SUPLÍCIO DA INÁCIA
No sino da Cadeia
acabara de soar a hora fatal, os reboantes sons vindo ferir tristemente os
ouvidos de milhares de pessoas, que alvoroçadamente fervilhavam na pequena
praça, para onde, desde o alvorecer, acorria de todos os recantos da cidade a
populaça em peso para assistir à execução da escrava Inácia.
A forca, alguns
esteios mal cruzados, tendo ao alto uma trave de espessura capaz de suportar o
peso a que a iam sujeitar, era duma construção brutalmente acabada. Desigual e
tosca, condizia com ofim que lhe destinavam.
Aquela
máquina ali erguida em nome da Justiça, com o instrumento da desafronta
pública, era o objeto da atenção de milhares de olhos. Até inocentes
criancinhas eram pela barbaria daqueles tempos obrigadas a assistir a tão tristes
e horripilantes cenas, mimoseando-as, depois, os seus pais com uma surra,
seguida do indispensável banho de “água de sal”, para que essas inconscientes,
com os corpinhos chagados, “não aprendessem” o que viram.
O tristonho badalejar
do sino anunciara já a chegada do momento ansioso e sofregamente esperado.
Chegara a ocasião de desafrontar o crime pelo crime, e a Justiça, folgando
imensamente por castigar a culpada, manda ler em voz alta a sentença pela qual
era a escrava Inácia condenada a expiar a pena última, e manda executar essa
sentença, sob os aplausos de uma sociedade que se acha crente de que ela
cumpriu o seu dever.
Sinos, cornetas,
tambores, tilintar de baionetas, numa triste, acabrunhadora e horrível
confusão, abafaram as últimas palavras que acabavam de ser lidas.
E a paciente, aos
impulsos do carrasco, subia ao tablado, sob o qual os religiosos irmãos da Misericórdia,
numa atitude piedosa, esperavam, com a sua redentora bandeira, o momento de com
as dobras do pavilhão da caridade cobrir a miseranda Inácia, se a corda
partisse.
Restabeleceu-se um
silêncio monótono e tristonho, que só foi novamente perturbado, quando num
grito forte e estridente as palavras Mono inocente! retumbaram por todo
o largo, ao mesmo tempo que o carrasco, destro e ligeiro, cavalgando na trave,
empurrou bruscamente, violentamente, a condenada, deixando-a suspensa na corda,
a espernear, as mãos atadas, os olhos desvairadamente esbugalhados para o céu,
a boca se estorcendo babosa e entreaberta, deixando ver os dentes que cessavam
de rilhar, como que lançando um sorriso de escárnio para todo aquele poviléu,
que ali acudira a presenciar os seus derradeiros momentos, tão terríveis e
cruciantes!
E no meio de tanta
gente que apinhava o largo, sedenta de curiosidade, só uma pessoa ria, só uma
única alma não se condoía da supliciada: era o carrasco, que com um riso alvar,
executava com as cordas, que lhe foram dadas pelos homens da lei, aquela sobre
cujos ombros pesava um crime nefando e ignominioso.
Estava feita a
justiça. E os juízes, retos, conspícuos e senhores duma provetidão nunca
desmentida, tinham tranquila a consciência nunca imaculada...
*
* *
A Inácia era escrava
da família Mafra, que a estimava imensuravelmente. Como cozinheira, que era da
casa, esmerava-se em evidenciar o seu apurado e fino paladar nos variegados
quitutes que preparava para reconfortar os estômagos das pessoas da nobre
família. Ninguém lhe levava a palma num bife de grelha ou de caçarola, nem
tampouco numa sopa; fosse esta de massas, de arroz ou cevadinha, ela tinha um
dom particular no savoir-faire. E quantas famílias, ao festejar um
aniversário, não iam pedir às Mafras que “emprestassem a Inácia para preparar
alguns pratos!”
A esses predicados
reunia a mulata uma beleza fascinante que provocava o ciúme entre os seus
parceiros, que lhe disputavam a amizade. Para um deles, o Fidélis, um preto
possante e de cara de poucos amigos, tivera ela um dia, pondo as mãos à cinta e
fazendo ressaltar bamboleantes os seus volumosos quadris, esta resposta:
— Iche, cacá! tu não te enxergas,
negro?! Não vês logo que eu não sou pro teu bico?! Era o que faltava: eu mi
limpá e infeitá pros teus beiços de roda de carro! Não te miras?!
O preto, enraivecido
com a resposta que a Inácia lhe dera, na presença dos seus parceiros, que o
trotearam grandemente, jurou-lhe que lhe poria abaixo as tripas, se ela
persistisse no inabalável intuito de não aceder aos seus rogos, ameaça esta
que, todavia, não impediu que ela continuasse firme no seu propósito de
resistência.
Numa tarde, chegada
que foi a hora do jantar, os senhores da Inácia sentaram-se à mesa, e o chefe
da família, tendo diante de si a sopeira em que fumegava cheirosa a sopa de
arroz amarelenta de gordura, dividiu-a pelas pessoas que tomavam parte na
refeição. Sorvido o gostoso prato, iam passar ao “cozido”, quando uma criança,
erguendo-se a chorar fortemente, as mãos sobre o ventre, revolucionou toda a
casa.
Acudiram logo
inquirido uns aos outros o que seria, quando em cada um dos jantantes se foram
manifestando as mesmas dores, agora seguidas de vômitos, que a todos iam prostrando.
Não restava dúvida, dizia o velho Mafra, estavam envenenados. Seria casual ou
proposital? No primeiro caso, não sabia como explicar. No segundo, outra pessoa
não se intrometia no serviço da cozinha, onde tudo estava entregue à Inácia,
cuja fidelidade nunca fora posta em dúvida.
O doutor Ramos, o
médico da casa, acudiu pressurosamente ao chamado, comprovando serem de
envenenamento todos os sintomas e que da sopa havia partido todo o mal.
Prestados que foram os mais prontos e zelosos cuidados aos doentes, socorridos
a tempo de escaparem da morte, um conselho de família foi organizado,
presidindo-o o médico.
A pobre Inácia,
aterrada, sem compreender o que queria dizer todo aquele movimento, explodiu
num choro estridulante, quando lhe perguntaram se ela pusera “alguma coisa” na
sopa.
— Está aí tudo, podem ver!
respondeu soluçando, com o desespero de quem tem o amor-próprio ofendido.
Examinada a caçarola
em que se cozinhara a sopa, qual não foi a surpresa causada àquela família, que
tanto idolatrava a mulata, quando o médico exclamou:
— Não resta a menor dúvida. Aqui
temos a prova no fundo da panela; é arsênico, e em grande quantidade!
— Malvada! miserável!
assassina! foram os gritos que caíram sobre a infeliz rapariga, gritos partidos
dos mesmos peitos de onde, minutos antes, partiram os que à inocentavam.
E lá vieram as autoridades
com os seus médicos, que procederam a um exame mais minucioso. Além dos médicos
legistas encontrarem as mesmas provas que o doutor Ramos, as autoridades,
rebuscando os recantos da cozinha, descobriram, numa lata em que a cozinheira
guardava temperos, um papelzinho contendo arsênico. Barafustaram ainda o baú de
couro da Inácia, que o franqueara sem o menor vexame, como quem tem a
consciência límpida e pura, e com surpresa de todos e estupefação da
desventurada escrava, foi encontrado no fundo da caixa, escondido num cantinho,
outro papelzinho com o mesmo veneno.
E que grande que foi
o alarido que reinou naquela casa, onde até então imperavam a santa paz e a
mais doce cordura! Os mais violentos impropérios foram atirados à rapariga,
que, de quando em vez, recobrando a razão, de joelhos no solo, os olhos fitos
para o céu, assim implorava a clemência do velho Mafra:
—Então meu sinhô mi
julga capaz de faze tamanho mal právossuncê mais minha sinhora e esses
inocentinhos? Tende piedade de mim!
— Foste tu mesmo,
malvada! quem mais seria? Olha a bruxa a mostrar uma carinha de santa! Cínica!
Infame! Miserável! Some-te desta casa, assassina! Deus te ajuste! Raios te
partam!
Foi sob este chuveiro
de insultos e pragas que dois policiais, brandindo os chanfalhos, arrastaram à
prisão a infeliz que, sem forças para mais protestar, nem lágrimas para chorar,
com o espírito obcecado pela acusação de que era alvo, seguiu completamente
bestializada, sem saber para onde a levavam.
O processo foi
sumaríssimo.
Feito debaixo de tão
irrefragáveis e esmagadoras provas, dentro de poucos dias era a Inácia
pronunciada e condenada à pena capital, confirmando o Tribunal da Relação a
sentença.
E ali, entre aquelas
quatro negras e úmidas paredes do cárcere, a escrava procurava conceber no seu
cérebro confuso quem, por espírito de malvadez, deitaria tão comprometedores
papeis naqueles lugares em que só ela dominava. Como pudera lá penetrar outra
pessoa, se ela não arredara o pé da cozinha, a não ser num instante em que
“dera um pulo” à quitanda do Enes, para comprar um tostão de massa de tomates?!
Ah! maldita sopa! Sim, maldita, porque fora ela a causa da sua perdição, do seu
torturamento, da sua desgraça, enfim!
A condenada, de gorda
e bonita que era, emagrecia, enfeava. Aqueles ondeados cabelos, que outrora ela
tanto se esmerava em pentear, colocando no rodilhado cocó o ramalhete de
cheirosas manjeronas e rosas de “todo o ano” ou do branco jasmim e do
rescendente trevo conjuntamente uma baunilha fresca e dum odor inebriante,
estavam agora tecidos, ruços, e embranqueciam. Os seus dentes, dum esmalte
brilhante, que, quando ela gargalhava no açougue, causavam alucinação e
despertavam o ciúme na rapaziada, achavam-se todos cobertos de um limo negro.
Aqueles olhos, reluzentes e castanhos, que fascinavam, jaziam amortecidos e
encovados. Enfim, tudo quanto constituía a beleza da Inácia e que fizera
pulular doidejantes tantos e tantos corações, tudo desaparecera em tão curto
espaço de tempo.
E quando a tiraram
daquele cárcere, a mandado da justiça, essa mesma porque ela esperava para
atestar a sua inocência e que, no entanto, afirmava ser ela a culpada,
deixou-se conduzir com uma brandura de que só os inocentes, os justos se
revestem.
O seu confessor
aconselhara lhe que apelasse para a Justiça Divina. E foi crente numa justiça
diversa daquela da terra que a Inácia se resignou, subindo ao patíbulo sem
soltar uma imprecação, a não ser as duas palavras que naquele grito de dor duma
alma imaculada e cheia de pureza, lhe saíram do íntimo do peito, na ocasião em
que o carrasco a trucidava vigorosamente em nome da Lei.
*
* *
Passaram-se uns oito
anos depois da execução da Inácia.
Sobre o deplorável
fato havia já caído o véu do esquecimento.
O padre Moreira,
capelão da família Mafra, foi numa manhã chamado às pressas para ministrar a
extrema-unção a um escravo dos Mafras, que se achava moribundo. Era o Fidélis,
aquele que ameaçara de por à mostra as tripas da infeliz supliciada.
Ficando a sós o
sacerdote e o enfermo, instantes depois saía aquele do quarto com o semblante
em que se refletia qualquer coisa de anormal, de horrível. Chegou-se ao velho
Mafra, pedindo-lhe o favor de penetrar no aposento do agonizante, que tinha
algo de importante a revelar-lhe.
— Então, Fidélis,
estás reconciliado com Deus?Que desejas de mim? entrou, perguntando, o senhor
do preto.
— Ah! meu sinhô, a
minh'alma 'stá perdida! Vou pro inferno.. Não foi Inácia quem botou veneno na
panela,fui eu!...
— Foste tu,
miserável?!
— Sim, fui eu, meu
sinhô!..
— Então tu, coração
de pedra, tiveste a coragem de ver morrer inocente aquela pobre mulher, quando
o envenenador, o culpado, o infame, o assassino, eras tu?!
— Sim, meu sinhô!...
Fiz aquilo prá mi vingá... Eu queria tanto bem prá aquela mulata, e ela tinha
tanta raiva de mim... Eu jurei que ela não seria mais de outro. Eu queria morrê
sem dizê nada, mas sinhô padre mandou eu pidi perdão prá meu sinhô...
— Mas como foi que
praticaste tamanha malvadez?
Então o preto pôs-se
a narrar compassadamente, em voz quase imperceptível, — pois que as agonias da
morte lhe iam prendendo a língua, — a campanha em que ele se empenhou para
“fazer mal”à mulata.
Quando ele se
desenganara de serem baldados os seus rogos para conquistar a amizade da
Inácia, começou a imaginar uma tramoia, que por qualquer forma comprometesse a
sua inimiga. E foi para ele um “feliz achado” num dia em que o senhor lhe
mandou deitar arsênico numa grande casa de cupim, que aparecera no teto da
varanda da sua vivenda. No papel, que continha não pequena quantidade do
violento veneno, o Fidélis viu o instrumento mais apropriado para a sua
vingança. Era uma vez a Inácia!
E ei-lo ufanoso a pôr
em prática os seus intentos vingativos. Deitou um pouquinho apenas no lugar em
que fizera habitação a destruidora formiga e foi para o seu aposento, onde,
trancado, entregou-se ardorosamente à execução do seu pérfido e sinistro plano.
Distribuiu o arsênico por três pequenos papéis, tendo a paciência de os
embrulhar como se da botica viessem, e aguardou que a sua parceira “arredasse
pé” da cozinha, o que não se fez demorar. A sorte, nesse dia, era propícia aos
intentos do perverso. Mal a cozinheira transpunha a porta da rua, a caminho da
quitanda, e ele já, de ponta de pé, ganhando a cozinha.
Colocou primeiramente
um dos embrulhos na lata de temperos; em seguida despejou o conteúdo de outro
na caçarola em que fervia a sopa, e ao passar pelo quarto onde se aboletava a
Inácia, e que ficava contiguo ao dele, espreitou para todos os lados, e, não
vendo pessoa alguma, dum pulo se achou junto ao baú de couro da desditosa
rapariga e depositou num cantinho dele o terceiro embrulho, o mesmo que fora
encontrado na busca dada pela polícia.
Terminada esta triste
e horrorosa revelação, o confidente, como quem tinha aliviado dos ombros um
enorme peso, suspirou e, fazendo um esforço, mais uma vez, pediu:
— Perdão, meu
sinhô!...
O Velho Mafra,
banhado num pranto comovedor, fez comunicar o fato às autoridades, que correram
a ouvir a confirmação da própria boca do moribundo.
E quando todos os
membros da família, que foram à presença do expirante conceder-lhe o perdão
implorado, deixaram o quarto, onde já reinava fortemente o cheiro da morte, o
padre Moreira tornou a achar-se junto do leito do Fidélis e lançou a absolvição
à alma daquele homem, que ao expirar, comprimindo angústias lacerantes, se
revelara aos olhos daquela família e dos homens da lei o autor dum crime
hediondo, ignominioso, pelo qual fora injustamente supliciada uma mulher, cujas
últimas palavras, antes de cair vítima do braço da justiça, foram: Morro
inocente!
* * *
Ao divulgar-se na
cidade a notícia do erro judiciário, foi uma consternação geral.
O nome da condenada
era pronunciado por todas as bocas como o de uma santa. Missas em número
considerável foram mandadas celebrar por alma da que injustamente padecera a pena
de pagar o crime pelo crime.
Toda a sorte de
penitências vieram à cena com o propósito de desagravar a alma pura e límpida
da Inácia, que, na hora extrema, se soubera revestir de tamanha resignação. E
de todas elas a que resultou mais tocante, mais excelsamente linda e mais
grandemente admirável foi a que se entregou um dos juízes signatários da
sentença que mandava supliciar a desafortunada.
O juiz, com a alma
possuída dum grande terror, abandonou o seu posto de alta hierarquia na
magistratura, e foi residir solitariamente na obscuridade, na pequena povoação
de São Miguel. Aí, nesse lugarejo, tez construir uma capelinha, onde passava
horas e horas a rezar, pedindo perdão para a sua culpa, o erro em que caíra
pondo o seu nome sob uma sentença que condenava uma inocente.
Foi lá, numa casinha,
defronte daquela ermida caiada, muito alva, como símbolo da Paz e da Inocência,
que ele morreu.
Chegada a hora fatal,
apenas um pouco de raciocínio lhe restava ainda, mas era o bastante para que,
fazendo abrir as janelas, e girando a encanecida cabeça para a capelinha, que
ele edificara com tamanho devotamento, a contemplasse no último olhar e para
que o seu derradeiro suspiro lhe levasse a alma, alma dum justo que, errando
uma vez, não trepidara em carpir as maiores angústias para se reconciliar com a
consciência, naquele momento frágil, desfalecida, esvaída...
E com tudo o que os
seus olhos podiam alcançar, o juiz arrependido expirava contemplando a sua
igrejinha, cujos sinos agora plangiam lugubremente, tristonhamente.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025
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