4/04/2025

Ruínas (Conto), de Godofredo Rangel

 

RUÍNAS

Alquebrada de velhice, a casa mal se firma agora nos esteios oblíquos e comidos de cupim. Vergastada dos temporais e corroídas polegada a polegada pela ação erosiva do tempo, as paredes raros vestígios mostram da última mão de cal levada vinte anos antes.

As ripas, enxadrezadas com os paus a pique, exibem por toda a parte sua ossatura carunchosa. É um cadáver de casa, uma carcaça decomposta, já mostrando as costelas descarnadas. Ao lado, onde foram as tulhas, vê-se hoje um montão de escombros; e, no eirado, para onde se abre a porta principal, cresce o capim desafogadamente. Contrastando com esse ar de morte e abandono e dando uma nota ridente de vida ao vetusto pardieiro, sobe dos fundos uma espiral de fumo azul, que se desfibra lentamente no espaço.

Aí moram o velho Próspero e siá Marciana, pais do Américo. Já rumando os oitenta ou noventa anos (nem sei quantos!) dão exemplo de serena velhice, sem amarguras contra a vida, nem o pesar de deixá-la. Enquanto pôde, o velho trabalhou. Foi fazendeiro, teve grandes rebanhos de gado e extensos alqueires de plantações; mas, por ser bom e confiante, o que tinha foi-se rapidamente, quando sua atividade começou a declinar e ao peso dos gastos não podia opor equivalente receita. Ingratidões e abusos de confiança levaram-lhe até o último vintém; o que porém se lhe salvou do soçobro, e à sua companheira, o único e precioso tesouro inconsumptível de que não os puderam esbulhar, foi a branda alegria d’alma que os acompanhou em todas as vicissitudes do passado, e que dá à velhice de

A ambos uns toques de mocidade vivaz, como festões de madressilvas alastrando sobre ruínas. Paupérrimos, a própria vivenda em que moram é alheia — pertence a um irmão mais moço de Próspero, fazendeiro “desempenhado”, e tão sovina que, o ceder-lhes por favor essa moradia, torna a todos boquiabertos. Os velhos nunca se queixam; mas sei que o proprietário, o major Claudino, não os deixa em completo sossego. É uns dez anos mais moço que Próspero. Foi este quem lhe deu a mão para começar a vida e continuá-la; e também foi Claudino quem abocanhou os últimos restos de sua fortuna, valendo-se de contas pouco compreensíveis e de juros misteriosamente intricados. Nessa época, como quisesse expulsar os velhos da fazenda, levantou essa descaridade tal clamor entre os conhecidos e parentes, que Claudino cedeu, a contragosto, deixando-lhes o usufruto da casa e de algumas braças de terreno. “Estão velhos, pouco hão de durar”, dizia para conformar-se. Mas os velhos resistem valentemente aos embates dos anos e Claudino com isso impacienta-se, diz impertinências, reclama contra o descalabro crescente de tudo e quer levá-los para sua própria casa. Próspero limita-se a replicar sorrindo e sem levar a mal: “Tem paciência, mano! Espera mais um pouco. Para o ano eu e a prima já estamos pescando mandis no rio da eternidade…” (A “prima” é siá Marciana. Dá-lhe tal tratamento, por terem esse parentesco.)

Enquanto esperam, pescam mandis no rio que passa aos fundos da fazenda. Tanto basta para esquecerem os anos e as enfermidades. Toda a tarde, Próspero, com o rosto encoberto sob as largas abas de um chapéu achamboado, entra em sua velhíssima canoa de peroba, que é preciso tentear com cuidados infinitos para não fazer água, e vai distribuindo aqui e ali, pelas duas margens, anzóis de espera e laços de capivara; e, sobre a madrugada seguinte, lá volta a correr os mesmos sítios, a dar balanço nos rendimentos da noite… E longe em longe acontece acabar de matar no anzol, a pontoadas de chuço, um enorme dourado, que alegremente traz às costas, ladeira acima, e que, resfolegando, num gesto triunfal, atira pesadamente sobre a mesa de jantar.

Durante o dia ele, mais a velha, radicam-se à sombra dum ingazeiro, cujas ramarias espalhadas protegem do sol, e pescam no remanso que embaixo faz o rio e que transformaram em ceveiro. E vendo-os ali juntinhos, as varas paralelas curvando-se ao peso das chumbadas, cotovelo contra cotovelo, a gente adivinha que os dois irão juntinhos para a cova, quando algum deles assentar de zarpar para as trevas eternas, que talvez já estejam tão próximas como a primeira curva do rio.

O velho Próspero foi caçador apaixonado. Quando lhe peço que me conte trechos de sua vida vêm estes, as mais das vezes, misturados com episódios de caça; o primeiro parto de siá Marciana, ligava-se intimamente com a aventura de uma célebre Pirata, cadelinha onceira; quando lhes morreu o segundo filho, estava, havia três dias, batendo mato bravo, atrás duma bandeira de queixadas; e, ao voltar a casa, carregado de magníficos despojos, seus gritos de triunfo morreram-lhe na garganta, ante o cadaverzinho exposto numa mesa, entre quatro velas altas. Agora que lhe falta resistência para varar brenhas e desentocar onças, canaliza o seu furor venatório contra os peixes, contentando-se, quanto a caças de pelo, em armar às capivaras que lhe destroçam o arrozal.

Invejo-lhe a mania da pesca. Escolheu-a bem para passatempo da velhice, pois não depende de agudeza de vista, nem de músculos reforçados. Seus braços de canoeiro prático, embora trêmulos, ainda sabem o jeito de “temperar” uma canoa, sem excessiva despesa muscular. Lastimável é o escritor que, ao se dobarem os anos da segunda metade da vida, nota em si incapacidade crescente para obter a tensão espiritual que engendra as obras-primas; ao meticuloso sábio que esmiúça ao microscópio os elementos invisíveis das células, deve ir-se-lhe, com o acume da visão, o gosto pela vida. Ai dos que, em sobrevindo o momento, não estiverem aparelhados para empunhar a filosófica vara de pescar do velho Próspero! E isso o torna feliz. Tiraram-lhe a fortuna — tomou do anzol; arrebatem-lhe o anzol, inda resta o rosário; de modo que, sua bondosa simplicidade, se lhe perdeu a abastança, granjeou-lhe a conformidade na desgraça. Rememora os antigos anos de fartura, compraz-se às vezes em narrá-los, como um viajante relata as maravilhas que viu no decurso da viagem. Essas recordações têm para ele o doce ressaibo das boas coisas gozadas, sem que lhes sinta amargor por serem coisas idas.

Contou-me um dia que, no tempo de seu pai vivo, havia tantos escravos na fazenda, que davam de comer à molecada num cocho de que ainda no eirado restam vestígios. Despejavam ali dentro tachadas de canjiquinha e com uma buzina convocavam a miuçalha esparsa. De todas as senzalas, da casa, da horta, do pasto, negrinhos acudiam correndo, como uma horda de capetinhas nus. E as mãos avançavam sofregamente para a comida. “Ficava estivado de negrinho, tudo pelado”, explicou Próspero em sua linguagem pitoresca, acentuando a frase com um gesto para indicar a fila ininterrupta de petizes, de uma e outra banda do cocho. Por morte dos pais herdara bons lotes de culturas; veio depois a legítima da “prima”, o que ainda seu trabalho acresceu, nos anos felizes da mocidade. Por essa época povoavam-lhe a casa parentes e amigos. Até parecia hotel. Pessoas havia que lá passavam meses, a ares ou para caçar. Um tal Leonardo, comido de sífilis, permaneceu na fazenda mais de ano, em tratamento. Ao restabelecer-se, Próspero emprestou-lhe dinheiro para comprar um sítio. O pobre do Leonardo! se não tinha recursos para tocar a vida! Com esse princípio arranjou-a tão bem, que hoje é homem de largas posses. É verdade que os esqueceu e que, quando os cruza, mal bole no chapéu; mas anda tão atarefado, sua camaradagem é tão grande, que na cabeça, cheia de preocupações, não sobra espaço para cortesias fúteis. Negou-lhes uma vez auxílio — não por ingratidão, e sim porque o muito serviço põe a gente assim azaranzado e de mau humor, e a ele, coitado, serviço não faltava. O pobrezinho do Leonardo! Como a velha se lembrava ainda dele quase cego, babando pus, com a boca cheia de tumores que mal o deixavam alimentar-se, tanto que era preciso descerem-lhe leite à garganta por um canudinho de bambu! E agarrava-se a siá Marciana, chamando-lhe mamãe, e chorando, num retrocesso à infância, quase imbecilizado pela moléstia.

Entre outras passagens também contou-me que estanciara na fazenda umas semanas certo médico português. O Dr. Filipe, homem muito divertido, e a cuja figura evocada os velhos sorriam um para o outro. Sem clínica, vivia a correr terras, de sapatões ferrados e roupa no fio… Nem recursos tinha para viajar a cavalo; ia de lugar em lugar com a malinha às costas e bastão na mão, e por isso na cidade puseram-lhe a alcunha de Dr. De a Pé. Que maldade, coitado! Porem apelido num homem infeliz e sensível, que, ao falar na “terra”, marejavam-se-lhe os olhos, de saudades da mãe e da irmã, que lá ficaram tão longe, sem amparo, da outra banda do mar.

Mas os velhos sorriam, lembrados de certo episódio malicioso. Querendo aprender a caçar, esse bom Dr. Filipe mal sabia pegar numa espingarda. Deu ali seus primeiros tiros, e, a cada um, que assinalava um malogro, escapava-lhe um má-raios de desapontamento. Próspero, porém, não desanimava com o aluno, e repisava como estribilho: “Ainda espero ver um dia o doutor matar uma capivara!”. Afinal esse dia chegou. A mata virgem alastrava até tão perto da fazenda, que à tarde urus e inhambus vinham mariscar no terreiro, confraternizando com as galinhas e marrecos da criação doméstica. As capivaras, então, eram uma praga. Uma tarde foi visto um casal delas à beira do açude, ao fundo da horta. “Pegue na espingarda, Dr. Filipe, e venha!”, disse o velho. Foram até o açude. À sua chegada os grandes roedores mergulharam prontamente na água negra. Certo momento apareceu um focinho à tona, bem perto do Dr. Filipe. Ele atira à queima-bucha: “Má-raios!”. Outro tiro — por um milagre acerta. A cachorrada encarrega-se de tirar d’água o animal ferido, e sumariamente o acaba às dentadas. O doutor ficou radiante da façanha. Então o velho Próspero propôs-lhe uma questãozinha magana: “Doutor, o senhor, que é médico, entende muito de organismos vivos; por isso, diga-me se esta capivara é macha ou fêmea”. “Oh! nada mais simples!”, exclamou o doutor, ofendido pela insignificância da consulta. E olha o bicho despreocupado, depois examina-o atento, e concentra-se na análise e submete-o a uma inspeção conscienciosa e científica… Por fim desiste, no auge da perplexidade. VIDA OCIOSA Então Próspero solta uma casquinada: “É macha, doutor! Olha o focinho… Capivara macha tem um calo no nariz”. E os velhos riam-se, à evocação da descocha do Dr. De a Pé, por levar o formidável quinau.

Chegada a uma recordação como esta, mistura de antigas grandezas com reminiscências de velhas caçadas, a retentiva do velho transvia-se do fio direito da narração, e, esquecido do mais, deleita-se em memorar proezas de caçador. E é sobremaneira agradável ouvi-las, principalmente em torno de um brasido, em noite frígida. Se o tempo é desabrido, e as chuvas fazem das estradas extensos lameirais, reúnem-se nesses serões mais pessoas na velha fazenda, viandantes colhidos pelo temporal e que, ao abrigo de suas telhas hospitaleiras esperam estiagem propícia para a continuação da jornada. E quando acerta serem caçadores esses viajantes encharcados, ainda aumenta o prazer da palestra, pois cada um desfia o mais interessante de suas recordações. Quanto a siá Marciana, essa limita-se a comentar as narrativas do “primo” com as suas impressões pessoais de esposa extremosa: as angústias das longas esperas, o olhar pela janela verrumando o oceano das copadas que se derramavam em torno, ou sondando as últimas curvas das estradas, a medir o tempo com as pulsações do coração… Como tardavam os caçadores! Prouvesse a Deus não houvesse acontecido uma desgraça! E quando Próspero voltava, que júbilo ao vê-lo são e salvo, e ao apreciar, como entendedora, o porte da suçuarana que dizimara a matilha, ou o número de queixadas abatidos no bando!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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