OS
POMBOS
Quando
Joana apareceu à porta bocejando, fatigada da longa noite em claro, à cabeceira
do filho, Tibúrcio, de pé no terreiro, firmado à enxada, olhava o pombal
alvoroçado. O sol começava a subir dourando as folhas úmidas à beira do
córrego, esvoaçavam rolas, e os sanhaços faziam alegre algazarra nos ramos
altos das árvores das cercanias. O caboclo, imóvel, não tirava os olhos do
pombal que ficava à sombra de copada mangueira. Por vezes, franzia a fronte
queimada, acusando a luta íntima, graves preocupações que lhe trabalhavam o
espírito. Um pombo abalava, outro, logo outro — ele voltava a cabeça, seguia-os
até perdê-los de vista e tornava à contemplação melancólica.
As
aves iam e vinham, entravam, saíam agitadas, arrulhando alto. Esvoaçavam em
redor da habitação, pousavam nas árvores, no sapé da cabana, baixavam à terra
inquietas, fazendo roda, arrufadas. Algumas pareciam orientar-se buscando rumo
claro espaço, aprofundando a vista nos horizontes remoalongavam os olhos pelo
tos. Outras voavam, descreviam grandes voltas e regressavam ao pombal.
Juntavam-se em rebuliço turturinando, como se discutissem, combinassem a
abalada. Algumas, indecisas, abriam as asas ameaçando o vôo, mas logo as
fechavam, e outras arrojavam-se, retrocediam sem ânimo e o rumor crescia, na
atropelada excitação da faina da partida.
O
caboclo não se arredava, olhando. Ele bem sabia que era a vida de seu filho que
ali estava em jogo, pendente da resolução das aves. Quando os pombos desertam,
a desgraça vem logo. Vendo-o, Joana perguntou:
—
Que é?
O
caboclo coçou a cabeça sem responder. Ela insistiu: Que é, Tibúrcio?
—
A mode que os pombos estão arribando, Joana.
A
cabocla sorriu tristemente:
—
Uai! Só agora é qu'ocê 'tá dando por isso? Desde que ele caiu de cama. Eu não
quis falar, mas bem que eu 'tava vendo.
O
caboclo pôs a enxada ao ombro e foi-se lentamente a caminho da roça, por entre
o capim molhado que exalava um cheiro picante. Galinhas cacarejavam ocultas nas
ervas altas, e um fio de água, que derivava fino e suave, lampejava, aqui, ali,
nas abertas do mato. Tibúrcio, sempre de cabeça baixa, enxada ao ombro, seguia
impressionado com a repentina migração das aves. Era o anúncio fatal. Ele bem
ouvira a coruja noites e noites seguidas. Não fizera caso — tudo ia bem, o
pequeno com saúde, eles sempre robustos. Mas ali estava a confirmação do aviso
— a fuga dos pombos; todos criados por ele, lá iam, abandonavam-no pressentindo
a chegada da morte.
Voltou-se,
levantou o olhar as aves esvoaçavam descrevendo círculos e Joana lá estava na
soleira da cabana, encostada ao umbral, braços cruzados, a cabeça pendida,
decerto chorando, coitada! Revoltou-se com uma surda explosão de ódio contra as
aves ingratas. Nunca tivera coragem de matar uma só e vivia sempre a consertar
o pombal, mais uma coisa, mais outra, pensando em aumentá-lo para os novos
casais. E o filho? Não era ele quem pilava o milho para os borrachos? Quem
sempre andava pela mangueira, de ramo em ramo, a ver se havia alguma fenda no
pombal por onde a chuva penetrasse? Quem sabe se era porque o não viam que os
pombos abandonavam a casa?
Encolheu
os ombros e seguiu mato dentro. Ao atravessar a estiva, o coração bateu-lhe com
força, na emoção de um presságio. Parou. A água rebalsada refletia-se imóvel e
ele olhava sem ver a sua imagem, pensando no pequeno que delirava, ardendo em
febre.
Enveredou
pela roça. O milharal apendoado era tão alto que o homem desaparecia seguindo
os carreiros cobertos de folhas secas. Pomas de terra fofa encobriam
formigueiros que ele sempre arrasava nos dias tranquilos. Nem deu por elas.
Seguia. Papagaios fugiam chalrando, com as verdes asas luzindo ao sol, e
gafanhotos enormes saltavam nas folhas. Por vezes um calango rastejava ligeiro.
Havia
um ranchinho de palha — era ali que o filho costumava ficar arranjando as suas
arapucas. Ainda lá estava um feixe de taquaras, mas a erva começava a invadir o
abrigo abandonado. Também ia já para um mês que o pequeno ali não aparecia.
Quando chegou ao mandiocal, sentou-se alquebrado — a enxada pesava-lhe ao ombro
como uma carga, as pernas afrouxavam, todo o corpo ressentia-se de fadiga como
se ele chegasse de estirada viagem. Sentou-se num cômodo e pôs-se a riscar a
terra com um graveto, pensando.
Às
vezes, parecia-lhe ouvir a voz da mulher ecoando. Levantava a cabeça e, atento,
sobressaltado, ficava à escuta. Só ouvia o crepitar das folhas balançadas pela
viração e o zizio dos insetos ao sol. A terra transpirava, um vapor diáfano
subia tremulante do solo aquecido, as folhas pendiam lânguidas e no céu, de um
azul intenso, passavam urubus vagarosos demandando as malhadas longínquas.
De
repente, um pombo atravessou os ares, outro, outro logo depois. Tibúrcio pôs-se
de pé olhando — lá iam eles, lá iam! Asas estalaram — eram outros. Aqueles não
tornariam mais, nunca mais! Fugiam espavoridos, sentindo a morte que devia vir
perto. Lançou um olhar largo e só viu a verdura farta ondulando à brisa, sob a
claridade cálida. Devia ter levado o filho à vila logo que ele caiu doente. Mas
quem podia contar com aquilo? De repente, um febrão, delírio... Que fazer?
Levantou os olhos para o céu e ficou contemplando o azul luminoso. Mais um
pombo passou. Meneou a cabeça desanimado e, atirando um murro à coxa, pôs a
enxada ao ombro e deu volta tornando a casa. Quando Joana o descobriu no
terreiro, como se adivinhasse o seu pensamento, disse:
—
Foi mesmo melhor você voltar, meu velho. Eu aqui sozinha nem sei que hei de
fazer.
Ele
olhou o pombal — estava deserto, em silêncio.
Ao
cair da tarde, sentou-se ao limiar da cabana, e, fumando, ficou à espera dos
pombos. As cigarras cantavam, todos os pássaros, que tinham os seus ninhos nas
árvores próximas, recolhiam e, como ainda havia luz, deixavam-se ficar nos
ramos; desferindo os últimos galreios. O céu empalidecia, nublava-se de leve o
fundo campo triste. A aragem da tarde espalhava o suave aroma das açucenas que
abriam. Perto um cão ladrava, a espaços, e, por vezes, um lento mugido
entristecia o silêncio. Tibúrcio não tirava os olhos do pombal senão para os
alongar pelo espaço, procurando descobrir uma das aves. Talvez tornassem.
Onde
achariam elas melhor abrigo? A floresta era arriscada e pombos de casa não
fazem vida no mato. Que outro pombal os teria atraído? Se ele houvesse seguido
a direção do voo... Alguns tinham tomado para os lados dos campos, outros
haviam endireitado para a serra. E não voltavam.
Começava
a escurecer. Joana acendeu a candeia. Já os sapos coaxavam nos aguaçais. Uma
estrela luziu no céu. Tibúrcio fitou nela os olhos e pôs-se a rezar baixinho. O
silêncio era apenas interrompido pelo burburinho da água do córrego que rolava
perto, nos fundos da cabana, saltando, escachoando em pedrouços. Tibúrcio
suspirou e ergueu-se, encostou-se no umbral sem ânimo de entrar.
Joana chegou-se à porta.
—
Então?...
—
No mesmo. Agora nem água. Qual!
Ele
desceu o degrau de madeira, chamou-a e caminharam vagarosamente no terreiro que
começava a clarear. Junto à mangueira, justamente sob o pombal, pararam e o
caboclo, baixinho, como se receasse ser ouvido pelo filho, perguntou:
Joana,
você não sabe reza nenhuma pra isso? — e mostrou o pombal deserto.
—
Nhá Lina é que sabe.
—
E chama?
—
Diz que sim.
Tibúrcio
ficou a pensar. Súbito, levantando resolutamente a cabeça, disse em voz firme:
—
Eu vou lá.
—
Agora?
—
Então? Você não diz que chama?
—
Eu nunca vi, Tibúrcio, dizem.
—
Você não quer.
—
Eu? Eu não. Só o que acho é que é muito tarde. Você já viu como ele está? Não
dá acordo de nada. Eu ando, falo, viro e mexo no quarto e ele... nem como
coisa. Ali só Deus!
A
voz ia-se-lhe travando na garganta, e de repente desatou a chorar. Tibúrcio
afastou-se, pôs-se a andar vagarosamente no terreiro. A lua subia, os campos
alvejavam e as sombras das árvores, muito negras, tisnavam a claridade.
—
Tem paciência, minha velha. A gente fez tudo.
Os
grilos cantavam estrídulos. Um caburé passou com um grito rascante. O caboclo
murmurou:
—
Já sei.
De
repente Joana estremeceu, voltou-se hirta para a cabana, por cuja porta
escancarada saía ao terreiro um raio de luz lívida, e, depois de olhar um
momento, como assombrada, partiu de arranco. Tibúrcio, imóvel, sem compreender
o que fizera a mulher, esperava vê-la reaparecer tranquila, quando um grito
lancinante atravessou o silêncio. O caboclo arrojou-se para a cabana, foi
direito ao quarto que uma lamparina alumiava: a mulher, de joelhos junto ao
catre, debruçada sobre o filho, soluçava desesperadamente.
—
Que é, Joana?
Ela
rouquejou, atirando os cabelos sobre o corpo da criança.
—
Acabou! Vê...
Ele
inclinou-se — o seu rosto roçou por uma face que ardia, a sua mão trêmula
pôs-se a apalpar um corpo abrasado, sentindo o peito magro ripado pelas
costelas, o ventre fundo.
—
Vê o coração, Tibúrcio.
Ele
apenas disse:
—
Acabou.
A
mulher ergueu-se de ímpeto, desfigurada, com os cabelos desgrenhados, os olhos
flamejantes; quis falar, estendeu os braços para o marido, mas caiu molemente
numa canastra e, dobrando-se toda, rompeu a chorar, redizendo o nome do filho
com a ternura a coar-se pelos soluços:
—
Meu Luís! Meu Luisinho! Tão vivo, minha Nossa Senhora!
Tibúrcio
afastou-se e, na sala, diante da mesa em que jazia a candeia, parou com o olhar
perdido, os lábios trêmulos e as lágrimas rolando em grossas gotas ao longo da
face ossuda. Joana rompeu do quarto cambaleando como ébria e, vendo-o,
atirou-se-lhe nos braços; ele amparou-a sem dizer palavra e, abraçados, ficaram
largo tempo de pé na estreita sala obscura onde os grilos cantavam.
Joana
tornou para o quarto. Tibúrcio ficou encostado à mesa, de olhos fitos na luz da
candeia, que oscilava com o vento. O luar entrava alvo, caleando as paredes.
Ele moveu-se com arrancado suspiro, foi até a porta, sentou-se na soleira,
acendeu o cachimbo e quedou olhando o campo iluminado. De repente pareceu-lhe
ouvir arrulhos — levantou a cabeça, olhando. As estrelas cintilavam na altura,
a copa das árvores reluzia ao luar. Seria ilusão?
Encolheu-se
e, imóvel, atento, ficou à escuta — os arrulhos continuavam. Ergueu-se
impetuosamente e caminhou direito ao pombal, colando-se ao tronco da mangueira.
Seriam os pombos que voltavam depois da passagem da Morte? Respondendo à sua ideia,
pôs-se a resmungar enfurecido:
—
Agora é tarde! Agora é tarde, malditos!
Um
ruflo de asas, turturinos meigos, pios, partiram do pombal. Não havia dúvida. O
rosto contraiu-se-lhe em ricto. Adiantou-se e, do meio do terreiro, olhou o
pombal, caminhando resolutamente para a cabana. Joana soluçava. Ele apanhou a
candeia, dirigiu-se à cozinha e, vendo o machado a um canto, tomou-o, sempre
resmungando. Voltou ao terreiro e, sob a mangueira, arregaçando as mangas da
camisa grossa, brandiu o machado.
Ao
primeiro golpe no poste que sustentava o pombal, as aves calaram-se. Tibúrcio
redobrava de esforço, arquejando. A um estalo seco afastou-se, mas a construção
continuava de pé, resistindo. Encostou o machado ao tronco e, agarrando-se aos
galhos, guindou-se, foi marinhando pela árvore acima, e, firmando-se numa
forquilha, atirou um pontapé à grande caixa, que rapidamente pendeu, ruiu, com
estrondo no terreiro. Dois pombos voaram assustados, estonteados, incertos na
claridade noturna, e pousaram no teto da palhoça.
O
caboclo escorregou ligeiro pelo tronco e viu dois pequenos corpos que piavam,
oscilavam, arrastavam-se — eram dois borrachos. Agachou-se, tomou-os nas mãos,
pôs-se a mirá-los — eram hediondos, ainda implumes, tendo apenas leve penugem
sobre as nervuras do corpo engelhado e mole. O caboclo, virando-os,
revirando-os nas mãos encoscoradas, sentia-lhes os ossos frágeis, e os animais
debatiam-se, movendo o coto das asas, esticavam o pescoço, piavam. Rilhando os
dentes, foi-os espremendo, esmagando os ossos tenros estalavam como gravetos, o
sangue espirrou, escorrendo-lhe por entre os grossos dedos, pelos punhos. Em
ímpeto de fúria, arremessou-os ao chão; eles bateram fofos como frutos podres
que se esborracham e o caboclo espezinhou-os com rugidos surdos. Os pais
arrulhavam aflitos na palha da cabana, indo e vindo.
Joana,
abraçada ao filho, soluçava quando Tibúrcio entrou no quarto. Quedou diante do
catre, a olhar. Subitamente a mulher estremeceu e, levantando-se de salto,
agarrou o braço do marido, os olhos muito abertos, a boca em hiato, a cabeça
inclinada como a ouvir vozes, rumores longínquos.
—
Que é, Joana? Que é qu'ocê tem?
Ela
murmurou apavorada:
—
Os pombos, meu velho. Ocê tá ouvindo? — Eram os arrulhos tristes que vinham de
cima da casa. — Estão voltando. Quem sabe?! Ele ainda está quente...
E
havia uma esperança imensa no coração dolorido da cabocla. Tibúrcio encolheu os
ombros:
—
É choro deles. Estão chorando como nós. É um casal que ficou por causa dos
filhos. Eu derrubei o pombal, matei os borrachos. Olha — e mostrou as mãos
ensanguentadas. — Eles voaram, estão em cima da casa. Você quer ver?
Foi
saindo; ela acompanhou-o. Desceram ao terreiro. Tibúrcio mostrou o pombal tombado,
depois apanhou os esmagados corpos dos borrachos.
—
Olha aqui...
Joana
olhava sem dizer palavra. Cessara de chorar, espantada, mirando o marido, cujos
olhos acesos fulguravam. Ele derreou o busto e atirou o primeiro borracho ao
sapé, rugindo: "É bom?!". Atirou o segundo: "É bom?!". Os
pombos abalaram espavoridos, perderam-se nas galhadas negras. "É
bom?!". Joana não tirava os olhos do marido, muda, aterrada, vendo-o
chorar aos arrancos, a olhar as mãos espalmadas, tintas de sangue.
—
Vamos, meu velho. Foi a vontade de Deus. Está no céu.
E
vagarosamente o foi levando. Entraram, e, diante do catre em que jazia o filho
morto, as lágrimas romperam dos olhos de ambos, e sobre o teto da palhoça os
pombos, que haviam tornado, arrulhavam doridamente.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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