4/19/2025

O Tosão de Ouro (Conto), de Maria Pinto Figueirinhas

O TOSÃO DE OURO

PRIMEIRA PARTE

Tenho-vos falado dum herói que combateu com os animais ferozes e com gigantes. Agora vou falar-vos de heróis que viajaram por mar até ao longínquo país do Tosão de Ouro.

Não vos posso dizer à certa o ano em que navegaram. Também não vos posso dizer bem por que é que partiram. Isto foi há muitos anos, e os que foram à descoberta do Tosão de Ouro revelaram-se intrépidos e praticaram um nobre feito.

Ouvi a sua história.

Quando Jasão, o filho de um rei que perdeu o seu trono, era pequenino, foi mandado pelos pais à escola regida por um singular professor.

Vivia ele numa caverna e tinha o corpo e as pernas dum cavalo branco e a cabeça e os ombros de homem. Mas era distinto educador. Ensinava os seus discípulos a serem intrépidos e também a tocar harpa, a manejar espada, a cavalgar.

Jasão viveu com ele até à adolescência. Tornou-se um hábil harpista, e além disso sabia pelejar e cavalgar bem. Quando chegou aos vinte anos correu que seu pai perdera o seu reino.

Outro Rei ocupara o trono. Soube então que era príncipe e nutriu logo o propósito de se vingar contra o pérfido que tinha destronado o seu querido pai, sucedendo-lhe à força.

Com tal plano na mente, Jasão tomou uma lança em cada mão, pôs uma pele de leão sobre os ombros e seguiu viagem, entregando aos ventos os seus louros cabelos.

A parte do vestuário de que mais se orgulhava era um par de sandálias que tinham sido de seu pai. Fechavam no peito do pé com fivelas de ouro.

Quando ele passava, todos corriam a contemplá-las. Na sua jornada pela montanha, chegou a um rio caudaloso que lhe cortava a vereda. Apesar da estiagem própria da estação, o rio engrossara tanto com copiosas chuvas e impunha-se tão largo e profundo, que Jasão estacou na margem a cismar como havia de fazer a travessia.

Via-se que o leito do rio se apertava entre as escarpadas rochas, algumas das quais se erguiam acima das águas.

Era um rio extremamente profundo para que Jasão o pudesse passar a vau, demasiadamente caudaloso para o cortar a nado. Não via qualquer ponte. Se tivesse mesmo um barco, despedaçá-lo-iam as ondas de encontro à penedia.

Olhem o pobre rapaz que não sabe como há de atravessar um riozinho como este! disse ao lado uma voz misteriosa Ou terá medo de molhar as suas sandálias de ouro fino?

Jasão olhou à roda surpreendido, porque não tinha notado ninguém ao pé dele. Viu então ao seu lado uma velha com um manto roto e apoiada a um cajado e com um pavão aos ombros. Parecia velhíssima e débil, mas os seus olhos cinzentos e grandes eram tão formosos que, quando os fitou Jasão, ele nada mais quis contemplar.

Aonde vais, Jasão? perguntou ela que, como vedes, sabia o nome do herói.

Vou ordenar ao pérfido Rei que abandone o trono de meu pai e que me deixe reinar no lugar dele respondeu o jovem.

Ah volveu a velha se é só isso o que vais fazer, não precisas de te apressar muito. Leva-me às tuas costas, como bom rapaz que és e faz-me passar o rio. Muitas vezes o tenho atravessado com o meu pavão como qualquer pessoa.

Boa mulher volveu Jasão bem vês que o rio está terrível. Se eu pudesse nadar, iríamos mais depressa sobre ele do que vão aquelas árvores levadas na cheia. De bom grado te ajudaria, mas assim não sou bastante forte para a travessia.

Nesse caso replicou ela também não tens a força precisa para destronar o usurpador. E, Jasão, se não puderes ajudar uma velha, não poderás nunca ser Rei. Mas faz como quiseres. Outro me levará às costas, ou tentarei fazer sozinha a travessia.

E a velha meteu no rio o seu cajado como que a achar o lugar melhor para dar o primeiro passo.

Mas Jasão já se arrependera do que tinha dito.

Vou experimentar disse ele se o rio te levar, também me levará a mim.

Nada receies replicou a velha passaremos sem perigo.

E agarrou logo com os braços o pescoço de Jasão que, atravessando o areal, entrou resolutamente no rio. O pavão continuava impávido ao ombro da velha.

A meio do caminho os pés de Jasão entalaram-se entre duas rochas, e ele fez tal esforço para os arrancar, que uma das sandálias perdeu-se.

Que tens, Jasão? perguntou a velha.

Ah!-respondeu ele perdi uma sandália entre as rochas. Como hei de eu agora apresentar-me diante do Rei só com uma sandália?

Não te aflijas. Terás imediatamente um par de sandálias melhor disse a velha com olhar generoso. Não deixes que o Rei veja o teu pé descalço — e vê-lo-ás pálido como a cinza.

Jasão passou o rio, depondo na outra margem a velha com o seu pavão.

Eis o teu caminho disse-lhe então a velha. Segue-o, meu bom Jasão. As minhas bênçãos vão contigo. E, quando te sentares no teu trono, lembra-te da velha que ajudaste a passar o rio.


SEGUNDA PARTE

Depois que ela se retirou, seguiu Jasão o seu caminho. Depressa chegou a uma cidade, que ficava nas faldas duma montanha, e perto do mar.

Apenas começou a atravessar as ruas, correu todo o povo a mirá-lo, tão alto e formoso ele era.

Alguém nisto o chamou.

Belo mancebo, quem sois e donde vindes? Que quereis vós da cidade?

Chamo-me Jasão. Venho ver o vosso Rei. Dizei-me onde é o seu paço.

O homem a quem falava, voltou-se lívido.

Não vês, meu filho, que atravessas a cidade só com um pé calçado?

Que tem isso? replicou Jasão. Perdi a outra sandália no rio.

É preciso saberdes que muitos anos antes, o pérfido Rei tinha sido avisado por um Carvalho Falante de que um homem, calçando só uma sandália o havia de destronar.

E eis que esse homem entrava na cidade.

Chegado ao portal, bradou:

Sai cá fora, falso Rei, e combate como um homem pela tua coroa.

O Rei saiu e perguntou:

Quem és tu, atrevido moço?

Sou Jasão, o senhor de todo este país!

Meu bom moço volveu o monarca sê bem-vindo ao meu reino. Não tenho filho que me suceda, serás o meu herdeiro, embora este reino seja bem triste. Mas entra, e banqueteia-te! E depois conta-me a tua vida.

Por fim, disse Jasão ao Rei:

Por que me olhas com tanta tristeza? Que significa o teu dito há pouco de o reino ser triste?

Então o Rei respondeu:

Há mais de sete longos anos que não tenho uma só noite de descanso, e nunca o terei, se o Tosão de Ouro não vier para minha casa.

E contou a Jasão a história do Tosão de Ouro.

Pertencia o Tosão a um carneiro que tinha levado às costas duas crianças, quando corriam perigo de vida, levando-as sobre terra e mar.

Uma das crianças tinha-se afogado, mas a outra fora levada a são e salvo para a praia pelo carneiro que, logo que a depôs, caíra morto.

Em memória deste feito, o Tosão do pobre carneiro morto transformara-se em Ouro, e tornou-se uma das mais belas maravilhas do mundo.

Estava pendurado na árvore dum bosque sagrado e guardava-o um enorme dragão.

Por muito tempo ficou Jasão triste e silencioso. Já ouvira falar no Tosão de Ouro, mas julgava ser coisa inatingível para um homem.

Quando o Rei o viu silencioso, começou a falar-lhe doutras coisas, e pareceu-lhe tão bom, que Jasão, jovem e simples, não pôde conter-se que lhe não dissesse:

Acho-te um homem generoso. Por que é que tu destronaste meu pai?

O Rei sorriu. Depois disse:

Teu pai tornara-se velho e doente e tomei conta do reino por vontade dele.

Isto, aqui para nós, era falso.

Mais uma cousa acrescentou o monarca. Há um homem que eu temo mais do que a todos os homens da Terra. Sei que, se ele estiver entre nós, chega a minha ruína. Poderás tu, Jasão, dar-me um plano para eu mesmo me livrar desse homem?

Depois de algum silêncio, Jasão respondeu, um tanto irônico:

No teu caso, mandava-o procurar o Tosão de Ouro, porque, se ele obedecer, nunca mais o verás.

Um sorriso iluminou os lábios do Rei.

Jasão dissera aquilo e estremecera.

Mas o Rei disse apenas:

Meu filho, esse homem seguirá já para a empresa.

Queres-te referir a mim? gritou Jasão em cólera. Mas dizes bem, meu Rei. Eu amo a glória. Irei à procura desse Tosão de Ouro. Mas hás de permitir que, quando eu voltar, me darás o meu reino pelo Tosão que trarei.

O Rei fitou-o e respondeu:

Prometo. Não me envergonharei de dar o meu reino ao homem que me trouxer esse Tosão.


TERCEIRA PARTE

Mandou logo o Rei anunciar na praça, por meio das trombetas dos seus arautos, que o Príncipe Jasão ia à procura do Tosão de Ouro e que precisava do auxílio de quarenta e nove dos mais intrépidos e fortes moços do mundo para tripularem o seu navio e afrontarem todos os perigos.

Acudiram logo a este apelo os mais valentes homens de toda a Grécia. Alguns já tinham fama de heróis. Hércules era um deles.

Os chefes gregos construíram um navio para cinquenta heróis, tão grande como nunca se fizera semelhante.

Chamaram-lhe a nau Argo, porque a tinha feito um homem do mesmo nome. Pronto tudo para a viagem, os heróis foram para bordo e empolgaram os remos. O navio deslizou sobre as ondas ao som duma doce música.

Navegaram durante muitos dias, passando o tempo com histórias e músicas. Por fim, chegaram ao lugar onde se guardava o Tosão de Ouro.

Aportaram à noite e esconderam-se entre as árvores e as moitas até ao dia seguinte.

Quando o Rei do país soube da chegada deles, mandou chamar Jasão e disse-lhe:

Sede bem-vindo, valoroso Jasão. A vossa viagem foi de recreio?

Grande senhor volveu o herói eu venho buscar o Tosão de Ouro que, como sabeis, está pendurado aqui numa árvore do vosso reino. Peço que me guieis para eu o ir tomar.

Mas o Rei prezava o Tosão de Ouro mais do que todos os seus tesouros.

Não sabeis perguntou-lhe ele asperamente o que tendes de vencer para o possuirdes?

Ouvi dizer replicou Jasão que um dragão está deitado ao pé da árvore, e que há o perigo de ser morto por ele.

É verdade disse o Rei mas há perigos ainda maiores do que esse. Tendes primeiro de dominar os dois ferozes touros, atrelá-los à charrua e lavrar com eles a terra, Depois, tendes de semear alguns dentes de dragão, e que eu vos hei de dar.

Enquanto o Rei falava, a sua filha, uma adorável Princesa, estava ao lado dele. Ela angustiava-se muito pela sorte de Jasão. Fez-lhe o gesto de que o socorreria.

Quando o pai se retirou, ela chamou Jasão, deu-lhe um unguento e uma violeta que, lhe disse, o ajudaria em todos os trabalhos.

No dia seguinte, o Rei fez sair os seus touros. Eram dois grandes animais com punhais de aço nas pontas. Os seus cascos eram de cobre. Grandes ondas de fogo jorravam das suas ventas.

Logo que Jasão apareceu, começaram a mugir e a ferir a terra com os seus cascos de cobre. Toda a relva à roda se incendiou. Tão quente era o hálito das feras, que secaram à roda as árvores, ficando em brasa. Mas, quanto a Jasão, as chamas correram-lhe à volta do corpo e não o queimaram, porque se untara, da cabeça aos pés, com o unguento que lhe dera a Princesa. E, caminhando friamente para os ferozes touros, subjugou-os pelo pescoço.

Era agora fácil atrelá-los à charrua. A fúria dos touros esfriou logo que viram que Jasão não os temia. Jasão nisto começou a lavrar e em pouco tempo uma larga faixa de terreno ficou boa para se semearem os dentes do dragão. Semeou-os depois Jasão e ficou na orla do campo à espera do que ia dar-se.

Imediatamente se viram pontas de lanças e de espadas, e depois relâmpagos de capacetes de cobre, até que por fim levantou-se uma fila de escuros guerreiros com espada ou lança na mão direita.

Enquanto saíram os dentes do dragão, ficaram os homens armados em linha combativa e, ao verem Jasão, correram para ele de espada ao alto, gritando:

Cautela com o Tosão de Ouro!

A Princesa que estava perto, disse a Jasão que apanhasse uma pedra do chão e a atirasse em cima deles. Assim o fez o Príncipe e a pedra foi-os ferindo a todos um por um.

Cada um deles julgou que o seu camarada mais próximo o agredira e tiveram então entre eles uma luta tão feroz que se mataram uns aos outros.

Depois disto, Jasão ficou livre para se dirigir ao bosque sagrado.

Estava num vale, cortado por uma rápida torrente.

Umas vezes o dragão estava nesta torrente de guarda ao caminho, outras vezes enroscava-se no carvalho onde estava pendurado o Tosão de Ouro.

Jasão avistou logo o Tosão de Ouro. Mas, ao pé do carvalho colossal, lá estava o dragão. Quando o Príncipe se aproximou, ouviu-se um silvo, e a medonha cabeça e metade do corpo da fera ergueram-se ameaçadoramente.

Mas Jasão levantou diante do monstro a florinha que a Princesa lhe tinha dado.

Imediatamente o dragão caiu em grande sonolência e aquietou-se até cair em profundo sono.

Jasão apoderou-se logo da presa. Era, enfim senhor do Tosão de Ouro!

Retirou-se logo Jasão com os outros heróis, e ao nascer do sol do dia seguinte saíam pelo mar fora.

Quando o Rei soube que o Tosão tinha sido arrebatado, correu logo com o seu exército sobre a praia, mas Jasão e os seus já tinham desaparecido.

Mandou o Rei atrás deles os seus navios de guerra, mas não puderam alcançar a nau Argo.

Regressaram os heróis sem perigo à sua pátria, e Jasão foi aclamado Rei e governou o reino por muitos anos com muitas felicidades.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
 

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