4/15/2025

O Tebas (Conto), de Lúcio Pereira

 

O TEBAS

Era um bonito galo, branco, airoso, peito empolado, crista inclinada para um lado, em faceira negligência, olhar vivíssimo e perscrutador.

Sultão no terreiro do Senhor. Manoel Colosso, e herói naquele centro de reprodução, o Tebas tinha a glória de ser um dos maiores e mais fecundos troncos de geração; sua descendência andava à povoar centenas de galinheiros, e a abastecer hotéis e hospitais.

O dono, Senhor Manoel Colosso, era um judeu hercúleo que levantava 10 arrobas com uma mão só, taverneiro, e mercante de ovos e galinhas, célebre na cidade pelas quatro carraspanas que tomava invariavelmente em cada ano: no domingo de entrudo, no sábado de Aleluia, no mês de Julho e lá pelo meio de Outubro.

Fora destas quatro épocas, era de uma temperança exemplar; não era, pois, um borracho.

Não fossem os quatro balanços que dava em seu estabelecimento anualmente, e só enfiaria a toca uma vez no fim do ano.

Mas, o processo da escrituração de sua casa era de uma simplicidade quase primitiva: um único caderno, forrado com uma capa de metim pardo, desempenhava todas as funções de Diário, Auxiliar, Razão e Caixa.

Quatro vezes no ano, o Senhor Manoel somava aquilo tudo, balançava o Ativo e o Passivo, olhava para os lucros de sua taverna, e estalava a língua:

— Muito bem... muito bem...

E chamava então a Fortunata, uma mulata quarentona, gorda e simpática, que, junto ao Colosso, desempenhava todos os cargos, desde cozinheira até dona de casa...

A Fortunata acudia lá de dentro, sacudida, risonha, faceira, ao chamado do patrão.

E o Manoel Colosso dizia-lhe n’um misto de seriedade e sorriso, como quem quer ocultar modestamente a felicidade que está sentindo:

— Oh, rapariga; escolhe aí das prateleiras o mastigo e a engorgitação, e arranja para hoje a petisqueira.

O negócio deu para a ceia...

E, para começar, desde logo, as manifestações de regozijo, o Colosso tomava um copo de meio quartilho, abria a torneira do quinto de vinho virgem, e engorgitava uma dose.

A mulata voltava logo para a cozinha, carregada de latas de ervilhas e azeitonas, cebolas e bacalhau, ovos e toucinho, levando também uma dose de vinho para ir consumindo ao calor do fogão.

Nessas ocasiões, o patrão era de uma admirável generosidade.

***

Diziam que o Senhor Manoel era um homem sem consciência, talvez devido aos preços excessivos pelos quais reputava seus gêneros, e pela falta de caridade para quem lhe batia à porta.

Mas, ele ria-se, e depois, olhando com modos de seriedade para os outros, perguntava:

— Mas, franqueza, franqueza: Ora, vocês não me dirão que diabo de história é a tal consciência de que vocês falam? … Serei um bruto, mas também não sei mentir; sou homem de bem. Posso garantir-lhe que não conheço essa história de consciência.

E, para que demônio a quereria eu, afinal?

Pago o que devo; não sou ladrão, nem jogador; vivo do meu negócio; então para que preciso eu disso que vocês dizem que eu não tenho?!

Alguns achavam verdadeira a lógica do Colosso; outros sentiam profunda aversão pelo taverneiro.

***

O Tebas, como vimos, era um dos principais elementos da fortuna do Colosso.

Quando este ia ao terreiro e tomava-o nas mãos, o inteligente, lisonjeado com aquela distinção, e com aquelas carícias do patrão, fazia uns — oh! Oh! — de alegria, e deixava-se ficar nas mãos do Colosso, contente e submisso.

Só este e a Fortunata pegavam o Tebas; aliás, já não era mais o escravo dócil e amigo, mas o guarda zeloso do terreiro, empinando-se todo, e agredindo à esporadas o estranho que tentava tocar em si, ou na galinhada do seu harém.

A Fortunata era ainda mais amiga do Tebas; reservava-lhe sempre um prato das sobras do jantar, quinhão que não dava a todas as galinhas, porque aquilo não chegava para tanta criação.

O chefe do terreiro, privilegiado, tão dócil, tão valente, tão amigo, bem merecia aquela predileção.

A mulata do Manoel punha no chão o prato da comida e entregava ao Tebas o apetitoso jantar, enquanto espantava com o avental o resto da criação, ávida de entrar no grude; mas o inteligente animal dava apenas algumas bicadas na feijoada; e o grande, justo, abnegado, começava a chamar as galinhas, como fazem estas aos pintainhos quando descobrem uma migalha pelo chão.

Então, a Fortunata tocada pela abnegação do Tebas, deixava que toda a criação acudisse ao chamado do pastor, e compartilhasse a refeição do herói.

E, enquanto a galinhada devorava o arroz e o feijão, o sublime Tebas beliscava também, simulando que comia, talvez para não desgostar sua nobre benfeitora, até que não restasse no prato um grão de arroz.

***

Ao fim de 40 anos, o Senhor Manoel deu o 40º e último balanço no negócio.

Não precisava mais trabalhar!

Oitenta contos em moeda, dez nas prateleiras, e mais a casa que o abrigava do relento; para que mais moirejar?

Aquilo tudo a render, dava-lhe facilmente aí por uns 500$000 por mês, e a pança para o ar!

A ceia desse dia faustoso devia ser excepcional: alguns amigos foram convidados e a Fortunata foi avisada para preparar mesa para dez pessoas.

O grande Tebas estava então velho, fatigado, e quase imprestável.

Comparando a sorte do galo, outrora tão forte e tão belo, com decrepitude que o avassalava, ao tempo em que para ela e Senhor Manoel raiava uma aurora de paz e abastança, que poderiam gozar por mais 20 ou 30 anos, a nobre Fortunata não pode conter duas lágrimas que lhe rolaram pelas faces gordurosas!

Foi nesse momento, quando enxugava os olhos com o avental, que sentiu os passos do Senhor Manoel, que entrava na cozinha.

— Oh, Fortunata — disse ele no tom mais sincero deste mundo —, acho bom matar o Tebas para a ceia; aquilo já de nada presta, e se há de morrer por aí de peste qualquer dia, é melhor aproveitá-lo em um assado de forno!

A mulata ergueu os olhos, assombrada, para a cara do Colosso, como quem ouve revelação tão espantosa que não pôde compreender.

— O que, Senhor Manoel? Matar o Tebas?!

— Pois então? Para que demônio vamos nós guardá-lo?

— O Senhor está doido, senhor Manoel?!

— Doido? Oh, Fortunata, parece-me que estás com pena de matar o galo? Ou é nojo de comê-lo?

A mulata abriu mais os olhos e empalideceu.

Não podia crer naquilo que ouvia! Vivera dez anos com Senhor Manoel, mas nunca o supusera homem capaz de tão negra e cruel ingratidão!

Se o Colosso tivesse começado a beber desde cedo, iria jurar que estava embriagado, e dizia-lhe, por isso, coisas tão monstruosas. Mas o homem estava em seu perfeito juízo.

E encarou-o, resoluta:

— Pois mate o Senhor o Tebas, se tem coragem para isso, Senhor Manoel; eu, seria capaz de matar-me antes, se fosse obrigada à maltratar, sequer, esse pobre animal!

O Colosso sorriu ante aquela esquisitice da Fortunata.

Era a tal história de consciência de que sempre ouvia falar!

E retirou-se para o quintal.

Por um justo pressentimento a mulata seguiu-o a certa distância, resolvida a disputar, até o sacrifício, a vida do pobre animal, se o Senhor Manoel tentasse matá-lo.

Mal o Colosso chegou ao terreiro, o Tebas, habituado aos seus afagos, aproximou-se de seu dono, alegre, submisso e confiante.

Mas, antes que a Fortunata tivesse tempo de intervir, o malvado tomou o galo nas mãos, torceu-lhe rapidamente o pescoço, e jogou-o no terreiro onde caiu estrebuchado.

— Ora aí está, rapariga — disse cinicamente o Manoel —, já te poupei o trabalho; deixa-te de tolices e prepara o Tebas para um assado de forno, apesar de que já deve ter a carne muito dura...

E foi para o interior da casa, onde tinha deixado dois amigos de palestra.

A Fortunata quase louca, assim com uma Mãe em frente do filho que agoniza, levantou o desgraçado galo, na esperança de ainda restituí-lo à vida.

No terreiro, as galinhas com os pescoços espichados, imóveis, assombradas, de olhos paralisados, pareciam fazer esforço impossível para compreender tão horrível espetáculo.

E trêmula, soluçante, e quase desvairada, a mulata voltou a correr para a cozinha, levando consigo o Tebas moribundo!

***

Às nove horas da noite os convivas do abastado capitalista Senhor Manoel Colosso, ex-taverneiro, rodeavam a apetitosa mesa da ceia.

Entre outros pratos cheirosos e gordurosos, via-se um galo assado, recheado, de papo para o ar, pernas decepadas e ligadas com fios de retrós, e condecorado com duas cebolas cruas no peito.

A cozinheira do Manoel tinha se esmerado na ceia dessa noite.

Uma longa bateria de garrafas de Virgem e do Porto guarneciam as trincheiras levantadas entre os petiscos e os convidados.

Entraram pela bacalhoada e terminaram no leitão.

Galo assado!

Quem é que lá ia comer uma perna de galo, tendo o estômago abarrotado de porco e bacalhau?

O infeliz assado foi repudiado tacitamente.

O Colosso, que tinha observado o desprezo de seus amigos pelo assado que, ele julgava, seria o soberbo prato da noite, ficou triste e pensativo.

— Ora pílulas! Então podia ter poupado o galo.

Aqueles restos do banquete seriam jogados fora no dia seguinte, ou distribuídos pelos mendigos que lhe batessem à porta, se é que algum não o conhecia como homem sem caridade...

A Fortunata tinha razão, muita razão!

No meio dessas reflexões, o Colosso sentiu uma opressão sobre o epigástrio, e uma lentidão nas pancadas do coração...

Veio-lhe à boca um sabor amargo.

Pela primeira vez lembrou-se do remorso. Não seria isto que sentia?

— Ora essa! — refletia —, se ele tivesse matado um homem, vá lá... era um assassino, porque só era criminoso quem matava seu semelhante. Mas, um galo?... Tinha que ver!...

E sacudia a cabeça, como tentando repelir aquela obsessão que começava a dominá-lo.

— Sou um idiota,— refletia o Senhor Manoel — o remorso seria uma coisa ridícula!

Mas, como se alguém lhe falasse dentro da imaginação, distinguia uma voz que lhe dizia intimamente:

— Bárbaro! Ingrato! Cruel!

O Colosso tomou uma dupla dose de vinho: procurava então embebedar-se até perder a consciência.

Mas, por um fenômeno psicológico, de uma grandeza eloquente, o espírito criminoso atribulado necessita de uma porção enorme de álcool para chegar à embriaguez.

No meio de um regozijo sincero, um homem embriaga-se com algumas taças de champanhe; mas, no desassossego da alma culpada, a bebida irrita, sendo impotente para atordoar o espírito ao ponto de lhe obscurecer a realidade do crime!

O homem pode embriagar-se para cometer um crime e consegue -o; mas, se após o delito, tenta alcoolizar-se, com o fim de acalmar o brado da consciência, dificilmente ou nunca o conseguirá, porque a tensão do espírito é superior à ação perturbadora do álcool.

Ao mesmo fenômeno estão sujeitos os espíritos profundamente preocupados em assuntos graves de qualquer natureza.

Nunca o Senhor Manoel Colosso sentiu, mau grado seu, tão lúcida sua razão!

***

À meia-noite, a sala do festim estava deserta; sobre a mesa jaziam os destroços da ceia e incólume o galo assado.

A nobre Fortunata, nessa noite deixara-se ficar na cozinha, onde roncava sob o efeito de meia garrafa de vinho e da tranquilidade de sua alma.

O Senhor Manoel Colosso velava agitadíssimo, passeando pelo quarto, e bebendo, a pequenos intervalos, um copo de conhaque que pousava em cima de uma cômoda.

Oh! Nunca se sentira tão indisposto!

A morte de Tebas, seu amigo, seu escravo, seu auxiliar tão desinteressado na conquista da fortuna que possuía, fixava-se em sua imaginação com uma pertinência que o aterrorizava!

Um suor copioso e gelado cobria-lhe o deprimido semblante.

Batiam cinco horas da manhã no relógio da Igreja. Esmagava-lhe estranha opressão da alma e do corpo.

Lembrou-se de acordar a Fortunata, e chamou-a por três vezes.

A sua voz, respondeu outra do lado do quarto da mulata:

— Oh! Oh!

Era a voz de um galo espantado!

Percorreu-lhe o corpo uma corrente elétrica, que lhe gelou os membros e quase lhe paralisou o coração.

Parecia que era o galo assado que lhe havia respondido de cima da mesa.

Apoderou-se do Colosso invencível terror!

De repente ouviu passos na sala de jantar; mas não eram passos de gente, eram passos miúdos de um galo!

Como o dia já havia nascido, a luz coando-se pelas vidraças, inundava a sala de jantar com a claridade esbranquiçada da manhã.

Fez um grande esforço e chegou até a porta da alcova para ver o que é que andava lá por fora.

Mal aí chegou, soltou um grito estranho, meio agudo, meio abafado, assemelhando-se a alguma coisa sobrenatural, e que só o auge do terror pode arrancar do peito humano.

Acabava de ver o Tebas, o próprio Tebas, vivo, em carne e osso, com o pescoço envolto em tiras de pano, apanhando com o bico os fragmentos da ceia esparsos pelo chão!

O espírito do Senhor Manoel Colosso tocou então o limite da tensão psicológica.

Abriu horrivelmente os olhos; os músculos de suas faces contraíram-se de forma horripilante, e levou as mãos à garganta como se tentasse dar um grito supremo...

Nesse instante caíram-lhe verticalmente os braços como duas massas flexíveis e inertes; os joelhos curvaram-se, e seu corpo enorme tombou sobre o soalho fazendo estremecer a casa toda!

O Tebas, assustado com aquele choque, interrompeu o almoço, esticou dolorosamente o pescoço, e olhou concentrado para o corpo do Senhor Manoel.

Depois, como ficasse tudo silencioso, continuou tranquilo a refeição.

***

A custo de mil cuidados, soprando o ar pela goela do desgraçado galo, endireitando-lhe o pescoço, cuja coluna não tinha sido rompida, banhando-o constantemente com água de sal e vinagre, e fazendo-o ingerir arnica misturada com água, a nobre Fortunata tinha logrado salvar a vida do Tebas!

Um quarto de hora depois do atentado brutal do patrão, conseguira a caridosa mulata fazer o galo despertar daquele estado de asfixia que já parecia a morte.

Por $3000 comprou o substituto do Tebas, que figurava na mesa do festim.

O enfermo, com o pescoço envolto em tiras de pano, embebidas em uma infusão de água, sal e vinagre, ficara agasalhado dentro de uma cesta, toda forrada de baeta e algodão, no quarto de sua salvadora.

Ao romper do dia, sentindo-se com forças e com fome, saiu da enfermaria e entrou pela varanda, onde foi apanhar as migalhas da ceia.

Quando a Fortunata acordou do profundo sono que desfrutara na cozinha, em cima de um caixão, foi seu primeiro cuidado certificarse se o Tebas tinha escapado, ou morrido durante a noite.

Sua alegria foi indescritível quando, do corredor da cozinha, já avistou o galo na sala de jantar.

— Ah! O Tebas já comia! Estava salvo, estava salvo!

Mas uma ideia acudiu-lhe de repente:

— Se o Senhor Manoel despertasse e visse o Tebas ali!

Oh! Desta vez, matá-lo-ia!

E correu para apanhá-lo.

Com o galo defendido heroicamente em seus braços, a mulata lançou um olhar desconfiado para a porta da alcova do patrão.

O corpo do Colosso atravessado à porta, de ventre para o ar, com o rosto congestionado, arrancou-lhe um grito desesperado!

E fugiu para o quintal pedindo socorra à vizinhança.

***

Dentro de pouco tempo, e com auxílio dos vizinhos, o corpo do taverneiro foi transportado para o leito.

Tinha as roupas ensopadas em sangue, que o médico verificou ser devido à ruptura de uma pequena veia do braço esquerdo, onde estava também rasgada a manga da camisa.

Na queda, o Colosso batera com o braço na tampa de uma caixa de cerveja que estava junto à porta; e um dos pregos eriçados dessa tampa o havia sangrado providencialmente.

Foi esta sangria tão sumária que evitou o desfecho fatal da apoplexia.

Após os primeiros curativos ministrados pelo doutor, o Colosso abriu os olhos e suspirou.

Mas, durante algum tempo, ficou como idiota; só pouco a pouco foi recuperando a lucidez da razão.

— Muito cuidado com ele, não o contrariassem, dessem-lhe alimentação muito fraca — disse o médico —, e o homem estava fora de perigo.

E saiu.

Quando o Colosso viu-se só, ao lado da Fortunata, compreendeu a realidade de tudo que se tinha passado desde a ceia, em vez do terror a que tinha cedido, sentiu-se profundamente sensibilizado:

— Pobre Tebas, suspirou ele, fui um miserável!

E começou a chorar.

— Que é isso, Senhor Manoel — acudiu receosa a Fortunata —, então, o Senhor a chorar! Olhe que isso lhe faz mal... Esteja sossegado, Senhor Manoel, esteja sossegado!

Mas as palavras da mulata, longe de reduzir aquela dor do Colosso, aumentaram-lhe a intensidade do desabafo.

Então, aquele Hércules chorou alto, em uma torrente de soluços, como se houvesse dentro de si um vulcão convulsionado.

— Pobre Tebas! Desgraçado!! Que ingratidão! Que ingratidão!...

A Fortunata, pelo contágio da dor, estava prestes a romper em pranto também.

— Ora... ora! Então que é isso, Senhor Manoel? Por quem é? Olha, se é meu amigo, não faça isso! O Tebas já está bom; aquilo não foi nada!

A estas palavras, o Colosso limpou os olhos com um punhado do lençol da cama, e encarou sua companheira:

— Não morreu?!

— Não, senhor; está vivo e são!

— Ah! — exclamou o Manoel —, tu querer enganar-me, Fortunata, tu queres enganar-me! E aquele galo que está ali na mesa?

— É um outro que eu comprei!

— Pois, traze-me o Tebas aqui!... Se está vivo, quero vê-lo!

E dali a poucos segundos a Fortunata voltava da cozinha, trazendo o velho herói do galinheiro que vinha cantando os oh!... oh!... nas mãos de sua salvadora.

***

Foi um momento de um silêncio eloquente e solene, esse em que o assassino se viu em face da vítima!

O Senhor Manoel, apesar de racional, sentiu-se moralmente rebaixado em presença do Tebas, que parecia exprobrar-lhe, no olhar inteligente, a negrura de sua ação!

Animou-o logo, porém, a alegria de ver salvo aquele que julgava morto tão cruelmente; e trêmulo, com os olhos rasos de lágrimas, em soluços abafados, o Colosso tomou o Tebas nas mãos e começou a acariciá-lo freneticamente, como se fosse um filho seu, que, julgado para sempre perdido, a Providência lhe restituísse inesperadamente.

Quando a Fortunata contou-lhe o modo pelo qual havia o Tebas escapado, procurando cautelosamente atenuar a nobreza de sua ação, e o sofrimento do animal, o Colosso ficou meio abstrato!

Media, pela reflexão, a distância enorme que havia entre a selvageria de sua alma e a admirável caridade da mulata.

Compreendeu que era um ente atrasado e vil, comprado à sublime personalidade daquela mulher.

***

Quinze dias depois o Senhor Manoel estava radicalmente bom.

Sua afeição pela Fortunata aumentou desde aquele memorável dia.

— Que a morte podia surpreendê-lo de repente — refletiu ele então —, e antes que tudo aquilo que possuía caísse nas mãos de outros, ia constituir a Fortunata herdeira exclusiva de sua fortuna, como prova da imensa gratidão que lhe devia.

E no dia seguinte assinou no Tabelião seu testamento.

Quando, certo dia, um dos amigos aduladores do Colosso, e seu antigo confrade em heresias, zombava da consciência em casa deste, julgando ser-lhe ainda agradável, sentiu os pulsos do Senhor Manoel caírem-lhe em cima, e jogarem-no fora de casa, em um empurrão de tempestuosa indignação!

— Que o Senhor Souza era um animal! — gritou-lhe o Colosso transformado. — Que a consciência era uma verdade e que só os brutos poderiam negá-la, como ele havia negado enquanto foi bruto!

Pusesse-se o Senhor Souza no andar da rua e não lhe botasse mais os pés naquela casa, se tinha de vir profanar coisas tão sagradas!

O Souza, que ignorava a conversão do Manoel, ficou a olhar para este, do meio da rua, com uma cara que bem indicava a surpresa e o desapontamento que lhe iam pela alma.

E lá se foi, desmoralizado e reles, no propósito de, chegando a casa, examinar o braço que lhe doía, e onde o Colosso tinha derrubado os pulsos vigorosos!



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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