O TOSÃO DE OURO
PRIMEIRA PARTE
Tenho-vos falado dum herói que
combateu com os animais ferozes e com gigantes. Agora vou falar-vos de heróis
que viajaram por mar até ao longínquo país do Tosão de Ouro.
Não vos posso dizer à certa o ano
em que navegaram. Também não vos posso dizer bem por que é que partiram. Isto
foi há muitos anos, e os que foram à descoberta do Tosão de Ouro revelaram-se
intrépidos e praticaram um nobre feito.
Ouvi a sua história.
Quando Jasão, o filho de um rei que
perdeu o seu trono, era pequenino, foi mandado pelos pais à escola regida por
um singular professor.
Vivia ele numa caverna e tinha o
corpo e as pernas dum cavalo branco e a cabeça e os ombros de homem. Mas era
distinto educador. Ensinava os seus discípulos a serem intrépidos e também a
tocar harpa, a manejar espada, a cavalgar.
Jasão viveu com ele até à
adolescência. Tornou-se um hábil harpista, e além disso sabia pelejar e
cavalgar bem. Quando chegou aos vinte anos correu que seu pai perdera o seu
reino.
Outro Rei ocupara o trono. Soube
então que era príncipe e nutriu logo o propósito de se vingar contra o pérfido
que tinha destronado o seu querido pai, sucedendo-lhe à força.
Com tal plano na mente, Jasão tomou
uma lança em cada mão, pôs uma pele de leão sobre os ombros e seguiu viagem,
entregando aos ventos os seus louros cabelos.
A parte do vestuário de que mais se
orgulhava era um par de sandálias que tinham sido de seu pai. Fechavam no peito
do pé com fivelas de ouro.
Quando ele passava, todos corriam a
contemplá-las. Na sua jornada pela montanha, chegou a um rio caudaloso que lhe
cortava a vereda. Apesar da estiagem própria da estação, o rio engrossara tanto
com copiosas chuvas e impunha-se tão largo e profundo, que Jasão estacou na
margem a cismar como havia de fazer a travessia.
Via-se que o leito do rio se
apertava entre as escarpadas rochas, algumas das quais se erguiam acima das
águas.
Era um rio extremamente profundo
para que Jasão o pudesse passar a vau, demasiadamente caudaloso para o cortar a
nado. Não via qualquer ponte. Se tivesse mesmo um barco, despedaçá-lo-iam as
ondas de encontro à penedia.
—Olhem o
pobre rapaz que não sabe como há de atravessar um riozinho como este! — disse ao lado uma voz misteriosa Ou terá medo de molhar as
suas sandálias de ouro fino?
Jasão olhou à roda surpreendido,
porque não tinha notado ninguém ao pé dele. Viu então ao seu lado uma velha com
um manto roto e apoiada a um cajado e com um pavão aos ombros. Parecia
velhíssima e débil, mas os seus olhos cinzentos e grandes eram tão formosos
que, quando os fitou Jasão, ele nada mais quis contemplar.
— Aonde vais,
Jasão? — perguntou ela que, como vedes, sabia o nome do herói.
— Vou ordenar
ao pérfido Rei que abandone o trono de meu pai e que me deixe reinar no lugar
dele respondeu o jovem.
— Ah — volveu a velha se é só isso o que vais fazer, não precisas de
te apressar muito. Leva-me às tuas costas, como bom rapaz que és e faz-me
passar o rio. Muitas vezes o tenho atravessado com o meu pavão como qualquer
pessoa.
— Boa mulher — volveu Jasão — bem vês que o rio está terrível. Se
eu pudesse nadar, iríamos mais depressa sobre ele do que vão aquelas árvores
levadas na cheia. De bom grado te ajudaria, mas assim não sou bastante forte
para a travessia.
— Nesse caso — replicou ela — também não tens a força precisa
para destronar o usurpador. E, Jasão, se não puderes ajudar uma velha, não
poderás nunca ser Rei. Mas faz como quiseres. Outro me levará às costas, ou
tentarei fazer sozinha a travessia.
E a velha meteu no rio o seu cajado
como que a achar o lugar melhor para dar o primeiro passo.
Mas Jasão já se arrependera do que
tinha dito.
— Vou
experimentar — disse ele — se o rio te
levar, também me levará a mim.
— Nada
receies — replicou a velha — passaremos
sem perigo.
E agarrou logo com os braços o
pescoço de Jasão que, atravessando o areal, entrou resolutamente no rio. O
pavão continuava impávido ao ombro da velha.
A meio do caminho os pés de Jasão
entalaram-se entre duas rochas, e ele fez tal esforço para os arrancar, que uma
das sandálias perdeu-se.
— Que tens,
Jasão? — perguntou a velha.
— Ah!-respondeu
ele — perdi uma sandália entre as rochas. Como hei de eu agora
apresentar-me diante do Rei só com uma sandália?
— Não te
aflijas. Terás imediatamente um par de sandálias melhor — disse a velha com olhar generoso. — Não deixes que o Rei veja o teu pé descalço — e vê-lo-ás pálido como a cinza.
Jasão passou o rio, depondo na
outra margem a velha com o seu pavão.
— Eis o teu
caminho disse-lhe então a velha. Segue-o, meu bom Jasão. As minhas bênçãos vão
contigo. E, quando te sentares no teu trono, lembra-te da velha que ajudaste a
passar o rio.
SEGUNDA PARTE
Depois que ela se retirou, seguiu
Jasão o seu caminho. Depressa chegou a uma cidade, que ficava nas faldas duma
montanha, e perto do mar.
Apenas começou a atravessar as
ruas, correu todo o povo a mirá-lo, tão alto e formoso ele era.
Alguém nisto o chamou.
— Belo
mancebo, quem sois e donde vindes? Que quereis vós da cidade?
— Chamo-me
Jasão. Venho ver o vosso Rei. Dizei-me onde é o seu paço.
O homem a quem falava, voltou-se lívido.
— Não vês,
meu filho, que atravessas a cidade só com um pé calçado?
— Que tem
isso? — replicou Jasão. — Perdi a
outra sandália no rio.
É preciso saberdes que muitos anos
antes, o pérfido Rei tinha sido avisado por um Carvalho Falante de que um
homem, calçando só uma sandália o havia de destronar.
E eis que esse homem entrava na
cidade.
Chegado ao portal, bradou:
— Sai cá
fora, falso Rei, e combate como um homem pela tua coroa.
O Rei saiu e perguntou:
— Quem és tu,
atrevido moço?
— Sou Jasão,
o senhor de todo este país!
— Meu bom
moço volveu o monarca — sê bem-vindo ao meu reino. Não
tenho filho que me suceda, serás o meu herdeiro, embora este reino seja bem
triste. Mas entra, e banqueteia-te! E depois conta-me a tua vida.
— Por fim,
disse Jasão ao Rei:
— Por que me
olhas com tanta tristeza? Que significa o teu dito há pouco de o reino ser
triste?
Então o Rei respondeu:
— Há mais de
sete longos anos que não tenho uma só noite de descanso, e nunca o terei, se o
Tosão de Ouro não vier para minha casa.
E contou a Jasão a história do
Tosão de Ouro.
Pertencia o Tosão a um carneiro que
tinha levado às costas duas crianças, quando corriam perigo de vida, levando-as
sobre terra e mar.
Uma das crianças tinha-se afogado,
mas a outra fora levada a são e salvo para a praia pelo carneiro que, logo que
a depôs, caíra morto.
Em memória deste feito, o Tosão do
pobre carneiro morto transformara-se em Ouro, e tornou-se uma das mais belas
maravilhas do mundo.
Estava pendurado na árvore dum
bosque sagrado e guardava-o um enorme dragão.
Por muito tempo ficou Jasão triste
e silencioso. Já ouvira falar no Tosão de Ouro, mas julgava ser coisa
inatingível para um homem.
Quando o Rei o viu silencioso,
começou a falar-lhe doutras coisas, e pareceu-lhe tão bom, que Jasão, jovem e
simples, não pôde conter-se que lhe não dissesse:
— Acho-te um
homem generoso. Por que é que tu destronaste meu pai?
O Rei sorriu. Depois disse:
— Teu pai
tornara-se velho e doente e tomei conta do reino por vontade dele.
Isto, aqui para nós, era falso.
— Mais uma
cousa acrescentou — o monarca. — Há um homem que eu temo mais do que a todos os homens da
Terra. Sei que, se ele estiver entre nós, chega a minha ruína. Poderás tu,
Jasão, dar-me um plano para eu mesmo me livrar desse homem?
Depois de algum silêncio, Jasão
respondeu, um tanto irônico:
— No teu
caso, mandava-o procurar o Tosão de Ouro, porque, se ele obedecer, nunca mais o
verás.
Um sorriso iluminou os lábios do
Rei.
Jasão dissera aquilo e estremecera.
Mas o Rei disse apenas:
— Meu filho,
esse homem seguirá já para a empresa.
— Queres-te
referir a mim? — gritou Jasão em cólera. — Mas dizes bem, meu Rei. Eu amo a glória. Irei à procura desse
Tosão de Ouro. Mas hás de permitir que, quando eu voltar, me darás o meu reino
pelo Tosão que trarei.
O Rei fitou-o e respondeu:
— Prometo.
Não me envergonharei de dar o meu reino ao homem que me trouxer esse Tosão.
TERCEIRA PARTE
Mandou logo o Rei anunciar na
praça, por meio das trombetas dos seus arautos, que o Príncipe Jasão ia à
procura do Tosão de Ouro e que precisava do auxílio de quarenta e nove dos mais
intrépidos e fortes moços do mundo para tripularem o seu navio e afrontarem
todos os perigos.
Acudiram logo a este apelo os mais
valentes homens de toda a Grécia. Alguns já tinham fama de heróis. Hércules era
um deles.
Os chefes gregos construíram um
navio para cinquenta heróis, tão grande como nunca se fizera semelhante.
Chamaram-lhe a nau Argo, porque a
tinha feito um homem do mesmo nome. Pronto tudo para a viagem, os heróis foram
para bordo e empolgaram os remos. O navio deslizou sobre as ondas ao som duma
doce música.
Navegaram durante muitos dias,
passando o tempo com histórias e músicas. Por fim, chegaram ao lugar onde se
guardava o Tosão de Ouro.
Aportaram à noite e esconderam-se
entre as árvores e as moitas até ao dia seguinte.
Quando o Rei do país soube da
chegada deles, mandou chamar Jasão e disse-lhe:
— Sede bem-vindo,
valoroso Jasão. A vossa viagem foi de recreio?
— Grande
senhor — volveu o herói — eu venho
buscar o Tosão de Ouro que, como sabeis, está pendurado aqui numa árvore do vosso
reino. Peço que me guieis para eu o ir tomar.
Mas o Rei prezava o Tosão de Ouro
mais do que todos os seus tesouros.
— Não sabeis — perguntou-lhe ele asperamente — o que
tendes de vencer para o possuirdes?
— Ouvi dizer — replicou Jasão — que um
dragão está deitado ao pé da árvore, e que há o perigo de ser morto por ele.
— É verdade — disse o Rei — mas há perigos ainda maiores do que
esse. Tendes primeiro de dominar os dois ferozes touros, atrelá-los à charrua e
lavrar com eles a terra, Depois, tendes de semear alguns dentes de dragão, e
que eu vos hei de dar.
Enquanto o Rei falava, a sua filha,
uma adorável Princesa, estava ao lado dele. Ela angustiava-se muito pela sorte
de Jasão. Fez-lhe o gesto de que o socorreria.
Quando o pai se retirou, ela chamou
Jasão, deu-lhe um unguento e uma violeta que, lhe disse, o ajudaria em todos os
trabalhos.
No dia seguinte, o Rei fez sair os
seus touros. Eram dois grandes animais com punhais de aço nas pontas. Os seus
cascos eram de cobre. Grandes ondas de fogo jorravam das suas ventas.
Logo que Jasão apareceu, começaram
a mugir e a ferir a terra com os seus cascos de cobre. Toda a relva à roda se
incendiou. Tão quente era o hálito das feras, que secaram à roda as árvores,
ficando em brasa. Mas, quanto a Jasão, as chamas correram-lhe à volta do corpo
e não o queimaram, porque se untara, da cabeça aos pés, com o unguento que lhe
dera a Princesa. E, caminhando friamente para os ferozes touros, subjugou-os
pelo pescoço.
Era agora fácil atrelá-los à
charrua. A fúria dos touros esfriou logo que viram que Jasão não os temia.
Jasão nisto começou a lavrar e em pouco tempo uma larga faixa de terreno ficou
boa para se semearem os dentes do dragão. Semeou-os depois Jasão e ficou na
orla do campo à espera do que ia dar-se.
Imediatamente se viram pontas de
lanças e de espadas, e depois relâmpagos de capacetes de cobre, até que por fim
levantou-se uma fila de escuros guerreiros com espada ou lança na mão direita.
Enquanto saíram os dentes do
dragão, ficaram os homens armados em linha combativa e, ao verem Jasão,
correram para ele de espada ao alto, gritando:
— Cautela com
o Tosão de Ouro!
A Princesa que estava perto, disse
a Jasão que apanhasse uma pedra do chão e a atirasse em cima deles. Assim o fez
o Príncipe e a pedra foi-os ferindo a todos um por um.
Cada um deles julgou que o seu
camarada mais próximo o agredira e tiveram então entre eles uma luta tão feroz
que se mataram uns aos outros.
Depois disto, Jasão ficou livre
para se dirigir ao bosque sagrado.
Estava num vale, cortado por uma
rápida torrente.
Umas vezes o dragão estava nesta
torrente de guarda ao caminho, outras vezes enroscava-se no carvalho onde
estava pendurado o Tosão de Ouro.
Jasão avistou logo o Tosão de Ouro.
Mas, ao pé do carvalho colossal, lá estava o dragão. Quando o Príncipe se
aproximou, ouviu-se um silvo, e a medonha cabeça e metade do corpo da fera
ergueram-se ameaçadoramente.
Mas Jasão levantou diante do
monstro a florinha que a Princesa lhe tinha dado.
Imediatamente o dragão caiu em
grande sonolência e aquietou-se até cair em profundo sono.
Jasão apoderou-se logo da presa.
Era, enfim senhor do Tosão de Ouro!
Retirou-se logo Jasão com os outros
heróis, e ao nascer do sol do dia seguinte saíam pelo mar fora.
Quando o Rei soube que o Tosão
tinha sido arrebatado, correu logo com o seu exército sobre a praia, mas Jasão
e os seus já tinham desaparecido.
Mandou o Rei atrás deles os seus
navios de guerra, mas não puderam alcançar a nau Argo.
Regressaram os heróis sem perigo à
sua pátria, e Jasão foi aclamado Rei e governou o reino por muitos anos com
muitas felicidades.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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