4/13/2025

Soares Bulcão (Conto), de A cruz das almas


A CRUZ DAS ALMAS

Lembro-me que a vi, pendida, a balouçar ao sopro do vento.

Nas rochas escarpadas das serranias, na curva da vereda tortuosa, ela enfrenta como sentinela muda a sombria abertura da gruta, vedada há anos às pegadas humanas.

Espectro erguido na pedra tosca, impávido, ouve o contínuo gemer abafado e lúgubre das vítimas, cuja ossada santelma o escuro insondável da pavorosa gruta, impávido!

Ímpia mão de bárbaro algoz fincou-a ali, enquanto o corpo da vítima rolava como massa inerte sobre o pavimento escombroso e frígido da caverna.

E o último ai do moribundo ecoou triste nas abas das montanhas como o rolar das pedras sobre os lajedos da serra.

Uma nota plangente ressoou no coração calmo dos tímidos habitantes esparsos, como o pressentimento de uma tragédia futura.

Principiou o luto e o coração malévolo de homem, transformado em fera, riu-se do primeiro cadáver insepulto.

O assassino, o pacato e medroso caboclinho de outrora, levando a destra ao alto da cruz fresca de aroeira, jurou o extermínio da família inimiga.

O seu noviciado fora terrível e batizou a cruz premeditada com o sangue ainda tépido do primeiro assassinado, e, enquanto o lamento do agonizante confundia-se com o murmúrio monótono da cachoeira, com a arma homicida escreveu, na face espelhenta de aroeira, o nome do infeliz.

Ainda o cadáver jazia abandonado entre os cardos ressequidos e já a segunda vítima caía ao estampido do bacamarte.

E principiou o morticínio.

Foi grande, foi terrível; nas frias lajes da caverna amontoavam-se cadáveres e na face plúmbea da aroeira confundiam-se os nomes.

Muitas tinham sido as vítimas imoladas ao instinto de José Gabriel.

A justiça ultrajada transbordou, e o assassino foi preso...

Já Fernando de Noronha guardava mais um celerado, e, já nas margens do sinuoso Mundaú, cenário fatal da tragédia hedionda, ainda confundiam-se o dorido queixume da orfandade e viuvez e o murmúrio saudosamente triste da cachoeira.

Passaram-se anos, a cruz enegrecida como o coração do facínora que a plantou, impávida, ouve o gemer abafado e sentido das almas penantes, impávida!

A gruta tomou o nome da primeira vítima, e, na quietude das noites luarentas, um sussurro prolongado, como saído de seu antro, repercute lugubremente nas sinuosidades da serra.

Na escuridão das noites, ninguém ousa passar ali; dizem que uma luz bruxuleia ao pé da cruz e ainda hoje, por isso, chamam-lhe a “cruz das almas”.

Eu a vi, pendida, a balouçar ao sopro do vento.

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