4/12/2025

Reino Encantado da Pedra Bonita (Conto), de Francisco Augusto Pereira da Costa

 

REINO ENCANTADO DA PEDRA BONITA

Dom Sebastião, o Desejado, é o décimo sexto rei de Portugal. Foi declarado maior em 1568. A educação fizera dele um exaltado, talvez um fanático. Sonhava combater os inimigos da fé, e a conquista das cidades da África abandonadas por seu avô. Em 1573 levou a efeito a primeira tentativa, mas não conseguiu o que esperava. Em 1578, cinco anos depois, o imperador do Marrocos viu-se destronado e pediu auxilio ao rei de Portugal para reconquistar o poder.

Foi ai que Dom Sebastião, julgando chegado o momento que tanto esperava, passou-se para a África com um exército mal organizado e mal dirigido, no dizer dos historiadores. Logo depois, empenhou-se no combate de Alcácer Quibir e desapareceu no fragor das armas. Desapareceu para sempre.

O povo português não se convenceu da morte de Dom Sebastião. Esperou-o ao longo dos dias, dos meses, dos anos. E o que é notável, através dos séculos. Não faltaram impostores para se aproveitar dessa situação. Alguns deles ficaram na História com os nomes de Rei de Penamacor, de Rei da Ericeira, de Pasteleiro de Madrigal e Marco Túlio Catironi, o Calabrês. Todos foram desmascarados, alguns foram punidos.

Como se vai ler, o delicioso "sebastianismo" dos portugueses repercutiu tragicamente no Brasil, dois séculos e meio depois.

* * *

De meados para fins de 1819, instalou-se na Serra do Rodeador, no Bonito, um fanático ou embusteiro de nome Silvestre José dos Santos. Reuniu logo grande séquito e pregou ao povo a ressurreição de el-rei Dom Sebastião, prometendo-lhe a partilha dos seus grandes tesouros; e para ainda mais impor-se à gente que o acompanhava, explorou o espírito religioso, celebrando solenidades com um cerimonial particular.

A celebração desses atos tinha lugar em improvisado templo, um grande mocambo coberto de palhas de catolé, no qual se venerava uma santa denominada da Pedra, que falava, inspirava e dava ordens ao seu escolhido ou enviado, o profeta Silvestre, a quem os fanáticos que o seguiam chamavam de Mestre Quiou, isto é, maioral; e todos eles, levados de superstição e quimeras, sonhavam prodígios, faziam revelações e explicavam os decretos da santa, que a todos prometia fabulosas riquezas quando se desse, em próximo templo, o desencantamento do rei Dom Sebastião.

Para o regime da sua gente, no que dizia respeito ao serviço religioso, organizou o profeta algumas irmandades, cujas cartas patentes, cheias de arrieirices, eram conferidas mediante uma jóia, depois de confessado o recipiendário com a Santa da Pedra; e sendo o mesmo profeta o intérprete de tais confissões, impunha as penitências, e permitia que fossem elas comutadas em dinheiro, se assim conviesse ao penitente.

Estabeleceu também uma certa ordem de distinção entre homens e mulheres, cujas graduações eram conferidas mediante uma jóia pecuniária, incumbindo aos agraciados, entre outras prescrições, a fiel observância do maior decoro e silêncio possíveis, enquanto durassem as orações e as prédicas.

O cerimonial de admissão dos confrades era especial e de uma solenidade particular. Não faltavam as orações e o professando devia conservar-se de joelhos sob uma abóbada de aço, enquanto durava a iniciação, o que dá a entender que o profeta tinha um tal ou qual conhecimento da liturgia maçônica. Finda a cerimônia, dirigia um dos subchefes, e algumas vezes o próprio profeta, uma espécie de desafio a todo aquele que ousasse opor-se ao estabelecido na Ordem.

Do cerimonial desses atos religiosos, de um mascarado cristianismo, nada sabemos de particular, a não ser, que terminados os mesmos com cânticos e rezas, saíam os homens e disparavam as suas armas como para anunciar a terminação das suas práticas espirituais.

Tomando assustador incremento o núcleo que se formara na Pedra do Rodeador, e prometendo ir muito longe pela constante corrente de novos adeptos, viviam já sobressaltados os moradores das circunvizinhanças e principalmente os do Bonito, que começavam a ser fintados de vez em quando por enviados de Silvestre, em dinheiro, fazenda e gado, mercadorias necessárias à subsistência da sua gente.

A desobediência formal de Silvestre a uma intimação do comandante militar de Bonito para dissolver o ajunta mento; e depois não já simples pedidos de dinheiro e gêneros aos proprietários, mas sim intimações sob ameaça do emprego de meios violentos, conseguindo assim o que exigia, tudo isso, enfim, comunicado ao governador Luís do Rego, levaram-no a providenciar de modo a extinguir o ajuntamento do Rodeador, cujo local apresentava o aspecto de um nascente e populoso povoado, dividido em arruamentos regulares de casas cobertas de palha.

Efetivamente, pela madrugada de 22 de outubro de 1820, parte do Recife uma divisão sob o comando do marechal Luís Antônio Salazar Moscoso, e chegando ao Bonito avança logo sobre o nascente arraial e o ataca enfurecidamente.

Foi selvagem a carnificina; depois lançam fogo à povoação, e um grande numero de mulheres e crianças, principalmente, perece nas chamas, e os homens que escaparam à fuzilaria do assalto são passados a fio de espada!

Regressou depois a tropa para o Recife, escoltando a mais de quinhentas mulheres e crianças escapas do incêndio e do assalto, imundas, maltrapilhas e quase em completa nudez; e metida na prisão toda essa gente, regressou depois de solta para as suas localidades, ficando as crianças, que não tinham mães, entregues a famílias que as tomaram aos seus cuidados.

* * *

Em começo do ano de 1836, um mameluco de nome João Antônio dos Santos, morador no sitio Pedra Bonita, não muito distante de Vila Bela, mostrava misteriosamente ao povo duas formosas pedrinhas, muito luzentes, que dizia serem brilhantes finíssimos, encontrados nas margens de uma lagoa encantada, que lhe fora revelada por el-rei Dom Sebastião, o qual todos os dias o conduzia a certo local misterioso e mostrava-lhe naquela encantada lagoa duas torres de um templo que surgia, já meio visível.

Fanatizado pela crença, ainda vulgaríssima, do reaparecimento do rei Dom Sebastião, começou João Antônio a pregar que estava próxima essa época, discorrendo largamente sobre o assunto; e com tais embustes conseguiu não só casar-se com uma interessante rapariga que sempre lhe fora negada pelos pais, como também angariar dinheiro em não pequenas quantias, gados e fazendas, com a onerosa cláusula de pagamento em dobro, quando se desencantasse o prodigioso reino; e fascinando a uns com as riquezas, a outros com a descoberta de um grande tesouro, e auxiliado nesse apostolado por parentes, conseguiu reunir imensa turba de adeptos, gente ignorante, fanática e ambiciosa, que acompanhava em suas peregrinações até Piancó, Cariri e o Riacho do Navio, marginando depois o alto São Francisco.

Renunciando João Antônio a seu apostolado, graças à intervenção de um missionário, o padre Francisco José Correia, confiou-o, contudo a um preposto de nome João Ferreira, mameluco como ele, porém, ainda mais astuto, supersticioso e perverso.

Esses fanáticos tinham como corte das suas reuniões o mencionado sitio da Pedra Bonita, chamado depois Pedra do Reino, cuja denominação se prende às tristíssimas ocorrências que ali se deram, e onde se erguem duas elevadas pirâmides de granito cor de ferro, quase unidas, porque é estreitíssima o espaço que as separa.

Esses dois penedos são quase de igual altitude, sendo, porém, o mais baixo de maior grossura; e o mais elevado de meia altura para cima, é coberto por uma espécie de chuvisco prateado — talvez infiltrações de malacacheta — e que pelo belo aspecto que apresenta, principalmente quando recebe de frente raios solares, brilhando como se fossem de prata polida, recebeu do vulgo a denominação de Pedra Bonita.

O estreito espaço que separa as duas pirâmides ou penedos, dá entrada por duas aberturas distintas a um espaçoso corredor muito claro e arejado.

Ao poente, de uma das pirâmides, nota-se pequena sala, meio subterrânea, a que os sebastianistas davam o nome de Santuário, porque era ai que o fanático João Ferreira fazia as suas práticas e nas quais afirmava sempre: — que ressuscitariam gloriosamente com el-rei Dom Sebastião todas as vítimas que lhe fossem oferecidas, — e onde se recolhiam as noivas depois do casamento celebrado por um sacerdote da seita, conhecido por frei Simão.

Exteriormente, nota-se uma espécie de terraço pênsil, que tinha o nome de trono ou púlpito, onde o rei João pregava ao ar livre; mais além vê-se uma pequena campa onde tinha lugar o sacrifício das vítimas, e por isso chamado de Pedra dos Sacrifícios, ou da matança.

A pouca distância das pirâmides, enfim, vê-se um penedo colossal, em cuja base se nota grande subterrâneo consideravelmente aumentado por profunda escavação que fizeram os sebastianistas, em cujo recinto, a que se impôs o nome de Casa Santa, e onde se podiam reunir umas duzentas pessoas, ministrava o chefe certa bebida aos seus adeptos, com o fim de os embriagar e atirá-los assim, inconscientes, aos cruentos sacrifícios que celebravam esses fanáticos, com o fim de operar-se o prodigioso desencantamento do reino! Esse néctar, chamado vinho encantado, era composto de jurema e manacá; tinha ao mesmo tempo as propriedades do álcool e do ópio, e era muito usado pelos índios em seus festins, bem como pelos curandeiros de feitiços e mordedura de cobras.

O rei tinha o tratamento de santidade, e todos lhe beijavam os pés.

Em suas pregações usava ele de uma coroa tecida de cipós de japecanga, ora falando e cantando, ora saltando muito alegre; e quando terminava as prédicas, prorrompia o povo em vivas a el-rei Dom Sebastião, cabriolando e batendo palmas.

A poligamia era permitida, e o próprio rei João Ferreira chegou a ter sete mulheres, que gozavam foros de rainhas; uma destas, porém, irmã do primeiro rei João Antônio, não podendo suportar sem queixas o escandaloso concubinato do pretenso esposo, caiu um dia vítima dos seus perversos instintos com o corpo crivado por setenta e tantas facadas!

O casamento, festivamente celebrado por Frei Simão, um ignorante impostor de nome Manoel Vieira, investido da dignidade de sumo sacerdote da seita, tinha cerimonial por demais precário.

Presentes os noivos, testemunhas e espectadores, comparecia sua santidade el-rei, que era recebido com honorificas demonstrações de respeito, e o intitulado frei Simão começava a cerimônia, proferindo certas palavras cabalísticas que terminavam com a frase: — Eu vos caso pelos poderes que Deus me deu, — mandando em seguida que a noiva osculasse os lábios do noivo.

Em seguida, o rei dava o braço à noiva, servia-se o vinho encantado, ao som de toques, cânticos e palmas, e dissolvia-se a reunião, mas o rei permanecia na casa santa com a noiva para dispensá-la, e no outro dia a restituía ao seu esposo, convenientemente dispensada...

As suas práticas religiosas constavam apenas dos cânticos de benditos e de rezas diversas.

Comia-se pouco e era proibido lavar os panos e roupas antes de desencantar-se o reino; e todos os dias expediam-se bandos de gente para arrebanhar homens, mulheres, meninos e cães para os sacrifícios; e outros à "razzia" nas circunvizinhanças, regressando providos de gado, cereais e mantimentos diversos destinados ao consumo da população; e, nessas excursões, os suspeitos eram acompanhados de duas ou três pessoas de confiança.

Foi na bela e aprazível paragem da Pedra Bonita, portanto, que se firmou a reunião desses novos sebastianistas, e nos subterrâneos dos seus rochedos, o templo dos seus falsos sacerdotes e o sólio real da imaginária e caricata monarquia.

O escritor de uma interessante monografia sobre o fato e a quem seguimos "pari-passu" nesta narrativa, conclui com as seguintes palavras a minuciosa descrição que faz da localidade, para cujo fim foi propositalmente visitá-la.

O reboliço que produz o vento sobre a folhagem dos catolezeiros que, quais espectros mudos, ou selvagens seminus se aproximam em grupos da maior das duas pirâmides, como se o quisessem combater ou derrubar; o constante cantarolar dos visitantes, que pretendem assim desterrar so inúmeros cardumes de fantasmas de que têm povoada a própria imaginação, de dentro das fendas e cavidades dos rochedos, em que vão penetrando em busca de alguma curiosa antiqualha; e a invencível disposição do espírito para acorrentar-se ao passado, exumar, e fazer passar por diante até o último dos personagens daquelas cenas malditas; tudo isso torna tais lugares tão sinistramente pavorosos que basta a queda de um fruto, ou a carreira inesperada de um animal que nos evita, para produzir um choque extraordinário, sobretudo nas pessoas de organização nervosa e de espírito um tanto impressionável.

* * *

Pregavam esses fanáticos sebastianistas que, para verificar-se o almejado desencantamento do reino, era necessário regar-se as pedras e os campos circunvizinhos com o sangue dos velhos, moços e crianças, e até mesmo de animais; que tudo isso não só era necessário para mais aproximar o termo da prodigiosa aparição do rei Dom Sebastião, como também seus tesouros, o que era de suma vantagem para aqueles que se submetessem ao heróico sacrifício, pois os velhos ressuscitariam moços, os pretos alvos como a lua, e todos ricos, importantes e poderosos!

E assim entregavam-se ao sacrifício, submissos, voluntariamente.

Os próprios pais conduziam os filhos à matança, e moços e velhos, todos corriam pressurosos e dominados do mais ardente fanatismo para o sacrifício, pagando assim com a própria vida o seu tributo de sangue, na esperança de ver quebrar-se esse cruel encantamento e auferirem as prometidas recompensas. São indescritíveis e horripilantes as cenas de sangue e de carnagem, o desespero dos sacrifícios e o heróico fanatismo de semelhantes entes... Cegos, alucinados, enlouquecidos por fementidas promessas de vis impostores, que abusavam da sua ignorância e ingenuidade, firmes na crença de que um dia, a brevemente despontar, recuperariam a vida completamente transformados, ricos e poderosos, tudo arrostavam, tudo sacrificavam!

No dia 14 de maio de 1838 (como depôs um dos muitos iludidos pelos agentes dos fanáticos, que fugira horrorizado pelas cenas que presenciara) declarou o rei, depois de dar bastante vinho a toda a sua gente que Dom Sebastião estava muito desgostoso e triste com seu povo.

— E por quê? — perguntaram todos, muito aflitos.

— Porque são incrédulos! — respondeu ele, e repetia as suas frases uma voz lamentosa, que parecia vir de longe... Porque são fracos! — Porque são falsos! e, finalmente, porque o perseguem, não regando o campo encantado e não lavando as duas torres da catedral do seu reino com o sangue necessário para quebrar de uma vez o cruel encantamento!...

O que depois disto se seguiu foi horrível.

O velho Juca — continua o sebastianista — foi o primeiro que correu, abraçou-se com as pedras e entregou o pescoço a Carlos Vieira, que o cortou cerce, pois já lá estava com um facão afiado.

Depois, as mulheres e os homens iam agarrando os filhos que estavam ali, ou iam buscá-los fora, e vinham entregá-los ao mesmo Carlos Vieira, a José Vieira e a outros, que lhes cortavam o pescoço, ou quebravam-lhe a cabeça nas mesmas pedras, que untavam de sangue.

No auge dessa embriaguez e desvairamento, um fanático, para dar arras da sua fé e conquistar o melhor quinhão do reino, sobe ao cume de um rochedo e precipita-se com dois netos nos braços; mas o instinto de conservação acordando-lhe os sentimentos obliterados pela loucura, obriga-o salvar-se, se bem que muito contuso, agarrando-se aos ramos de um robusto catolezeiro, que encontrara no meio da queda, perdendo contudo os dois netinhos.

Outro, pega em um filho de dez anos, coloca-o na pedra dos sacrifícios e decepa-lhe o braço ao primeiro golpe, surdo à voz da própria natureza e às súplicas da pobre vitima que, ajoelhada e de mãos postas, bradava-lhe:

— Meu pai, você não dizia que me queria tanto bem?

Uma viúva, alimentando a louca pretensão de ser rainha, imola por si mesma a dois filhos menores, e fica em desesperação ao ver que lhe escaparam, fugindo, os dois mais velhos.

Uma irmã de João Antônio, o primeiro rei, é designada para o sacrifício pelo seu sucessor, que respondia às súplicas e alegações de gravidez da pobre vítima, gritando para os sacrificadores:

— Imolai-a mesmo assim, para que não sofra duas dores, a do parto e a do encantamento!

E tão adiantado era o estado de gestação da infeliz mulher, que momentos depois de receber o golpe fatal, rolava a criança pela rampa e estendia-se no chão!

Outra mulher, ainda moça e donzela, chegada com os pais naquele mesmo dia, é designada para o sacrifício; e tendo conseguido fugir enquanto se praticava a execução da precedente, foi perseguida pelos sanguissedentos fanáticos e, de novo conduzida ao matadouro, recebeu a morte.

Destarte, durante três dias de matança, conseguira o execrável rei banhar a base das duas pirâmides e inundar os terrenos adjacentes com o sangue de 30 crianças, 12 homens, entre os quais figurava seu próprio pai, e 11 mulheres, cujos cadáveres, excluindo o da infeliz donzela, que por correr do martírio foi considerado indigno de emparelhar-se com os demais, e bem assim os de 14 cães, foram colocados junto às pedras e em grupos simétricos, segundo o sexo, a idade e a qualidade das vítimas.

Observe-se, porém, que além do fanatismo religioso transparecia também, entre esses visionários, um como que pensamento socialista, pois o sacrifício dos cães era porque — no dia do grande evento, levantar-se-iam eles como valentes e indômitos dragões para devorar os proprietários...

Quando o monstro se dispunha a prosseguir ainda no sacrifício de novas vítimas, na manhã de 17 de maio, indignado o mameluco Pedro Antônio com a desconsideração que sofrera do rei, imolando a duas irmãs suas; e julgando-se com melhor direito à suprema investidura real, por ser irmão de João Antônio dos Santos, o primeiro rei e instituidor da seita, antecipa-se em subir ao trono e troveja à turba reunida, anunciando-lhe: — Que Dom Sebastião, cercado de sua corte, lhe aparecera na noite antecedente, e reclamara a presença do rei, única vitima que faltava para verificar-se o seu desencantamento.

E um grito uníssono dos fanáticos retumba na amplidão:

— Viva el-rei Dom Sebastião! Viva o nosso irmão Pedro Antônio!

O rei deposto, porém, que não soube dominar aquele golpe de audácia do seu êmulo, acovarda-se miseravelmente, e vendo os fanáticos que ele tremia tanto, a ponto de não poder suster-se de pé, prorrompem indignados aos gritos:

— Ao sacrifício, Carlos Vieira! Ao sacrifício José Vieira! Antes que eles se tornem indignos, como aquela rapariga que fugiu! Andai pois!

Pedro Antônio é aclamado rei, e José Ferreira é imediatamente arrastado ao sacrifício; esmigalham-lhe o crânio e arrancam-lhe as entranhas; e conduzido o cadáver para fora do campo, deixam-no amarrado de pés e mãos em duas grossas árvores, entregue à voracidade das feras.

Resolvendo o novo rei abandonar aqueles sítios, foi acampar com seu povo um pouco distante, ao pé de uma floresta de umbuzeiros, onde devia esperar-se o aparecimento de Dom Sebastião e a restauração do reino da Pedra Bonita, cuja grande cidade, assento de sua corte, surgiria daquela formosa lagoa, distante meia légua, segundo a palavra dos seus profetas.

Reveladas todas essas tristíssimas ocorrências ao comissário de polícia da localidade, o major Manoel Pereira da Silva, pelo fugitivo sebastianista, resolveu essa autoridade imediatamente reunir uma força de guardas nacionais e paisanos e marchar para dispersar o ajuntamento; força essa, que apesar de engrossada em caminho, apenas atingia a uns quarenta cavaleiros, todos dispostos, bem armados e municiados.

Em marcha acelerada e sob a guia daquele fugitivo sebastianista, venceu a caravana o caminho da viagem, e chegando à floresta dos umbuzeiros para descansar e preparar-se para investir contra os fanáticos na Pedra Bonita, onde contava que ainda estivessem, um grupo de cavaleiros que se adiantara um pouco, dá de frente com Pedro Antônio, tendo uma grande coroa de cipós na cabeça, seminu e acompanhado de numeroso séquito de homens, mulheres e crianças, também seminus, e armados de facões e cacetes.

— Não os tememos!... Acudam-nos as tropas do nosso reino!... Viva el-rei Dom Sebastião!... grita furioso Pedro Antônio, agitando no ar a sua coroa e arremessando-se com toda a sua gente sobre o grupo de cavaleiros, já então reunidos aos seus companheiros, e trava-se luta tremenda, renhidíssima, corpo a corpo e desigual, uma vez que os fanáticos eram em número muito superior; e desejosos do martírio, com a ideia fixa de uma imediata ressurreição, combatiam arrojada e valentemente, entoando as mulheres e crianças os cânticos da ladainha, e outras rezas, batendo palmas ou brandindo espetos ou cacetes, e entrando mesmo na liça em auxílio dos seus, ouvindo-se em geral, como um grito de guerra:

— É tempo. É chegado o tempo. Chegou o tempo. Viva! Viva! Viva!

Os intrépidos cavaleiros, porém, não recuam, e ainda que em número inferior, e sem dar-se mesmo tempo para usarem das suas armas de fogo, pois que bem poucos puderam mais de uma vez servir-se das suas espingardas, contudo, combatem valentemente; e depois de uma hora de luta caem vencidos os sebastianistas, deixando sobre o campo da ação 17 cadáveres, entre os quais o do rei Pedro Antônio, perdendo os atacantes 5 de seus companheiros. De ambos os lados ficaram muito feridos, entre os quais o major comissário cuja vida esteve em perigo.

Um troço de fugitivos fanáticos é batido por uma força que chegara comandada pelo capitão Simplício Pereira da Silva, e perecem na refrega mais oito de seus companheiros; e prosseguindo aquele capitão no encalço dos demais até as serras do Piancó, extermina-os em atos de resistência. No número desses figura o célebre frei Simão, que morreu perto da fazenda Lagoinha, escapando apenas o fanático João Pilé, aquele que se atirara do alto de um rochedo com dois netos nos braços, e que homiziando-se no Cariri, morreu tempos depois, tranquilamente.

Mas foi pequeno o número de prisioneiros que caíram às mãos dos assaltantes, entre os quais avultavam mulheres e crianças; e teriam mesmo sido todos eles trucidados, se a isso não se opusesse o comissário de policia, que dificilmente conseguiu dominar a geral indignação de sua gente.

Conduzidos os cadáveres das cinco vitimas que caíram no combate contra os sebastianistas, tiveram condigna sepultura na igreja da Serra Talhada; e regressando o comissário para a sua fazenda de Belém, com os prisioneiros, logo que ali chegou os enviou ao prefeito da comarca de Flores, com uma circunstanciada comunicação oficial acerca do ocorrido. Entregues os delinquentes à ação da justiça, deu-se liberdade às mulheres e as crianças foram confiadas a famílias honestas para incumbirem-se da sua educação.

Entre os primeiros figurava o pai do rei João Antônio, Gonçalo José dos Santos, que condenado pelo Júri de Flores, acabou os seus dias na grilheta, no presídio de Fernando de Noronha. Seu filho, porém, não foi menos infeliz. Descoberto o seu esconderijo, em Minas Gerais, a polícia foi arrancá-lo de lá e temendo os seus condutores caírem vitimas de algum ardil seu, resolveram matar esse perverso impostor, cujas doutrinas tantas desgraças originaram.

Dois meses depois de tais ocorrências, foi à Pedra Bonita o missionário padre Francisco José Correia, e reunindo as ossadas das vítimas sacrificadas para o desencantamento do reino de Dom Sebastião, assim reduzidas em tão breve tempo pela rapacidade dos animais e aves carnívoras, sepultou-as em uma grande cova, sobre a qual levantou um elevado cruzeiro de madeira.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025

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