RUÍNAS
Alquebrada de velhice, a casa mal se firma agora nos esteios oblíquos e comidos
de cupim. Vergastada dos temporais e corroídas polegada a polegada pela ação
erosiva do tempo, as paredes raros vestígios mostram da última mão de cal
levada vinte anos antes.
As
ripas, enxadrezadas com os paus a pique, exibem por toda a parte sua ossatura
carunchosa. É um cadáver de casa, uma carcaça decomposta, já mostrando as
costelas descarnadas. Ao lado, onde foram as tulhas, vê-se hoje um montão de
escombros; e, no eirado, para onde se abre a porta principal, cresce o capim
desafogadamente. Contrastando com esse ar de morte e abandono e dando uma nota
ridente de vida ao vetusto pardieiro, sobe dos fundos uma espiral de fumo azul,
que se desfibra lentamente no espaço.
Aí
moram o velho Próspero e siá Marciana, pais do Américo. Já rumando os oitenta
ou noventa anos (nem sei quantos!) dão exemplo de serena velhice, sem amarguras
contra a vida, nem o pesar de deixá-la. Enquanto pôde, o velho trabalhou. Foi
fazendeiro, teve grandes rebanhos de gado e extensos alqueires de plantações;
mas, por ser bom e confiante, o que tinha foi-se rapidamente, quando sua
atividade começou a declinar e ao peso dos gastos não podia opor equivalente
receita. Ingratidões e abusos de confiança levaram-lhe até o último vintém; o
que porém se lhe salvou do soçobro, e à sua companheira, o único e precioso
tesouro inconsumptível de que não os puderam esbulhar, foi a branda alegria
d’alma que os acompanhou em todas as vicissitudes do passado, e que dá à
velhice de
A
ambos uns toques de mocidade vivaz, como festões de madressilvas alastrando
sobre ruínas. Paupérrimos, a própria vivenda em que moram é alheia — pertence a
um irmão mais moço de Próspero, fazendeiro “desempenhado”, e tão sovina que, o
ceder-lhes por favor essa moradia, torna a todos boquiabertos. Os velhos nunca
se queixam; mas sei que o proprietário, o major Claudino, não os deixa em
completo sossego. É uns dez anos mais moço que Próspero. Foi este quem lhe deu
a mão para começar a vida e continuá-la; e também foi Claudino quem abocanhou
os últimos restos de sua fortuna, valendo-se de contas pouco compreensíveis e
de juros misteriosamente intricados. Nessa época, como quisesse expulsar os
velhos da fazenda, levantou essa descaridade tal clamor entre os conhecidos e
parentes, que Claudino cedeu, a contragosto, deixando-lhes o usufruto da casa e
de algumas braças de terreno. “Estão velhos, pouco hão de durar”, dizia para
conformar-se. Mas os velhos resistem valentemente aos embates dos anos e
Claudino com isso impacienta-se, diz impertinências, reclama contra o
descalabro crescente de tudo e quer levá-los para sua própria casa. Próspero
limita-se a replicar sorrindo e sem levar a mal: “Tem paciência, mano! Espera
mais um pouco. Para o ano eu e a prima já estamos pescando mandis no rio da
eternidade…” (A “prima” é siá Marciana. Dá-lhe tal tratamento, por terem esse
parentesco.)
Enquanto
esperam, pescam mandis no rio que passa aos fundos da fazenda. Tanto basta para
esquecerem os anos e as enfermidades. Toda a tarde, Próspero, com o rosto
encoberto sob as largas abas de um chapéu achamboado, entra em sua velhíssima
canoa de peroba, que é preciso tentear com cuidados infinitos para não fazer
água, e vai distribuindo aqui e ali, pelas duas margens, anzóis de espera e
laços de capivara; e, sobre a madrugada seguinte, lá volta a correr os mesmos
sítios, a dar balanço nos rendimentos da noite… E longe em longe acontece
acabar de matar no anzol, a pontoadas de chuço, um enorme dourado, que
alegremente traz às costas, ladeira acima, e que, resfolegando, num gesto
triunfal, atira pesadamente sobre a mesa de jantar.
Durante
o dia ele, mais a velha, radicam-se à sombra dum ingazeiro, cujas ramarias
espalhadas protegem do sol, e pescam no remanso que embaixo faz o rio e que
transformaram em ceveiro. E vendo-os ali juntinhos, as varas paralelas
curvando-se ao peso das chumbadas, cotovelo contra cotovelo, a gente adivinha
que os dois irão juntinhos para a cova, quando algum deles assentar de zarpar
para as trevas eternas, que talvez já estejam tão próximas como a primeira
curva do rio.
O
velho Próspero foi caçador apaixonado. Quando lhe peço que me conte trechos de
sua vida vêm estes, as mais das vezes, misturados com episódios de caça; o primeiro
parto de siá Marciana, ligava-se intimamente com a aventura de uma célebre
Pirata, cadelinha onceira; quando lhes morreu o segundo filho, estava, havia
três dias, batendo mato bravo, atrás duma bandeira de queixadas; e, ao voltar a
casa, carregado de magníficos despojos, seus gritos de triunfo morreram-lhe na
garganta, ante o cadaverzinho exposto numa mesa, entre quatro velas altas.
Agora que lhe falta resistência para varar brenhas e desentocar onças, canaliza
o seu furor venatório contra os peixes, contentando-se, quanto a caças de pelo,
em armar às capivaras que lhe destroçam o arrozal.
Invejo-lhe
a mania da pesca. Escolheu-a bem para passatempo da velhice, pois não depende
de agudeza de vista, nem de músculos reforçados. Seus braços de canoeiro prático,
embora trêmulos, ainda sabem o jeito de “temperar” uma canoa, sem excessiva
despesa muscular. Lastimável é o escritor que, ao se dobarem os anos da segunda
metade da vida, nota em si incapacidade crescente para obter a tensão
espiritual que engendra as obras-primas; ao meticuloso sábio que esmiúça ao
microscópio os elementos invisíveis das células, deve ir-se-lhe, com o acume da
visão, o gosto pela vida. Ai dos que, em sobrevindo o momento, não estiverem
aparelhados para empunhar a filosófica vara de pescar do velho Próspero! E isso
o torna feliz. Tiraram-lhe a fortuna — tomou do anzol; arrebatem-lhe o anzol,
inda resta o rosário; de modo que, sua bondosa simplicidade, se lhe perdeu a
abastança, granjeou-lhe a conformidade na desgraça. Rememora os antigos anos de
fartura, compraz-se às vezes em narrá-los, como um viajante relata as
maravilhas que viu no decurso da viagem. Essas recordações têm para ele o doce
ressaibo das boas coisas gozadas, sem que lhes sinta amargor por serem coisas
idas.
Contou-me
um dia que, no tempo de seu pai vivo, havia tantos escravos na fazenda, que
davam de comer à molecada num cocho de que ainda no eirado restam vestígios.
Despejavam ali dentro tachadas de canjiquinha e com uma buzina convocavam a
miuçalha esparsa. De todas as senzalas, da casa, da horta, do pasto, negrinhos
acudiam correndo, como uma horda de capetinhas nus. E as mãos avançavam
sofregamente para a comida. “Ficava estivado de negrinho, tudo pelado”,
explicou Próspero em sua linguagem pitoresca, acentuando a frase com um gesto
para indicar a fila ininterrupta de petizes, de uma e outra banda do cocho. Por
morte dos pais herdara bons lotes de culturas; veio depois a legítima da
“prima”, o que ainda seu trabalho acresceu, nos anos felizes da mocidade. Por
essa época povoavam-lhe a casa parentes e amigos. Até parecia hotel. Pessoas
havia que lá passavam meses, a ares ou para caçar. Um tal Leonardo, comido de
sífilis, permaneceu na fazenda mais de ano, em tratamento. Ao restabelecer-se,
Próspero emprestou-lhe dinheiro para comprar um sítio. O pobre do Leonardo! se
não tinha recursos para tocar a vida! Com esse princípio arranjou-a tão bem,
que hoje é homem de largas posses. É verdade que os esqueceu e que, quando os
cruza, mal bole no chapéu; mas anda tão atarefado, sua camaradagem é tão
grande, que na cabeça, cheia de preocupações, não sobra espaço para cortesias
fúteis. Negou-lhes uma vez auxílio — não por ingratidão, e sim porque o muito
serviço põe a gente assim azaranzado e de mau humor, e a ele, coitado, serviço
não faltava. O pobrezinho do Leonardo! Como a velha se lembrava ainda dele
quase cego, babando pus, com a boca cheia de tumores que mal o deixavam
alimentar-se, tanto que era preciso descerem-lhe leite à garganta por um
canudinho de bambu! E agarrava-se a siá Marciana, chamando-lhe mamãe, e
chorando, num retrocesso à infância, quase imbecilizado pela moléstia.
Entre
outras passagens também contou-me que estanciara na fazenda umas semanas certo
médico português. O Dr. Filipe, homem muito divertido, e a cuja figura evocada
os velhos sorriam um para o outro. Sem clínica, vivia a correr terras, de
sapatões ferrados e roupa no fio… Nem recursos tinha para viajar a cavalo; ia
de lugar em lugar com a malinha às costas e bastão na mão, e por isso na cidade
puseram-lhe a alcunha de Dr. De a Pé.
Que maldade, coitado! Porem apelido num homem infeliz e sensível, que, ao falar
na “terra”, marejavam-se-lhe os olhos, de saudades da mãe e da irmã, que lá
ficaram tão longe, sem amparo, da outra banda do mar.
Mas
os velhos sorriam, lembrados de certo episódio malicioso. Querendo aprender a
caçar, esse bom Dr. Filipe mal sabia pegar numa espingarda. Deu ali seus
primeiros tiros, e, a cada um, que assinalava um malogro, escapava-lhe um má-raios de desapontamento. Próspero, porém,
não desanimava com o aluno, e repisava como estribilho: “Ainda espero ver um
dia o doutor matar uma capivara!”. Afinal esse dia chegou. A mata virgem
alastrava até tão perto da fazenda, que à tarde urus e inhambus vinham mariscar
no terreiro, confraternizando com as galinhas e marrecos da criação doméstica.
As capivaras, então, eram uma praga. Uma tarde foi visto um casal delas à beira
do açude, ao fundo da horta. “Pegue na espingarda, Dr. Filipe, e venha!”, disse
o velho. Foram até o açude. À sua chegada os grandes roedores mergulharam
prontamente na água negra. Certo momento apareceu um focinho à tona, bem perto
do Dr. Filipe. Ele atira à queima-bucha: “Má-raios!”. Outro tiro — por um
milagre acerta. A cachorrada encarrega-se de tirar d’água o animal ferido, e
sumariamente o acaba às dentadas. O doutor ficou radiante da façanha. Então o
velho Próspero propôs-lhe uma questãozinha magana: “Doutor, o senhor, que é
médico, entende muito de organismos vivos; por isso, diga-me se esta capivara é
macha ou fêmea”. “Oh! nada mais simples!”, exclamou o doutor, ofendido pela
insignificância da consulta. E olha o bicho despreocupado, depois examina-o
atento, e concentra-se na análise e submete-o a uma inspeção conscienciosa e
científica… Por fim desiste, no auge da perplexidade. VIDA OCIOSA Então
Próspero solta uma casquinada: “É macha, doutor! Olha o focinho… Capivara macha
tem um calo no nariz”. E os velhos riam-se, à evocação da descocha do Dr. De a
Pé, por levar o formidável quinau.
Chegada
a uma recordação como esta, mistura de antigas grandezas com reminiscências de
velhas caçadas, a retentiva do velho transvia-se do fio direito da narração, e,
esquecido do mais, deleita-se em memorar proezas de caçador. E é sobremaneira
agradável ouvi-las, principalmente em torno de um brasido, em noite frígida. Se
o tempo é desabrido, e as chuvas fazem das estradas extensos lameirais,
reúnem-se nesses serões mais pessoas na velha fazenda, viandantes colhidos pelo
temporal e que, ao abrigo de suas telhas hospitaleiras esperam estiagem
propícia para a continuação da jornada. E quando acerta serem caçadores esses
viajantes encharcados, ainda aumenta o prazer da palestra, pois cada um desfia
o mais interessante de suas recordações. Quanto a siá Marciana, essa limita-se
a comentar as narrativas do “primo” com as suas impressões pessoais de esposa
extremosa: as angústias das longas esperas, o olhar pela janela verrumando o
oceano das copadas que se derramavam em torno, ou sondando as últimas curvas
das estradas, a medir o tempo com as pulsações do coração… Como tardavam os
caçadores! Prouvesse a Deus não houvesse acontecido uma desgraça! E quando
Próspero voltava, que júbilo ao vê-lo são e salvo, e ao apreciar, como
entendedora, o porte da suçuarana que dizimara a matilha, ou o número de
queixadas abatidos no bando!
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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