4/05/2025

Os pombos (Conto), de Coelho Neto

 

OS POMBOS  

Quando Joana apareceu à porta bocejando, fatigada da longa noite em claro, à cabeceira do filho, Tibúrcio, de pé no terreiro, firmado à enxada, olhava o pombal alvoroçado. O sol começava a subir dourando as folhas úmidas à beira do córrego, esvoaçavam rolas, e os sanhaços faziam alegre algazarra nos ramos altos das árvores das cercanias. O caboclo, imóvel, não tirava os olhos do pombal que ficava à sombra de copada mangueira. Por vezes, franzia a fronte queimada, acusando a luta íntima, graves preocupações que lhe trabalhavam o espírito. Um pombo abalava, outro, logo outro — ele voltava a cabeça, seguia-os até perdê-los de vista e tornava à contemplação melancólica.

As aves iam e vinham, entravam, saíam agitadas, arrulhando alto. Esvoaçavam em redor da habitação, pousavam nas árvores, no sapé da cabana, baixavam à terra inquietas, fazendo roda, arrufadas. Algumas pareciam orientar-se buscando rumo claro espaço, aprofundando a vista nos horizontes remoalongavam os olhos pelo tos. Outras voavam, descreviam grandes voltas e regressavam ao pombal. Juntavam-se em rebuliço turturinando, como se discutissem, combinassem a abalada. Algumas, indecisas, abriam as asas ameaçando o vôo, mas logo as fechavam, e outras arrojavam-se, retrocediam sem ânimo e o rumor crescia, na atropelada excitação da faina da partida.

O caboclo não se arredava, olhando. Ele bem sabia que era a vida de seu filho que ali estava em jogo, pendente da resolução das aves. Quando os pombos desertam, a desgraça vem logo. Vendo-o, Joana perguntou:

— Que é?

O caboclo coçou a cabeça sem responder. Ela insistiu: Que é, Tibúrcio?

— A mode que os pombos estão arribando, Joana.

A cabocla sorriu tristemente:

— Uai! Só agora é qu'ocê 'tá dando por isso? Desde que ele caiu de cama. Eu não quis falar, mas bem que eu 'tava vendo.

O caboclo pôs a enxada ao ombro e foi-se lentamente a caminho da roça, por entre o capim molhado que exalava um cheiro picante. Galinhas cacarejavam ocultas nas ervas altas, e um fio de água, que derivava fino e suave, lampejava, aqui, ali, nas abertas do mato. Tibúrcio, sempre de cabeça baixa, enxada ao ombro, seguia impressionado com a repentina migração das aves. Era o anúncio fatal. Ele bem ouvira a coruja noites e noites seguidas. Não fizera caso — tudo ia bem, o pequeno com saúde, eles sempre robustos. Mas ali estava a confirmação do aviso — a fuga dos pombos; todos criados por ele, lá iam, abandonavam-no pressentindo a chegada da morte.

Voltou-se, levantou o olhar as aves esvoaçavam descrevendo círculos e Joana lá estava na soleira da cabana, encostada ao umbral, braços cruzados, a cabeça pendida, decerto chorando, coitada! Revoltou-se com uma surda explosão de ódio contra as aves ingratas. Nunca tivera coragem de matar uma só e vivia sempre a consertar o pombal, mais uma coisa, mais outra, pensando em aumentá-lo para os novos casais. E o filho? Não era ele quem pilava o milho para os borrachos? Quem sempre andava pela mangueira, de ramo em ramo, a ver se havia alguma fenda no pombal por onde a chuva penetrasse? Quem sabe se era porque o não viam que os pombos abandonavam a casa?

Encolheu os ombros e seguiu mato dentro. Ao atravessar a estiva, o coração bateu-lhe com força, na emoção de um presságio. Parou. A água rebalsada refletia-se imóvel e ele olhava sem ver a sua imagem, pensando no pequeno que delirava, ardendo em febre.

Enveredou pela roça. O milharal apendoado era tão alto que o homem desaparecia seguindo os carreiros cobertos de folhas secas. Pomas de terra fofa encobriam formigueiros que ele sempre arrasava nos dias tranquilos. Nem deu por elas. Seguia. Papagaios fugiam chalrando, com as verdes asas luzindo ao sol, e gafanhotos enormes saltavam nas folhas. Por vezes um calango rastejava ligeiro.

Havia um ranchinho de palha — era ali que o filho costumava ficar arranjando as suas arapucas. Ainda lá estava um feixe de taquaras, mas a erva começava a invadir o abrigo abandonado. Também ia já para um mês que o pequeno ali não aparecia. Quando chegou ao mandiocal, sentou-se alquebrado — a enxada pesava-lhe ao ombro como uma carga, as pernas afrouxavam, todo o corpo ressentia-se de fadiga como se ele chegasse de estirada viagem. Sentou-se num cômodo e pôs-se a riscar a terra com um graveto, pensando.

Às vezes, parecia-lhe ouvir a voz da mulher ecoando. Levantava a cabeça e, atento, sobressaltado, ficava à escuta. Só ouvia o crepitar das folhas balançadas pela viração e o zizio dos insetos ao sol. A terra transpirava, um vapor diáfano subia tremulante do solo aquecido, as folhas pendiam lânguidas e no céu, de um azul intenso, passavam urubus vagarosos demandando as malhadas longínquas.

De repente, um pombo atravessou os ares, outro, outro logo depois. Tibúrcio pôs-se de pé olhando — lá iam eles, lá iam! Asas estalaram — eram outros. Aqueles não tornariam mais, nunca mais! Fugiam espavoridos, sentindo a morte que devia vir perto. Lançou um olhar largo e só viu a verdura farta ondulando à brisa, sob a claridade cálida. Devia ter levado o filho à vila logo que ele caiu doente. Mas quem podia contar com aquilo? De repente, um febrão, delírio... Que fazer? Levantou os olhos para o céu e ficou contemplando o azul luminoso. Mais um pombo passou. Meneou a cabeça desanimado e, atirando um murro à coxa, pôs a enxada ao ombro e deu volta tornando a casa. Quando Joana o descobriu no terreiro, como se adivinhasse o seu pensamento, disse:

— Foi mesmo melhor você voltar, meu velho. Eu aqui sozinha nem sei que hei de fazer.

Ele olhou o pombal — estava deserto, em silêncio.

Ao cair da tarde, sentou-se ao limiar da cabana, e, fumando, ficou à espera dos pombos. As cigarras cantavam, todos os pássaros, que tinham os seus ninhos nas árvores próximas, recolhiam e, como ainda havia luz, deixavam-se ficar nos ramos; desferindo os últimos galreios. O céu empalidecia, nublava-se de leve o fundo campo triste. A aragem da tarde espalhava o suave aroma das açucenas que abriam. Perto um cão ladrava, a espaços, e, por vezes, um lento mugido entristecia o silêncio. Tibúrcio não tirava os olhos do pombal senão para os alongar pelo espaço, procurando descobrir uma das aves. Talvez tornassem.

Onde achariam elas melhor abrigo? A floresta era arriscada e pombos de casa não fazem vida no mato. Que outro pombal os teria atraído? Se ele houvesse seguido a direção do voo... Alguns tinham tomado para os lados dos campos, outros haviam endireitado para a serra. E não voltavam.

Começava a escurecer. Joana acendeu a candeia. Já os sapos coaxavam nos aguaçais. Uma estrela luziu no céu. Tibúrcio fitou nela os olhos e pôs-se a rezar baixinho. O silêncio era apenas interrompido pelo burburinho da água do córrego que rolava perto, nos fundos da cabana, saltando, escachoando em pedrouços. Tibúrcio suspirou e ergueu-se, encostou-se no umbral sem ânimo de entrar.

Joana chegou-se à porta.

— Então?...

— No mesmo. Agora nem água. Qual!

Ele desceu o degrau de madeira, chamou-a e caminharam vagarosamente no terreiro que começava a clarear. Junto à mangueira, justamente sob o pombal, pararam e o caboclo, baixinho, como se receasse ser ouvido pelo filho, perguntou:

Joana, você não sabe reza nenhuma pra isso? — e mostrou o pombal deserto.

— Nhá Lina é que sabe.

— E chama?

— Diz que sim.

Tibúrcio ficou a pensar. Súbito, levantando resolutamente a cabeça, disse em voz firme:

— Eu vou lá.

— Agora?

— Então? Você não diz que chama?

— Eu nunca vi, Tibúrcio, dizem.

— Você não quer.

— Eu? Eu não. Só o que acho é que é muito tarde. Você já viu como ele está? Não dá acordo de nada. Eu ando, falo, viro e mexo no quarto e ele... nem como coisa. Ali só Deus!

A voz ia-se-lhe travando na garganta, e de repente desatou a chorar. Tibúrcio afastou-se, pôs-se a andar vagarosamente no terreiro. A lua subia, os campos alvejavam e as sombras das árvores, muito negras, tisnavam a claridade.

— Tem paciência, minha velha. A gente fez tudo.

Os grilos cantavam estrídulos. Um caburé passou com um grito rascante. O caboclo murmurou:

— Já sei.

De repente Joana estremeceu, voltou-se hirta para a cabana, por cuja porta escancarada saía ao terreiro um raio de luz lívida, e, depois de olhar um momento, como assombrada, partiu de arranco. Tibúrcio, imóvel, sem compreender o que fizera a mulher, esperava vê-la reaparecer tranquila, quando um grito lancinante atravessou o silêncio. O caboclo arrojou-se para a cabana, foi direito ao quarto que uma lamparina alumiava: a mulher, de joelhos junto ao catre, debruçada sobre o filho, soluçava desesperadamente.

— Que é, Joana?

Ela rouquejou, atirando os cabelos sobre o corpo da criança.

— Acabou! Vê...

Ele inclinou-se — o seu rosto roçou por uma face que ardia, a sua mão trêmula pôs-se a apalpar um corpo abrasado, sentindo o peito magro ripado pelas costelas, o ventre fundo.

— Vê o coração, Tibúrcio.

Ele apenas disse:

— Acabou.

A mulher ergueu-se de ímpeto, desfigurada, com os cabelos desgrenhados, os olhos flamejantes; quis falar, estendeu os braços para o marido, mas caiu molemente numa canastra e, dobrando-se toda, rompeu a chorar, redizendo o nome do filho com a ternura a coar-se pelos soluços:

— Meu Luís! Meu Luisinho! Tão vivo, minha Nossa Senhora!

Tibúrcio afastou-se e, na sala, diante da mesa em que jazia a candeia, parou com o olhar perdido, os lábios trêmulos e as lágrimas rolando em grossas gotas ao longo da face ossuda. Joana rompeu do quarto cambaleando como ébria e, vendo-o, atirou-se-lhe nos braços; ele amparou-a sem dizer palavra e, abraçados, ficaram largo tempo de pé na estreita sala obscura onde os grilos cantavam.

Joana tornou para o quarto. Tibúrcio ficou encostado à mesa, de olhos fitos na luz da candeia, que oscilava com o vento. O luar entrava alvo, caleando as paredes. Ele moveu-se com arrancado suspiro, foi até a porta, sentou-se na soleira, acendeu o cachimbo e quedou olhando o campo iluminado. De repente pareceu-lhe ouvir arrulhos — levantou a cabeça, olhando. As estrelas cintilavam na altura, a copa das árvores reluzia ao luar. Seria ilusão?

Encolheu-se e, imóvel, atento, ficou à escuta — os arrulhos continuavam. Ergueu-se impetuosamente e caminhou direito ao pombal, colando-se ao tronco da mangueira. Seriam os pombos que voltavam depois da passagem da Morte? Respondendo à sua ideia, pôs-se a resmungar enfurecido:

— Agora é tarde! Agora é tarde, malditos!

Um ruflo de asas, turturinos meigos, pios, partiram do pombal. Não havia dúvida. O rosto contraiu-se-lhe em ricto. Adiantou-se e, do meio do terreiro, olhou o pombal, caminhando resolutamente para a cabana. Joana soluçava. Ele apanhou a candeia, dirigiu-se à cozinha e, vendo o machado a um canto, tomou-o, sempre resmungando. Voltou ao terreiro e, sob a mangueira, arregaçando as mangas da camisa grossa, brandiu o machado.

Ao primeiro golpe no poste que sustentava o pombal, as aves calaram-se. Tibúrcio redobrava de esforço, arquejando. A um estalo seco afastou-se, mas a construção continuava de pé, resistindo. Encostou o machado ao tronco e, agarrando-se aos galhos, guindou-se, foi marinhando pela árvore acima, e, firmando-se numa forquilha, atirou um pontapé à grande caixa, que rapidamente pendeu, ruiu, com estrondo no terreiro. Dois pombos voaram assustados, estonteados, incertos na claridade noturna, e pousaram no teto da palhoça.

O caboclo escorregou ligeiro pelo tronco e viu dois pequenos corpos que piavam, oscilavam, arrastavam-se — eram dois borrachos. Agachou-se, tomou-os nas mãos, pôs-se a mirá-los — eram hediondos, ainda implumes, tendo apenas leve penugem sobre as nervuras do corpo engelhado e mole. O caboclo, virando-os, revirando-os nas mãos encoscoradas, sentia-lhes os ossos frágeis, e os animais debatiam-se, movendo o coto das asas, esticavam o pescoço, piavam. Rilhando os dentes, foi-os espremendo, esmagando os ossos tenros estalavam como gravetos, o sangue espirrou, escorrendo-lhe por entre os grossos dedos, pelos punhos. Em ímpeto de fúria, arremessou-os ao chão; eles bateram fofos como frutos podres que se esborracham e o caboclo espezinhou-os com rugidos surdos. Os pais arrulhavam aflitos na palha da cabana, indo e vindo.

Joana, abraçada ao filho, soluçava quando Tibúrcio entrou no quarto. Quedou diante do catre, a olhar. Subitamente a mulher estremeceu e, levantando-se de salto, agarrou o braço do marido, os olhos muito abertos, a boca em hiato, a cabeça inclinada como a ouvir vozes, rumores longínquos.

— Que é, Joana? Que é qu'ocê tem?

Ela murmurou apavorada:

— Os pombos, meu velho. Ocê tá ouvindo? — Eram os arrulhos tristes que vinham de cima da casa. — Estão voltando. Quem sabe?! Ele ainda está quente...

E havia uma esperança imensa no coração dolorido da cabocla. Tibúrcio encolheu os ombros:

— É choro deles. Estão chorando como nós. É um casal que ficou por causa dos filhos. Eu derrubei o pombal, matei os borrachos. Olha — e mostrou as mãos ensanguentadas. — Eles voaram, estão em cima da casa. Você quer ver?

Foi saindo; ela acompanhou-o. Desceram ao terreiro. Tibúrcio mostrou o pombal tombado, depois apanhou os esmagados corpos dos borrachos.

— Olha aqui...

Joana olhava sem dizer palavra. Cessara de chorar, espantada, mirando o marido, cujos olhos acesos fulguravam. Ele derreou o busto e atirou o primeiro borracho ao sapé, rugindo: "É bom?!". Atirou o segundo: "É bom?!". Os pombos abalaram espavoridos, perderam-se nas galhadas negras. "É bom?!". Joana não tirava os olhos do marido, muda, aterrada, vendo-o chorar aos arrancos, a olhar as mãos espalmadas, tintas de sangue.

— Vamos, meu velho. Foi a vontade de Deus. Está no céu.

E vagarosamente o foi levando. Entraram, e, diante do catre em que jazia o filho morto, as lágrimas romperam dos olhos de ambos, e sobre o teto da palhoça os pombos, que haviam tornado, arrulhavam doridamente.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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