O
TEBAS
Era um bonito galo, branco, airoso, peito empolado, crista
inclinada para um lado, em faceira negligência, olhar vivíssimo e perscrutador.
O dono, Senhor Manoel Colosso, era um judeu hercúleo que
levantava 10 arrobas com uma mão só, taverneiro, e mercante de ovos e galinhas,
célebre na cidade pelas quatro carraspanas que tomava invariavelmente em cada
ano: no domingo de entrudo, no sábado de Aleluia, no mês de Julho e lá pelo
meio de Outubro.
Fora destas quatro épocas, era de uma temperança exemplar;
não era, pois, um borracho.
Não fossem os quatro balanços que dava em seu
estabelecimento anualmente, e só enfiaria a toca uma vez no fim do ano.
Mas, o processo da escrituração de sua casa era de uma
simplicidade quase primitiva: um único caderno, forrado com uma capa de metim
pardo, desempenhava todas as funções de Diário, Auxiliar, Razão e Caixa.
Quatro vezes no ano, o Senhor Manoel somava aquilo tudo,
balançava o Ativo e o Passivo, olhava para os lucros de sua taverna, e estalava
a língua:
— Muito bem... muito bem...
E chamava então a Fortunata, uma mulata quarentona, gorda e
simpática, que, junto ao Colosso, desempenhava todos os cargos, desde
cozinheira até dona de casa...
A Fortunata acudia lá de dentro, sacudida, risonha, faceira,
ao chamado do patrão.
E o Manoel Colosso dizia-lhe n’um misto de seriedade e
sorriso, como quem quer ocultar modestamente a felicidade que está sentindo:
— Oh, rapariga; escolhe aí das prateleiras o mastigo e a engorgitação, e arranja para hoje a petisqueira.
O negócio deu para a ceia...
E, para começar, desde logo, as manifestações de regozijo, o
Colosso tomava um copo de meio quartilho, abria a torneira do quinto de vinho
virgem, e engorgitava uma dose.
A mulata voltava logo para a cozinha, carregada de latas de
ervilhas e azeitonas, cebolas e bacalhau, ovos e toucinho, levando também uma
dose de vinho para ir consumindo ao calor do fogão.
Nessas ocasiões, o patrão era de uma admirável generosidade.
***
Diziam que o Senhor Manoel era um homem sem consciência,
talvez devido aos preços excessivos pelos quais reputava seus gêneros, e pela
falta de caridade para quem lhe batia à porta.
Mas, ele ria-se, e depois, olhando com modos de seriedade
para os outros, perguntava:
— Mas, franqueza, franqueza: Ora, vocês não me dirão que
diabo de história é a tal consciência de que vocês falam? … Serei um bruto, mas
também não sei mentir; sou homem de bem. Posso garantir-lhe que não conheço
essa história de consciência.
E, para que demônio a quereria eu, afinal?
Pago o que devo; não sou ladrão, nem jogador; vivo do meu
negócio; então para que preciso eu disso que vocês dizem que eu não tenho?!
Alguns achavam verdadeira a lógica do Colosso; outros
sentiam profunda aversão pelo taverneiro.
***
O Tebas, como vimos, era um dos principais elementos da
fortuna do Colosso.
Quando este ia ao terreiro e tomava-o nas mãos, o
inteligente, lisonjeado com aquela distinção, e com aquelas carícias do patrão,
fazia uns — oh! Oh! — de alegria, e deixava-se ficar nas mãos do Colosso, contente
e submisso.
Só este e a Fortunata pegavam o Tebas; aliás, já não era
mais o escravo dócil e amigo, mas o guarda zeloso do terreiro, empinando-se
todo, e agredindo à esporadas o estranho que tentava tocar em si, ou na
galinhada do seu harém.
A Fortunata era ainda mais amiga do Tebas; reservava-lhe
sempre um prato das sobras do jantar, quinhão que não dava a todas as galinhas,
porque aquilo não chegava para tanta criação.
O chefe do terreiro, privilegiado, tão dócil, tão valente,
tão amigo, bem merecia aquela predileção.
A mulata do Manoel punha no chão o prato da comida e
entregava ao Tebas o apetitoso jantar, enquanto espantava com o avental o resto
da criação, ávida de entrar no grude;
mas o inteligente animal dava apenas algumas bicadas na feijoada; e o grande,
justo, abnegado, começava a chamar as galinhas, como fazem estas aos pintainhos
quando descobrem uma migalha pelo chão.
Então, a Fortunata tocada pela abnegação do Tebas, deixava
que toda a criação acudisse ao chamado do pastor, e compartilhasse a refeição
do herói.
E, enquanto a galinhada devorava o arroz e o feijão, o
sublime Tebas beliscava também, simulando que comia, talvez para não desgostar
sua nobre benfeitora, até que não restasse no prato um grão de arroz.
***
Ao fim de 40 anos, o Senhor Manoel deu o 40º e último
balanço no negócio.
Não precisava mais trabalhar!
Oitenta contos em moeda, dez nas prateleiras, e mais a casa
que o abrigava do relento; para que mais moirejar?
Aquilo tudo a render, dava-lhe facilmente aí por uns 500$000
por mês, e a pança para o ar!
A ceia desse dia faustoso devia ser excepcional: alguns
amigos foram convidados e a Fortunata foi avisada para preparar mesa para dez
pessoas.
O grande Tebas estava então velho, fatigado, e quase
imprestável.
Comparando a sorte do galo, outrora tão forte e tão belo,
com decrepitude que o avassalava, ao tempo em que para ela e Senhor Manoel
raiava uma aurora de paz e abastança, que poderiam gozar por mais 20 ou 30
anos, a nobre Fortunata não pode conter duas lágrimas que lhe rolaram pelas
faces gordurosas!
Foi nesse momento, quando enxugava os olhos com o avental,
que sentiu os passos do Senhor Manoel, que entrava na cozinha.
— Oh, Fortunata — disse ele no tom mais sincero deste mundo
—, acho bom matar o Tebas para a ceia; aquilo já de nada presta, e se há de
morrer por aí de peste qualquer dia, é melhor aproveitá-lo em um assado de
forno!
A mulata ergueu os olhos, assombrada, para a cara do
Colosso, como quem ouve revelação tão espantosa que não pôde compreender.
— O que, Senhor Manoel? Matar o Tebas?!
— Pois então? Para que demônio vamos nós guardá-lo?
— O Senhor está doido, senhor Manoel?!
— Doido? Oh, Fortunata, parece-me que estás com pena de
matar o galo? Ou é nojo de comê-lo?
A mulata abriu mais os olhos e empalideceu.
Não podia crer naquilo que ouvia! Vivera dez anos com Senhor
Manoel, mas nunca o supusera homem capaz de tão negra e cruel ingratidão!
Se o Colosso tivesse começado a beber desde cedo, iria jurar
que estava embriagado, e dizia-lhe, por isso, coisas tão monstruosas. Mas o
homem estava em seu perfeito juízo.
E encarou-o, resoluta:
— Pois mate o Senhor o Tebas, se tem coragem para isso,
Senhor Manoel; eu, seria capaz de matar-me antes, se fosse obrigada à
maltratar, sequer, esse pobre animal!
O Colosso sorriu ante aquela esquisitice da Fortunata.
Era a tal história de consciência de que sempre ouvia falar!
E retirou-se para o quintal.
Por um justo pressentimento a mulata seguiu-o a certa
distância, resolvida a disputar, até o sacrifício, a vida do pobre animal, se o
Senhor Manoel tentasse matá-lo.
Mal o Colosso chegou ao terreiro, o Tebas, habituado aos
seus afagos, aproximou-se de seu dono, alegre, submisso e confiante.
Mas, antes que a Fortunata tivesse tempo de intervir, o
malvado tomou o galo nas mãos, torceu-lhe rapidamente o pescoço, e jogou-o no
terreiro onde caiu estrebuchado.
— Ora aí está, rapariga — disse cinicamente o Manoel —, já
te poupei o trabalho; deixa-te de tolices e prepara o Tebas para um assado de
forno, apesar de que já deve ter a carne muito dura...
E foi para o interior da casa, onde tinha deixado dois
amigos de palestra.
A Fortunata quase louca, assim com uma Mãe em frente do
filho que agoniza, levantou o desgraçado galo, na esperança de ainda
restituí-lo à vida.
No terreiro, as galinhas com os pescoços espichados,
imóveis, assombradas, de olhos paralisados, pareciam fazer esforço impossível
para compreender tão horrível espetáculo.
E trêmula, soluçante, e quase desvairada, a mulata voltou a
correr para a cozinha, levando consigo o Tebas moribundo!
***
Às nove horas da noite os convivas do abastado capitalista
Senhor Manoel Colosso, ex-taverneiro, rodeavam a apetitosa mesa da ceia.
Entre outros pratos cheirosos e gordurosos, via-se um galo
assado, recheado, de papo para o ar, pernas decepadas e ligadas com fios de
retrós, e condecorado com duas cebolas cruas no peito.
A cozinheira do Manoel tinha se esmerado na ceia dessa
noite.
Uma longa bateria de garrafas de Virgem e do Porto
guarneciam as trincheiras levantadas entre os petiscos e os convidados.
Entraram pela bacalhoada e terminaram no leitão.
Galo assado!
Quem é que lá ia comer uma perna de galo, tendo o estômago
abarrotado de porco e bacalhau?
O infeliz assado foi repudiado tacitamente.
O Colosso, que tinha observado o desprezo de seus amigos
pelo assado que, ele julgava, seria o soberbo prato da noite, ficou triste e
pensativo.
— Ora pílulas! Então podia ter poupado o galo.
Aqueles restos do banquete seriam jogados fora no dia
seguinte, ou distribuídos pelos mendigos que lhe batessem à porta, se é que
algum não o conhecia como homem sem caridade...
A Fortunata tinha razão, muita razão!
No meio dessas reflexões, o Colosso sentiu uma opressão
sobre o epigástrio, e uma lentidão nas pancadas do coração...
Veio-lhe à boca um sabor amargo.
Pela primeira vez lembrou-se do remorso. Não seria isto que
sentia?
— Ora essa! — refletia —, se ele tivesse matado um homem, vá
lá... era um assassino, porque só era criminoso quem matava seu semelhante.
Mas, um galo?... Tinha que ver!...
E sacudia a cabeça, como tentando repelir aquela obsessão
que começava a dominá-lo.
— Sou um idiota,— refletia o Senhor Manoel — o remorso seria
uma coisa ridícula!
Mas, como se alguém lhe falasse dentro da imaginação,
distinguia uma voz que lhe dizia intimamente:
— Bárbaro! Ingrato! Cruel!
O Colosso tomou uma dupla dose de vinho: procurava então
embebedar-se até perder a consciência.
Mas, por um fenômeno psicológico, de uma grandeza eloquente,
o espírito criminoso atribulado necessita de uma porção enorme de álcool para
chegar à embriaguez.
No meio de um regozijo sincero, um homem embriaga-se com
algumas taças de champanhe; mas, no desassossego da alma culpada, a bebida
irrita, sendo impotente para atordoar o espírito ao ponto de lhe obscurecer a
realidade do crime!
O homem pode embriagar-se para cometer um crime e consegue
-o; mas, se após o delito, tenta alcoolizar-se, com o fim de acalmar o brado da
consciência, dificilmente ou nunca o conseguirá, porque a tensão do espírito é
superior à ação perturbadora do álcool.
Ao mesmo fenômeno estão sujeitos os espíritos profundamente
preocupados em assuntos graves de qualquer natureza.
Nunca o Senhor Manoel Colosso sentiu, mau grado seu, tão
lúcida sua razão!
***
À meia-noite, a sala do festim estava deserta; sobre a mesa
jaziam os destroços da ceia e incólume o galo assado.
A nobre Fortunata, nessa noite deixara-se ficar na cozinha,
onde roncava sob o efeito de meia garrafa de vinho e da tranquilidade de sua
alma.
O Senhor Manoel Colosso velava agitadíssimo, passeando pelo
quarto, e bebendo, a pequenos intervalos, um copo de conhaque que pousava em
cima de uma cômoda.
Oh! Nunca se sentira tão indisposto!
A morte de Tebas, seu amigo, seu escravo, seu auxiliar tão
desinteressado na conquista da fortuna que possuía, fixava-se em sua imaginação
com uma pertinência que o aterrorizava!
Um suor copioso e gelado cobria-lhe o deprimido semblante.
Batiam cinco horas da manhã no relógio da Igreja.
Esmagava-lhe estranha opressão da alma e do corpo.
Lembrou-se de acordar a Fortunata, e chamou-a por três
vezes.
A sua voz, respondeu outra do lado do quarto da mulata:
— Oh! Oh!
Era a voz de um galo espantado!
Percorreu-lhe o corpo uma corrente elétrica, que lhe gelou
os membros e quase lhe paralisou o coração.
Parecia que era o galo assado que lhe havia respondido de
cima da mesa.
Apoderou-se do Colosso invencível terror!
De repente ouviu passos na sala de jantar; mas não eram
passos de gente, eram passos miúdos de um galo!
Como o dia já havia nascido, a luz coando-se pelas vidraças,
inundava a sala de jantar com a claridade esbranquiçada da manhã.
Fez um grande esforço e chegou até a porta da alcova para
ver o que é que andava lá por fora.
Mal aí chegou, soltou um grito estranho, meio agudo, meio
abafado, assemelhando-se a alguma coisa sobrenatural, e que só o auge do terror
pode arrancar do peito humano.
Acabava de ver o Tebas, o próprio Tebas, vivo, em carne e
osso, com o pescoço envolto em tiras de pano, apanhando com o bico os
fragmentos da ceia esparsos pelo chão!
O espírito do Senhor Manoel Colosso tocou então o limite da
tensão psicológica.
Abriu horrivelmente os olhos; os músculos de suas faces
contraíram-se de forma horripilante, e levou as mãos à garganta como se
tentasse dar um grito supremo...
Nesse instante caíram-lhe verticalmente os braços como duas
massas flexíveis e inertes; os joelhos curvaram-se, e seu corpo enorme tombou
sobre o soalho fazendo estremecer a casa toda!
O Tebas, assustado com aquele choque, interrompeu o almoço,
esticou dolorosamente o pescoço, e olhou concentrado para o corpo do Senhor
Manoel.
Depois, como ficasse tudo silencioso, continuou tranquilo a
refeição.
***
A custo de mil cuidados, soprando o ar pela goela do
desgraçado galo, endireitando-lhe o pescoço, cuja coluna não tinha sido
rompida, banhando-o constantemente com água de sal e vinagre, e fazendo-o
ingerir arnica misturada com água, a nobre Fortunata tinha logrado salvar a
vida do Tebas!
Um quarto de hora depois do atentado brutal do patrão,
conseguira a caridosa mulata fazer o galo despertar daquele estado de asfixia
que já parecia a morte.
Por $3000 comprou o substituto do Tebas, que figurava na
mesa do festim.
O enfermo, com o pescoço envolto em tiras de pano, embebidas
em uma infusão de água, sal e vinagre, ficara agasalhado dentro de uma cesta,
toda forrada de baeta e algodão, no quarto de sua salvadora.
Ao romper do dia, sentindo-se com forças e com fome, saiu da
enfermaria e entrou pela varanda, onde foi apanhar as migalhas da ceia.
Quando a Fortunata acordou do profundo sono que desfrutara
na cozinha, em cima de um caixão, foi seu primeiro cuidado certificarse se o
Tebas tinha escapado, ou morrido durante a noite.
Sua alegria foi indescritível quando, do corredor da
cozinha, já avistou o galo na sala de jantar.
— Ah! O Tebas já comia! Estava salvo, estava salvo!
Mas uma ideia acudiu-lhe de repente:
— Se o Senhor Manoel despertasse e visse o Tebas ali!
Oh! Desta vez, matá-lo-ia!
E correu para apanhá-lo.
Com o galo defendido heroicamente em seus braços, a mulata
lançou um olhar desconfiado para a porta da alcova do patrão.
O corpo do Colosso atravessado à porta, de ventre para o ar,
com o rosto congestionado, arrancou-lhe um grito desesperado!
E fugiu para o quintal pedindo socorra à vizinhança.
***
Dentro de pouco tempo, e com auxílio dos vizinhos, o corpo
do taverneiro foi transportado para o leito.
Tinha as roupas ensopadas em sangue, que o médico verificou
ser devido à ruptura de uma pequena veia do braço esquerdo, onde estava também
rasgada a manga da camisa.
Na queda, o Colosso batera com o braço na tampa de uma caixa
de cerveja que estava junto à porta; e um dos pregos eriçados dessa tampa o
havia sangrado providencialmente.
Foi esta sangria tão sumária que evitou o desfecho fatal da
apoplexia.
Após os primeiros curativos ministrados pelo doutor, o
Colosso abriu os olhos e suspirou.
Mas, durante algum tempo, ficou como idiota; só pouco a
pouco foi recuperando a lucidez da razão.
— Muito cuidado com ele, não o contrariassem, dessem-lhe
alimentação muito fraca — disse o médico —, e o homem estava fora de perigo.
E saiu.
Quando o Colosso viu-se só, ao lado da Fortunata,
compreendeu a realidade de tudo que se tinha passado desde a ceia, em vez do
terror a que tinha cedido, sentiu-se profundamente sensibilizado:
— Pobre Tebas, suspirou ele, fui um miserável!
E começou a chorar.
— Que é isso, Senhor Manoel — acudiu receosa a Fortunata —,
então, o Senhor a chorar! Olhe que isso lhe faz mal... Esteja sossegado, Senhor
Manoel, esteja sossegado!
Mas as palavras da mulata, longe de reduzir aquela dor do
Colosso, aumentaram-lhe a intensidade do desabafo.
Então, aquele Hércules chorou alto, em uma torrente de
soluços, como se houvesse dentro de si um vulcão convulsionado.
— Pobre Tebas! Desgraçado!! Que ingratidão! Que
ingratidão!...
A Fortunata, pelo contágio da dor, estava prestes a romper
em pranto também.
— Ora... ora! Então que é isso, Senhor Manoel? Por quem é?
Olha, se é meu amigo, não faça isso! O Tebas já está bom; aquilo não foi nada!
A estas palavras, o Colosso limpou os olhos com um punhado
do lençol da cama, e encarou sua companheira:
— Não morreu?!
— Não, senhor; está vivo e são!
— Ah! — exclamou o Manoel —, tu querer enganar-me,
Fortunata, tu queres enganar-me! E aquele galo que está ali na mesa?
— É um outro que eu comprei!
— Pois, traze-me o Tebas aqui!... Se está vivo, quero vê-lo!
E dali a poucos segundos a Fortunata voltava da cozinha,
trazendo o velho herói do galinheiro que vinha cantando os oh!... oh!... nas
mãos de sua salvadora.
***
Foi um momento de um silêncio eloquente e solene, esse em
que o assassino se viu em face da vítima!
O Senhor Manoel, apesar de racional, sentiu-se moralmente
rebaixado em presença do Tebas, que parecia exprobrar-lhe, no olhar
inteligente, a negrura de sua ação!
Animou-o logo, porém, a alegria de ver salvo aquele que
julgava morto tão cruelmente; e trêmulo, com os olhos rasos de lágrimas, em
soluços abafados, o Colosso tomou o Tebas nas mãos e começou a acariciá-lo
freneticamente, como se fosse um filho seu, que, julgado para sempre perdido, a
Providência lhe restituísse inesperadamente.
Quando a Fortunata contou-lhe o modo pelo qual havia o Tebas
escapado, procurando cautelosamente atenuar a nobreza de sua ação, e o
sofrimento do animal, o Colosso ficou meio abstrato!
Media, pela reflexão, a distância enorme que havia entre a
selvageria de sua alma e a admirável caridade da mulata.
Compreendeu que era um ente atrasado e vil, comprado à
sublime personalidade daquela mulher.
***
Quinze dias depois o Senhor Manoel estava radicalmente bom.
Sua afeição pela Fortunata aumentou desde aquele memorável
dia.
— Que a morte podia surpreendê-lo de repente — refletiu ele
então —, e antes que tudo aquilo que possuía caísse nas mãos de outros, ia
constituir a Fortunata herdeira exclusiva de sua fortuna, como prova da imensa
gratidão que lhe devia.
E no dia seguinte assinou no Tabelião seu testamento.
Quando, certo dia, um dos amigos aduladores do Colosso, e
seu antigo confrade em heresias, zombava da consciência em casa deste, julgando
ser-lhe ainda agradável, sentiu os pulsos do Senhor Manoel caírem-lhe em cima,
e jogarem-no fora de casa, em um empurrão de tempestuosa indignação!
— Que o Senhor Souza era um animal! — gritou-lhe o Colosso
transformado. — Que a consciência era uma verdade e que só os brutos poderiam
negá-la, como ele havia negado enquanto foi bruto!
Pusesse-se o Senhor Souza no andar da rua e não lhe botasse
mais os pés naquela casa, se tinha de vir profanar coisas tão sagradas!
O Souza, que ignorava a conversão do Manoel, ficou a olhar
para este, do meio da rua, com uma cara que bem indicava a surpresa e o
desapontamento que lhe iam pela alma.
E lá se foi, desmoralizado e reles, no propósito de,
chegando a casa, examinar o braço que lhe doía, e onde o Colosso tinha
derrubado os pulsos vigorosos!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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