornava, reinava indizível
contentamento.
Um dia... Dia para sempre nefasto, dia de
amargores, dia de luto!”
* * *
E a visão parou, para dar curso às lágrimas
que anuviavam-lhe os olhos.
Enxugou-as depois, com a ponta do véu, e
prosseguiu:
— Nossos virgens corações transbordavam de
prazer: jurávamo-nos amor eterno e ardente e tomávamos como testemunhas as
estrelas que cintilavam em meio do azulado céu.
“Nos extremos do amor, ao estalar do primeiro
beijo... um punhal traspassou-me o peito, uma bala arrebatou-te o crânio!...
“E era meu pai o autor de tal atentado. Antes
houvera só eu sido a vítima e que tu gozásseis na terra delícias e prazer.
“Tombastes logo, e eu sobrevivi inda para
ouvir de meu pai — encolerizado e sedento de sangue, como as feras da floresta
— baldões pungitivos que eu não merecera!
“Ouvi-os e perdoei.
Na hora do passamento pedi-lhe a benção;
negou-ma, voltando as costas.
Abracei-me à Santa Virgem... e expirei!
Faz hoje um ano... Vem dizer-me adeus!”
* * *
E a voz calou-se e a visão sentou-se sobre a
lápida.
E eis que surge um vulto daquela campa. A
visão não se perturba.
É ele. Envolve-lhe o corpo um manto de veludo
azul, tão grande como o usara em tempos já idos o sábio Salomão.
— Emma!
— Olímpio!
E os dois vultos abraçaram-se na efusão do
júbilo, e o estalo de um beijo repercutiu.
* * *
Ele fala: ouçamo-lo.
— O coração acordava-se aos primeiros toques
do sentimento, e, ao ver-te, nele erigi-te um sacrário de adoração.
“Devotei-te culto ardente e dei-te as mostras
todas do meu amor!
Teu pai foi cruel demais! Ceifou de chofre —
bárbaro que foi — as esperanças que eu acalentara tão belas, e derrubou no
hastil a flor mimosa que descerrava à brisa a corola.
Tu e eu fomos vítimas! Antes assim. Ao menos
não sobrevivestes, para, em braços de
outrem, jurares o mesmo amor que a mim!”
E novo beijo estalou.
* * *
Voltei as costas para o Oriente e nas fraldas
dos montes desenhava-se já o avermelhado do sol que se aproximava.
A natureza acordava!
Demorei-me a contemplar tão soberba paisagem.
Quando procurei os dois amantes, os vi descer abraçados ao fundo da campa!
* * *
Saí do cemitério profundamente impressionado!
Já então raiava o sol em toda a sua majestade
e os pássaros entoavam sonoros os seus hinos matutinos.
Quando tive consciência de que já não demorava
naquela pavorosa mansão, foi quando transpus o limiar da porta de minha casa.
Protesto que nunca mais irei passear ao
cemitério, em horas mortas.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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