4/12/2025

O solitário do Alto Madeira (Conto), de Francisco Raimundo Ewerton Quadros

 

O SOLITÁRIO DO ALTO MADEIRA

O Madeira, o maior dos poderosos afluentes do Amazonas, nasce na Bolívia, da junção dos rios Beni e Mamoré, na lat. de 10030’ e log. oc. de 22012’20 do Rio de Janeiro, separando primeiro os territórios de Mato Grosso e Amazonas, e atravessando depois o território desta última província até lançar-se no grande rio, 240 quilômetros abaixo de Manaus.

Numa extensão de 416 quilômetros ele percorre um terreno pedregoso, formando treze formidáveis cachoeiras que extraordinariamente dificultam o trânsito em barcos, que, muitas vezes, têm de ser arrastados por terra.

Nesse penoso serviço muito outrora auxiliavam aos viajantes os selvagens Caripunas, que viviam nas imediações, mas que depois abandonaram esse posto, em consequência das injustas vexações que sofriam da parte daqueles a quem serviam: vexações que deram motivo à sangrentas represálias de um e outro lado.

Da cachoeira de Santo Antônio, a última das 13 descendo, é o Madeira, na época das cheias, navegável por paquetes até a sua foz, num percurso de cerca de 900 quilômetros.

Foi junto a essa cachoeira, em uma barranca de 36 metros de elevação, que em 1728 o jesuíta João Sampaio fundou a primeira missão dessas paragens, a qual foi depois abandonada; foi ainda aí que em 1871 fixou-se a sede do destacamento militar do Madeira.

São muitos os rios e riachos que, no seu curso, vêm engrossar-lhe o volume d’água, entre os quais estão o Jaci-paraná, o Machado, o Manicoré e o Jamari, que mede 160 metros de largura em sua foz, fica a 82 quilômetros da supramencionada cachoeira de Santo Antônio, e em cujas cabeceiras fundou o jesuíta Sampaio a aldeia das Cachoeiras em 1735, abandonada depois pelos contínuos assaltos dos selvagens Murás.

É indescritível a fantástica beleza das paisagens, que a cada instante prende a atenção do viajante que visita essas paragens! Já centenas de naturalistas têm tentado esboçar a majestade dessas florestas virgens, que dizem Saint-Hilaire e Humboldt serem tão velhas como o mundo, regiões misteriosas onde a luz do dia dificilmente penetra.

Árvores gigantescas de uma infinidade de espécies aí entrelaçam seus ramos formando uma copa cerrada, presas, muitas vezes, umas às outras por liames que simulam corpulentas serpentes.

Aí não se nota a monótona uniformidade da cor verde escura das florestas das outras partes do mundo, mas uma infinda gradação dessa mesma cor, esmaltada pelas variadíssimas das flores, que aromatizam o ambiente e nos encantam as vistas com os seus vivos e brilhantes matizes.

Aí abundam madeiras de construção e de marcenaria ao lado de um sem número de plantas alimentícias e medicinais.

São o pau-d’arco, o ipê, a sucupira, o pau ferro, o acapu, o campeche, a maçaranduba, a gameleira, a castanheira, o cacaneiro, as seringueiras, as palmeiras, a baunilha, a árvore do puxuri, a do guaraná, etc. A excessiva umidade do solo e o calor tropical são as fontes dessa exuberância de riqueza floral, que torna essas regiões um Potosi, onde só falta o homem explorá-lo.

É certo que as febres palustres imperam formidáveis nas margens desses gigantes tributários do Amazonas, afugentando os que lhes tentam raptar o velo de ouro.

Em geral são baixas essas margens, e nas enchentes as águas invadem as matas que as cobrem; e quando os rios voltam aos seus leitos, deixam exposta aos raios ardentes do sol uma espessa camada de folhas podres, que enchem os ares de miasmas.

Um dia, porém, temos certeza, essas dificuldades serão removidas.

A essa flora tão rica corresponde ainda uma fauna abundantíssima em todos os seus ramos; os répteis são nomeados; os peixes formigam nesses rios ainda tão pouco frequentados; as aves são inumeráveis, adornadas das mais vivas e formosas cores. São as araras, 142 espécies de papagaios, os auras, os jacus, os mutuns, os agamis ou galinhas do mato que vivem em bandos, fazendo ouvir o seu grito agudo semelhante ao som de uma trombeta, os jaçanãs e outros tantos que seria interminável citar somente as conhecidas.

Entre os mamíferos citaremos os macacos, tipo característico da América do Sul. Eles se distinguem dos do antigo mundo pela disposição de suas narinas abertas para os lados, pela ausência de calosidades e o comprimento da cauda.

A ausência de grandes mamíferos e a multiplicidade de animais trepadores são caracteres distintivos dessa classe do reino animal no Brasil. Não só os simianos, como os roedores da família dos ratos, dos desdentados e, mesmo, os carniceiros, são aí providos de uma cauda preensiva, que os ajuda a subirem às árvores.

Os símios são menores, porém mais ágeis que os do antigo continente; dentre eles se destacam os uivadores ou guaribas, cujos uivos apavoram, os saguis, os pequenos oistitis, etc.

Além deles se encontram nessas brenhas o jaguar, a onça, o cuguar, o maracajá, o cão do mato, o quati, o sariguê, a anta, o queixada, o caititu, o porco-espinho, a cotia, os ratos do mato, o veado, o tamanduá, o preguiçoso etc.

As duas margens do Madeira estão hoje ocupadas por estabelecimentos agrícolas de brasileiros, bolivianos e portugueses que, apesar dos ataques contínuos das febres palustres, e apesar ainda de concentrarem todo o seu trabalho na indústria da extração de alguns dos produtos, que a natureza prodigamente lhes oferece aí, com abandono de centenas de outros não menos úteis, enriquecem em pouco tempo. De fato, a caça e a pesca, a mandioca, o aipim, as batatas doces, o milho, a banana, o cacau, a baunilha, o açaí, a bacaba etc., lhes dão sem falta alimento bom e barato. Além do que, os trabalhadores braçais ali empregados, em geral, índios bolivianos, são muito pouco exigentes, no que se refere a vestuário e alimentação. Suas japonas ou, antes, camisolas, são feitas de cascas de árvores, que eles põem de molho e depois batem com uns cacetinhos, até que tomem o aspecto de um pano grosso e consistente.

Dissemos que os trabalhadores dos estabelecimentos do Madeira, pelo menos, de sua parte superior, eram índios bolivianos; e há para isso uma razão ainda inexplicável para mim: as febres que vitimam os brancos, pardos e, principalmente, negros, parecem respeitá-los.

O trabalho dos seringais é a principal indústria desses esclarecedores do progresso do vale do Amazonas. A seringa (Siphonia elastica) é uma árvore de 16 a 20 metros de altura, da família das euphorbias, que abunda nos terrenos pantanosos dessa região. Seu suco leitoso, obtido por incisão no tronco, se coagula em uma massa tenaz e muito elástica, conhecida com o nome de cautchu ou borracha. É um carbureto de hidrogênio, solúvel na água fervendo, no sulfureto de carbono e óleos voláteis e insolúvel no álcool.

Os trabalhadores avançam por esse terreno encharcado, com um facão dão diversos cortes horizontais no tronco da árvore, com um barro negro e visguento prendem debaixo de cada corte uma tigelinha de lata, e passam à outra e depois à outra. No fim voltam pelo caminho seguido, recolhem todo o leite contido nas tigelinhas em uma caldeira, e levam-na ao fogo. Quando a matéria se liquefaz toda, eles tomam um pau, mergulham a ponta no líquido, sacam-no e este endurece logo; vão depois fazendo sucessivos mergulhos, e em cada um nova camada fica aderente à primeira. Assim formam eles essas bolas, chamadas sernambi ou borracha impura, que é exportada.

A má direção do trabalho extrativo da borracha deixa ao trabalhador ignorante a liberdade de dar em cada árvore um número maior de golpes do que o conveniente, e também de atacar as que ainda não adquiriram seu pleno desenvolvimento, donde o pronto esgotamento e morte delas; o que pode em muito pouco tempo ocasionar a extinção dos seringais.

Felizmente uma nova mina acaba de ser descoberta nos sertões do Maranhão, grande promessa para o futuro dessa província, se a política que entre nós se envolve em tudo, não lhe vier tolher os passos.

Na margem direita do rio Madeira — onde foram lançados para o interior das selvas os cruéis selvagens Parintintins, esse terror dos habitantes dessas regiões; os Acara-pirangas, homens robustos, de pele branca ligeiramente amarelada, que a 13 de junho de 1871, baquearam em seu assalto ao nosso ponto militar de Santo Antônio, e os Araras —, a cerca de 15 quilômetros abaixo da cachoeira de Santo Antônio, estende-se à praia de areia, descoberta na época das vazantes, e onde vêm desovar as tartarugas no mês de setembro.

As tartarugas de água doce ou emydias formam um gênero da ordem dos chelonios, e muitos naturalistas o consideram uma vasta família contendo mais de 70 espécies. Elas estabelecem uma transição das tartarugas terrestres às marítimas, variando em sua conformação, segundo se aproxima mais destas ou daquelas. As que têm a concha deprimida, as unhas fracas e os pés mais largos, vivem de preferência nos rios correntosos. Suas escamas são mais lisas que as das tartarugas marítimas; seu pescoço e sua cauda são mais longos; suas narinas são colocadas na extremidade do focinho e, às vezes, sobre pedúnculos móveis. Sustentam-se de vermes, moluscos, peixes, répteis e plantas aquáticas.

Dentre os seus subgêneros citaremos a chelys, que tem a boca fendida até os olhos. As escamas que cobrem sua carapaça óssea são muito delgadas e flexíveis. Elas medem, em geral, 90 centímetros a 1 metro de comprimento; vivem constantemente na água, mas se aproximam das praias para colherem ervas aquáticas. Cada uma delas põe anualmente, em média, 150 ovos.

São elas que, fugindo hoje, pela presença do homem, dos lugares que frequentavam outrora, vão buscar um refúgio próximo às cachoeiras do Madeira, onde os homens e as feras dão-lhes formidável caça.

Na lua de setembro elas cobrem a praia do Tamanduá, onde vão sepultar na areia seus ovos, cuja incubação elas, voltando para o rio, confiam aos cuidados do calor solar e da umidade. Na lua de novembro a praia mostra-se coberta de miríades de ratinhas, que se precipitam para o rio, perseguidas por numerosas aves de rapina. São as tartaruguinhas que despertam à vida.

É no mês de setembro, na época da desova, que dão caça às tartarugas.

O autor destas linhas pode asseverar que, em uma só noite de setembro de 1871, foram apanhadas 5000 tartarugas.

É arriscado nessa ocasião atacá-las do lado do rio, pois, pretendendo fugir por esse lado, elas, se roçarem a perna de alguém com os extremos laterais da carapaça, podem produzir profundos golpes. Atacam-nas do interior para o rio. Fogem muitas, mas sempre ficam muitas prisioneiras.

Também vão colhê-las no seu próprio elemento, empregando o arco e a flecha.

O projétil compõe-se de uma flecha delgada e empenada, em cujo extremo se encaixa uma ponta de aço farpada e aguda: nesta se prende a extremidade de um cordel, de alguns metros de comprimento, o qual se enrola na flecha e a ela se prende pelo outro extremo.

Em geral os índios do Amazonas, nessas ocasiões, não fazem a pontaria diretamente para o animal, apontam para o ar, e o projétil, com um acerto maravilhoso, desce a cravar-se na concha da tartaruga. Com a dor esta dá um arranco, que faz saltar a flecha, ficando presa a ponta de aço.

O animal mergulha, mas o cordel se desenrola e a flecha, boiando, indica ao caçador a marcha que ele deve seguir, para colher sua presa puxando-a pelo cordel.

A carne da chelys, conquanto rija, é saborosa e muito apreciada no Amazonas e Pará.

* * *

Há cerca de um quilômetro abaixo da extremidade da praia do Tamanduá, no ano de 186., via-se uma simples casa, cujas paredes eram feitas de supapo, como lá se diz, isto é, de terra sem cal, e coberta de palha.

O proprietário não era um preguiçoso, o que se tornava logo patente pelo aspecto do terreno que lhe rodeava a habitação. Sua horta não era descurada, e fornecia mais que o necessário para o consumo das pessoas que aí residiam. No fundo via-se grande plantação de bananeiras, cujo fruto, muitas vezes, é nessas paragens considerado o pão do pobre. Ao redor da casa eram também cuidadosamente conservadas várias plantas medicinais, cujo uso, na maior parte, a ciência oficial ainda desconhece.

A casa compunha-se de uma sala pequena, guarnecida por alguns tamboretes e duas mesas de madeira branca sem verniz, sobre uma das quais viam-se arrumados por ordem e rotulados muitos molhos de plantas, flores e raízes secas; e sobre a outra um tinteiro de chumbo, dos antigos, de forma de carretel, e uma caneta para escrever. No canto da sala jazia um caixão com instrumentos de carpinteiro, e pendente da parede um quadro com a imagem do crucificado.

No quarto imediato achava-se uma cama de madeira com colchão e travesseiro, e o indispensável mosquiteiro de casa para evitar as ferroadas e importunações desses endiabrados dípteros, aí chamados mosquitos ou maruís, que abundam nesses sítios. Uma espingarda de dois canos, polvorinhos e linhas de pescar completavam a mobília.

O terceiro quarto era a cozinha, cujo fogão consistia em três pedras no meio da sala, sobre as quais se assentava um caldeirão de ferro.

 A sala da frente tinha uma porta para o lado do rio, e uma janela em cada uma das paredes laterais.

Nessa casa morava um homem maior de 60 anos, magro e de aspecto doentio. Era bastante moreno, tinha os cabelos já muito grisalhos e curtos, e usava a barba raspada toda. Seus olhos eram grandes e negros, um tanto amortecidos e neles transluzia a bondade e a singeleza de uma alma sã.

Vestia sempre roupas de fazenda escura e grossa e chapéu do Chile.

Em sua presença davam-lhe o nome de João; mas, fora, conheciam-no antes com o de Solitário do Alto da Madeira, e os supersticiosos ainda chamavam-no o feiticeiro da praia do Tamanduá.

Qual a sua família? Qual a sua província? Ninguém o sabia, pois ele nunca revelou-o a alguém. Apenas se conhecia o tempo do seu estabelecimento ali, sem nada constar sobre a sua procedência.

Em outra palhoça menor e mais retirada da praia, morava um índio velho boliviano, que o solitário recebera por caridade. Este respondia pelo nome de José e era um desses entes quietos e inofensivos, como todos os dessa raça, por quem nunca viria mal ao mundo.

Ele pescava, caçava e ajudava ao seu protetor no preparo da sua alimentação.

Em geral, as pessoas pouco instruídas e imbuídas dos princípios que os missionários romanos cavilosamente derramaram no seio dos indígenas da América do Sul sentiam um terror supersticioso ao avistarem a vivenda do solitário, mas nem por isso deixavam de cortejá-lo e recorrer a ele no caso de necessidade, encontrando sempre de sua parte afável acolhimento, conselhos úteis e, mesmo, auxílio pecuniário ou em gêneros, na medida de suas posses reduzidas. Porque, convém que se saiba, o solitário, como todos os moradores do Madeira, tirava alguns recursos da extração da borracha e colheita da salsaparrilha e ipecacuanha, que vendia a negociantes do Pará.

Não é fato para admirar-se, pois temos visto muitos, que publicamente combatem o espiritismo, mandarem por terceiros consultar a médiuns espíritas em casos de enfermidades.

Era principalmente como curandeiro que buscavam o solitário, que se tornara bastante conhecido em longa extensão do curso do Madeira.

Essa crença era diariamente fortalecida pelos resultados obtidos. A gente simples, guiada pelo seu bom senso natural, julga pelos fatos que observa, sem procurar-lhe explicar as causas, muito mais quando estas se escondem às suas vistas nas sombras da metafísica. Assim, muitos que chamavam-no de maníaco e feiticeiro, nas ocasiões recorriam a ele e ficavam satisfeitos.

Nunca conseguiram fazê-lo receber uma paga pecuniária por esses serviços.

Com o fim de os não molestar, ele não devolvia os presentes em gêneros ou fazendas que lhe faziam os abonados, mas caprichava em não tocar neles, e os distribuía pelos necessitados.

Todos sabiam disso, e quando lhe enviavam um presente, era como a competente declaração: “para os seus pobres”.

Dos poucos abonados, porém, era inútil tentar, ele nada recebia.

Esse homem tinha algum cultivo intelectual, mas sentia embaraços em exprimir-se, quando se tratava de fatos triviais da vida; e só se tornava eloquente e verboso, quando era preciso aconselhar seu semelhante em apuros e arriscado a precipitar-se no erro.

Seus argumentos, sempre apropriados à inteligência do consultante, falavam-lhe à alma, iam-lhe direto ao coração.

Era ele em extremo religioso, não dessa religião de fórmulas vãs, de aparências, muitas vezes hipócritas, mas da religião da moral, prática que arrasta e convence pelo exemplo.

Uma tarde sentiu-se ele bastante incomodado; assaltava-o um pressentimento de desgraça próxima, que lhe não era possível bem definir. Vinha-lhe à mente a ideia de estar um seu amigo, ainda jovem, arrastado ao suicídio por desgostos, que supunha insuperáveis; e ao mesmo tempo um desejo invencível de dirigir-se à praia do Tamanduá.

O hipnotismo e o espiritismo começam apenas a desvendar esses segredos da alma humana. Nada se acha isolado na criação; o magnetismo é um laço potente, que prende os seres todos uns aos outros e, através dos espaços incomensuráveis, liga a criação inteira em um só todo, e de degrau em degrau, vai uni-la ao soberano regedor dos mundos.

Que de vezes, quando pensamos firmemente em uma pessoa, ficamos pasmos ao saber que, ao mesmo tempo, ela também pensava em nós, embora buscasse distrair-se! Pelo magnetismo estabelece-se assim uma comunicação inconsciente entre dois entes, às vezes, separados por grande distância.

Já vejo o protesto que vão levantar contra essa ideia, os que receiam os perigos que dela podem advir à ordem social; mas cumpre não esquecermos que o homem não vive na terra abandonado a si só, que seus guias, seus protetores espirituais podem desviar seus maus pensamentos do alvo a que se dirigiam ou distrair-lhes o efeito despertando neste outros pensamentos.


Há disso uma prova que o leitor com facilidade conseguirá: ore, peça com fervor por aquele que o odeia, e notará que esse sentimento mau irá desaparecendo até extinguir-se.

Obedecendo a essa voz íntima que o impelia, o solitário resolveu-se a sair, tomou seu chapéu e sua bengala e partiu.

O sol já se sumira além das matas, a noite ia começar. Era essa hora solene em que a contemplação da natureza infunde em nossa alma um sentimento de melancolia mística, tão grato aos corações dos poetas; em que as flores derramam no ambiente suas mais doces fragrâncias, e mil ruídos, até então despercebidos, formam um concerto harmonioso, que se eleva aos ares, saudando à majestade da noite que começa.

A luz, o calor, o som e o cheiro não são mais que vibrações do fluido etéreo, cada vez menos amplas, cada vez menos rápidas. As vibrações mais fortes tolhem e impossibilitam a completa manifestação das mais fracas; é por isso que na ausência do sol os sons e os aromas se tornam mais distintos.

Era a hora em que os ecos das majestosas florestas do Amazonas despertam, enchendo os ares com os sons variadíssimos dos gritos, cantos, gemidos e uivos das aves que se recolhem aos seus ninhos, dos quadrúpedes que deixam suas tocas para, protegidos pela sombra, irem à caça de sua subsistência. Pouco depois aí se restabelece o silêncio, até que desponte o novo dia, saudado pelos alados cantores que partem em bandos alegres em busca do alimento cotidiano.

Agitado e triste, o velho chegou à praia. Estava deserta. Pareceu-lhe, porém, que ao vê-lo chegar, um homem havia ocultado no mato. Ele apressou os passos resoluto e certificou-se, pelas pegadas na areia, que não tinha se enganado. Chegando ao lugar, ele viu encostado a uma árvore um jovem, que a pouca claridade não lhe impedia de reconhecer.

— Que faz aqui escondido, Sr. Alvear? — Perguntou-lhe com carinho. — Porque fugir à presença do seu velho João?

— Nada — respondeu o interpelado com uma perturbação que fez estremecer o último vindo; estava triste e vim espairecer aqui.

— Não, não me oculte coisa alguma. Desculpe-me, mas a sua intenção não é boa.

— Como? Desconfia de mim?

— Meu amigo, é ainda muito moço, pouco conhece o mundo. O senhor veio aqui com o fim de pôr um termo à sua vida.

— Quem lhe disse? — Perguntou o jovem desnorteado por ver-se descoberto.

— Faça-me um favor; adie por algumas horas seu criminoso projeto, venha à minha choupana; e, ali abrigados da friagem da noite, conversaremos em liberdade.

Dominado por um poder irresistível, o mancebo seguiu-o cabisbaixo, e ambos entraram na choça do solitário, que, cerrando a porta e acendendo uma vela de carnaúba, veio assentar-se diante do companheiro.

* * *

Para melhor conhecermos o principal personagem deste conto, termos de remontar o curso do tempo e transpor, sem os incômodos das viagens terrenas, uma extensão de centenas de léguas. Eis-nos chegados. Estamos no começo do nosso século, nos campos fertilíssimos da encosta ocidental da frondosa Serra do Herval, na província do Rio Grande do Sul.

Nas proximidades da margem direita do rio Camaquã erguia-se uma modesta casinha, habitada por um casal de pequenos agricultores. A mulher teria seus 45 anos e o marido era maior de 50. Eram ambos morenos, parecendo mestiços de índio com branco. Os frutos, que com tão diminuto cultivo a terra aí produz, davam-lhes os meios suficientes para viverem independentes. A vida correra-lhes sempre feliz, libertados, como estavam, das necessidades fictícias, que tanto mortificam aos habitantes das cidades. Eram muito religiosos, viviam em boa harmonia com seus vizinhos, que os estimavam e respeitavam.

Uma só coisa lhes faltava, como eles criam, para se julgarem completamente ditosos: era a vinda de um herdeiro, com quem partilhassem seus afetos, e que teimava em não querer lhes dar esse gosto.

Afinal o céu ouviu-os, e o tão desejado filho veio ao mundo. Deram-lhe o nome de João Paulo.

A alma humana é sempre vária e inconstante: satisfeita a ardente vontade do casal, vieram-lhe os sustos pelo futuro do menino. A província continuava a ser agitada pelas lutas de portugueses e espanhóis, o espírito militar despertava por toda a parte, e a pobre mãe já estremecia a ideia de ver um dia esse anjinho, que, sorrindo lhe estendia os bracinhos, atravessado por uma lança ou varado por uma bala inimiga.

O pequeno foi crescendo, mas era de natureza enfermiça, o que obrigava seus pais a vigiarem-no sempre com toda solicitude. Era ele de um gênio triste e concentrado, amante da solidão, muito dócil e obediente, excessivamente medroso de almas do outro mundo.

Era um temor inexplicável para seus pais, pois eles, conhecendo isso, buscavam sempre incutir-lhe no ânimo que as almas dos mortos iam para muito longe e não podiam vir ao mundo.

O menino tinha arraigada a crença na sobrevivência do espírito ao corpo, e tinha medo daquele.

Uma outra coisa ainda incomodava seus pais: o menino, quando estava só, tinha o hábito de falar como se conversasse com alguém, o que lhes fazia temer que ele viesse a acabar louco.

Uma vez, tinha ele 7 anos, pousou na morada de seus pais um viajante, que parecia pessoa bem colocada na hierarquia social. Estabelecida a familiaridade entre ele e seus velhos hóspedes, contou ele a sua desventura de ter uma filha sofrendo, havia já longos anos, de um mal que ninguém podia definir, e que resistia a todos os recursos da medicina.

João Paulo, que estivera ouvindo a conversa, saiu e pouco depois voltou com um molho de ervas, que entregou ao viajante, dizendo-lhe:

— Tenha fé em Deus, senhor! Dê uma infusão disto à sua filha e ela sarará.

Todos olharam pasmos para a criança, em cujos olhos havia uma tal expressão de angelical ternura que cativara e impunha. Sua mãe correu e suspendeu-o nos braços, receosa e sem saber explicar o que se passava.

Felizmente o viajante era um homem crente e, aceitando o presente, disse:

— Muitas vezes Deus se serve das criaturas fracas e inocentes para produzir suas grandes obras. Aceito suas ervas como uma dádiva do céu.

Toda a noite passou a pobre mulher em sobressaltos, esperando a retirada de seu hóspede para pôr o menino em confissão.

Amanheceu; o viajante seguiu a seu destino, e ela, ansiosa, chamou a contas o pobre João, que realmente não sabia explicar coisa alguma.

Ele contou que ouvira como uma voz íntima, que ele já estava acostumado a ouvir, e que esta lhe mandara sair e ir ao mato próximo, e que ali, ela ainda lhe dissera, apanhasse daquela erva e levasse-a ao hóspede de seus pais; e que depois disso ele ignorava tudo o mais, que havia feito.

A mãe, desatinada, quis levá-lo ao padre para benzê-lo, mas seu marido opôs-se dizendo-lhe:

— Esperemos o resultado; se este for bom, não pode ser uma obra do diabo, mas de Deus, como bem disse o nosso hóspede.

Passaram-se uns quatro meses. Uma manhã chegaram à casinha um homem e uma dama, bem trajados, pessoas de distinção que viajavam a cavalo.

— Não pude ir adiante sem vir vê-los — disse o cavalheiro, que era o viajante de quem falamos acima. — Vamos, minha filha, abraça o teu pequeno médico, foi ele o intermediário de Deus para a tua cura.

A moça apertou nos braços o pequeno e beijou-o.

Embalde quis o cavalheiro dar a sua bolsa em paga do grande favor recebido, com muita delicadeza lhe foi recusada.

— O que poderei então fazer ao seu filho? — perguntou ele. — Devemos-lhe tanto.

— Dê-me uma moeda para a pobre viúva, que mora ali adiante, e que acaba de perder seu único filho na fronteira.

A moça tomou a bolsa de seu pai e, entregando-a ao pequeno, disse lhe:

— Tome, dê-lhe tudo, no seu e no nosso nome.

João Paulo saiu correndo, orgulhoso com o seu triunfo.

— São muito felizes, meus caros hóspedes! Seu filho é o maior tesouro que o céu lhes podia conceder, acrescentou o viajante ao montar a cavalo.

Ao passarem por uma palhoça, que ficava ao lado da estrada, João lhes veio ao encontro, e lhes disse:

— Não continuem a sua viagem: a fazenda para onde se dirigem foi incendiada, e seus parentes não estão longe daqui.

Estavam ainda perplexos os viajantes, quando um cavaleiro, reconhecendo-os, veio a eles, e indicou-lhes o ponto onde encontrariam aqueles a quem buscavam. Tudo era exato, como João Paulo anunciara.

A notícia dessa cura maravilhosa propalou-se, e muitos enfermos lucraram com isso.

Em todos os tempos da história da humanidade apareceram na Terra naturezas predispostas à comunicação com os habitantes do mundo invisível: eram os adivinhos de outrora, são os médiuns de hoje. Mais raros nos tempos que já foram, em que por seu atraso o homem não podia compreender esse subido dom do céu: os médiuns hoje se multiplicam por todo o mundo, patenteando aos olhos de todos a nossa constante convivência com o mundo espiritual.

Os espíritos podem auxiliar-nos em tudo o que diz respeito ao nosso progresso físico, moral e intelectual; eles são os grandes impulsionadores dos adiantos, que vão tendo as ciências, as artes, as indústrias etc.

A mediunidade curadora, ou pela transmissão de fluidos do médium e do ambiente, por intermédio deste, ao corpo do enfermo, e a receitista que indica as enfermidades e os medicamentos que as devem combater, são dois poderosos agentes de propaganda, que hão de sempre triunfar de todos os meios que os despeitados empregam para reduzi-los ao silêncio. Inutilizai um médium, surgirão cem; porque os instrumentos dóceis não faltam, e os sugestionadores espirituais zombam dos ódios dos potentados da Terra.

João aprendera o ofício de marceneiro, porque tinha gosto para isso, e seus pais não o quiseram contrariar.

Seguiram-se as guerras da minoridade, a proclamação e desaparecimento da República de Piratini, aspiração precoce de almas patrióticas, e no meio dessas agitações João Paulo perdeu seus idolatrados pais com poucos meses de intervalo.

Ele sabia que os mortos não iam para longe, que esses seres queridos estavam com ele, que a velhice já lhes tornava a vida pesada, e por isso resignou-se. Mas não quis continuar a viver ali: vendeu ou deu o que tinha, e foi estabelecer-se em Porto Alegre com casa de marceneiro.

Aí conservou-se 10 anos, ganhando pelo seu ofício o preciso para aliviar muito sofrimento, exercendo a caridade, como manda o Evangelho, em que o beneficiado recebe o auxílio, sem conhecer a mão que lhe presta; ilustrando seu espírito pela leitura e observação, e derramando no círculo em que vivia, as luzes colhidas em suas lucubrações.

Ele via cada dia assaltarem-lhe o espírito novas ideias, que o transformavam completamente. Da religião acanhada que recebera de seus pais, sua mente iluminada ia buscar na natureza o único templo digno do Criador. A abóbada azulada do firmamento; os brilhantes focos de luz nela suspensos sobre as nossas cabeças; o mar imenso, ora calmo e sereno como a alma do justo, subindo aos céus num raio de crença, ora revolto pela tormenta, como a mente do criminoso agitada pelos remorsos; o doce canto das aves, o gemer da brisa, o estalar do raio; tudo lhe parecia animado, tudo lhe falava de Deus e da eternidade.

Sua mediunidade receitista e curadora foi-lhe aí um poderoso instrumento para acalmar muitas dores e restituir a saúde a muitos infelizes, que sem isso teriam sucumbido à míngua de tudo.

Os invejosos começaram a odiá-lo e buscavam meios de comprometê-lo, mas uma mão oculta protegia-o, e sempre os planos tenebrosos de seus desafetos eram malogrados.

Uma vez convidaram-no a ir à morada de um figurão da terra. Supondo que se tratava de utilizar-se de seu ofício, ele foi sem receio. Aí encontrou sobre um leito de dores um ancião respeitável, que, com a voz já muito enfraquecida lhe disse:

— Sr. João Paulo, há 5 anos que sofro os tormentos do inferno, sem ter um minuto de descanso. Tenho consultado todos os facultativos daqui, e alguns mais nomeados de fora. Tenho experimentado um sem número de medicamentos, e não consigo tolher a marcha do meu mal. Sei que com as suas ervas têm feito milagres, e quero confiar-me a si.

O pobre marceneiro procurou esquivar-se, pois reconheceu que alguns membros da família do enfermo não o recebiam com agrado, sem dúvida por julgarem-no um charlatão. Mas o velho acrescentou:

— Vá, pense e volte breve. Se não puder curar-me, busque ao menos dar-me algum alívio.

Recolhido a seu quarto o médium elevou seu pensamento aos céus, pediu a proteção de seus amigos do espaço, e obteve por escrito o seguinte conselho:

“As leis naturais se têm de cumprir. O enfermo que visitaste hoje, se aproxima de sua hora final, que nenhum socorro humano conseguirá retardar. Seu mal não tem cura; não tentes o impossível. Pede a Deus por ele. Aquela erva que ali tens, lhe poderá dar algum alívio, mas não curá-lo.”

— Não conseguirei curá-lo, e que pretexto de acusação vou fornecer aos que me odeiam!... Pois hei de deixar sofrer aquele homem por um receio que, talvez, seja sem fundamento?

Assim pensando ficou ele por algum tempo cabisbaixo e com os olhos fitos no chão. O relógio deu 6 horas, João ergueu-se, tomou a erva indicada e partiu. Chegando à morada do enfermo, veio recebê-lo a dona da casa.

— Minha senhora, disse ele, seu marido está irremediavelmente perdido; seus dias estão contados. Com uma infusão desta erva pode-se-lhe dar algum alívio. Quer tentar?

— Experimentemos, respondeu-lhe ela e conduziu-o ao quarto do enfermo, que estorcia-se no leito, e estendeu-lhe a mão como implorando compaixão.

— Vai ter descanso; tenha fé; aconselhou-lhe João com os olhos cheios de lágrimas.

Nos seis dias que se seguiram, ele foi ver o seu doente, que se mostrava calmo, conversando com seus parentes e extremamente penhorado pelo benefício recebido.

No sétimo dia soube João em sua casa que o enfermo tinha falecido, e que pela cidade acusavam-no de haver precipitado a crise. Essa notícia impressionou-o, mas bem depressa a consciência de sua inocência triunfou, e ele esperou resignado os acontecimentos.

Poucos dias depois, chamado perante a autoridade, já bastante influenciada pelas sugestões de seus desafetos, ele compareceu na secretaria da polícia, e viu logo que nada tinha a esperar dos homens.

Expôs tudo o que se havia passado, que só por sentimento de caridade tentara aliviar os sofrimentos daquele pai de família. O juiz foi inexorável e, declarando que as suas ervas tinham apressado a morte do enfermo, fê-lo recolher à cadeia.

No dia seguinte pela manhã, ao abrir sua janela, o juiz viu um grupo de indivíduos na praça ouvindo um homem, que lhe falava animado e apontando de vez em quando para o céu. Sua perturbação foi grande, reconhecendo que esse homem era o mesmo, que ele prendera na véspera. Mandou à prisão imediatamente indagar do que havia, mas ali ninguém ainda suspeitava, que o preso se tivesse evadido. A guarda, o carcereiro, ninguém sabia explicar o fato; mas o preso já lá não estava. O juiz fez vir João Paulo à sua presença e pediu-lhe explicações.

— Eu também não compreendo o que se passou. Vi aproximar-se da porta da prisão um homem, abri-la e mandar-me embora, ordenando-me que, logo que despontasse o dia estivesse na porta de Vossa Excelência, que me queria falar. Saí, os guardas dormiam; e o homem desapareceu, sem eu saber como nem por onde.

— Algum comparsa seu — retorquiu o juiz com mau modo. — Voltará para a prisão, e veremos se ainda os anjos ou o demônio o virão libertar.

O pobre seguiu cabisbaixo, foi de novo encerrado, e a guarda reforçada teve ordem de vigiar com toda atenção, com ameaça de severo castigo aos infratores.

A alta hora da noite o juiz foi à prisão.

Nenhuma novidade havia; o preso dormia tranquilo, as sentinelas dobradas estavam atentas, e o velho carcereiro tinha a chave da prisão amarrada à cinta.

Mal, porém, chegado à casa, se ia ele acomodando, bateram-lhe à porta.

Ele ergueu-se contrariado e mandou entrar a praça que lhe queria falar, e que lhe disse cheia de medo.

— Sr. Chefe, o preso desapareceu: a porta estava bem fechada e vigiada por duas sentinelas, todos nós estávamos prontos deitados ali juntos. Eu ia passando pelo sono, quando senti puxarem-me a perna; ergui-me e vi as sentinelas caídas com um ataque, a porta fechada e a chave na cinta do carcereiro; mas o diabo do feiticeiro tinha-se escapado.

Imagine-se a cólera do potentado, vendo-se assim ludibriado e exposto ao riso de mofa dos salões:

— Vocês hão de dar conta desse homem, morto ou vivo, trovejou ele, despedindo a praça.

Três dias depois um campônio, vindo da vila do Triunfo, contou que, se aproximando do rio Jacuí, viu caminhando a algumas braças adiante de si, o curandeiro João Paulo; que, levado pela curiosidade, ele acompanhou-o, viu-o chegar à margem do Jacuí, ajoelhar-se, lavar a cabeça e desaparecer; que indo até esse ponto, ele não descobriu alguém passando o rio.

Propalou-se a notícia do suicídio do marceneiro, e só então seus protegidos conheceram a mão oculta, que os auxiliava. Na sua oficina, porém, não se encontrou declaração alguma.

Pouco tempo depois, o chefe que tanto o perseguira, com a razão transtornada, suicidou-se lançando-se ao mar — fato que muita gente atribuiu a um castigo do céu.

Foi cerca de 8 meses depois do desaparecimento de João Paulo, que surgiu o solitário nas margens do Alto Madeira.

* * *

João fitou tristemente por algum tempo seu hóspede, que conservava os olhos fitos no chão, a face apoiada na mão esquerda, e o cotovelo sobre a perna, e depois com acento comovido e paternal lhe disse:

— Dizem com razão, Sr. Alvear, que desagravamos nossas penas, quando as partilhamos com um amigo. Dê-me a honra de julgar-me seu amigo, porque realmente o sou, e conte-me o que lhe faz tanto aborrecer a vida, ainda numa idade em que tudo sorri ao homem.

— Sr. João! Como as aparências iludem! Há, por certo, muita gente que me inveja a vida e, no entanto, eu fui e sou mais desventurado dos homens.

Tenho um segredo que, por vergonha, nunca confiei à pessoa alguma; mas sou obrigado a fazê-lo agora, pois há nele plena justificação ao que estou resolvido a fazer. Meu pai foi um negociante abastado da praça do Pará; minha mãe morreu dando-me à luz. Vê, pois, que não foi muito auspiciosa a minha entrada no mundo.

Meu pai concentrava em mim todo o seu carinho, mas como tinha de fazer contínuas viagens ao Amazonas, e eu não possuía outros parentes na capital e nem podia acompanhá-lo, resolveu-se, só por amor de mim, a casar-se de novo, escolhendo para companheira uma moça de família muito pobre, que, ao menos por gratidão, devia interessar-se por seu filho. Não aconteceu assim; essa infeliz foi o anjo mau que lhe envenenou os últimos anos de vida.

Vinha à nossa casa frequentemente um negociante arruinado do rio Negro, de caráter sombrio e antipático, chamado André Turino...

— André Turino! — disse João, admirado.

— Sim, é o mesmo em que pensa. É esse velho estabelecido hoje em Manicó. Esse homem, depois de por 6 anos iludir a confiança de meu pai, acabou raptando-lhe a mulher.

— E a mulher? — perguntou João.

— É a mesma com que vive ainda, e que desposou depois da morte de meu pai; que, sofrendo e sempre triste, fugindo da sociedade, aguentou-se ainda 15 anos, só sustentado pelo amor que me dedicava. Morto ele, continuei com a casa de negócios, esforçando-me para imitar sua honradez, por todos reconhecida. Aos 25 anos julguei que devia casar-me, e sentindo uma inclinação real por uma menina, filha do negociante português Jerônimo Rios...

— Parente desse que foi assassinado no Jamari? — perguntou João.

— Ele mesmo, que depois veio se estabelecer nesse ponto. Pedi sua filha e fui aceito, mas por ser ela ainda muito jovem, o casamento demorou-se. André Turino conseguiu ter ingresso em sua casa, e eu depois de algum tempo comecei a notar que me tratava com frieza, e para abreviar, no fim de um ano a pobre Silvina casou com Álvaro, filho de Turino.

— Conheço-o; já vejo que teve a quem sair.

Tem dado muitos desgostos à mulher, que hoje vive em companhia da viúva de Rios, e este morreu sem, há muito, nem querer vê-lo.

— Desfiz-me da minha casa de negócios e vim estabelecer-me aqui, há 6 anos. Agora ouvi o que nunca confiei à pessoa alguma. Desde criança dominou-me sempre um pensamento importuno e inexplicável de apossar-me do alheio.

“Nunca tirei de quem quer que seja, juro-lhe pelas cinzas queridas de meus pais, alguma coisa; nunca enganei alguém para me apossar de um real que fosse. Ao contrário, meus escrúpulos, muitas vezes, me causaram sérios prejuízos. Apesar disso, porém, sempre me perseguia esse pensamento infernal. Isto me abatia, mas eu esperava sempre que Deus se amerceasse de mim.

“Não me encontrei mais com Jerônimo Rios, senão há cerca de dois meses, quando tive de ir fazer-lhe um pagamento por ordem do meu correspondente do Pará. Ao entrar eu em sua casa, ele, pálido e chorando como uma criança, lançou-se-me nos meus braços, e contou-me a desgraça de sua filha, ligada a um monstro, como ele me disse. Busquei consolá-lo, e no dia imediato, ao amanhecer, parti para cá. Ele acompanhou-me até o meio do caminho, onde nos despedimos. Soube depois não haver ele tornado à casa, desconfiando-se que tenha sido assassinado e roubado, porque ele trazia consigo uma quantia importante e papéis de valor. Hoje recebi a notícia de ter vindo uma ordem de prisão contra mim como autor desses crimes.”

João, triste, abaixando a cabeça, disse à meia voz:

— Insondáveis arcanos da Providência!

— Ah! — tornou Alvear, exaltando-se. — Poderei eu crer nessa providência? Lutei toda a minha vida contra a tentação do roubo, venci-a sempre, e a recompensa é ver hoje o meu nome injustamente maculado! Não, a ideia da justiça de Deus fugia-me da mente, e eu quero a morte como o termo, o aniquilamento de uma vida condenada à desgraça e à vergonha.

— Não se altere — tornou João —, escute-me; conversemos ainda. Contemplando a majestade desse esplêndido panorama que nos cerca, a harmonia sublime que por toda a parte se manifesta nas obras da criação, a beleza arrebatadora do manto azul do firmamento, fina cortina de gaze corrida entre a nossa vista e a imensidade, onde rolam infindos mundos, radiantes de esplendor e vida; meditando sobre os inocentes amores dessas inúmeras famílias de alados cantores, que encantam com seus ternos gorjeios estas solidões, pôde algum dia o senhor acreditar, que tudo isso fosse uma obra do puro acaso?

— Não, nada na natureza se fez por si mesmo. Deus existe, mas tem sido comigo bem cruel.

— Quem lhe afirma que esta prova, por que passa agora, não será o momento oportuno, para que se manifeste consigo, bem patente, essa justiça que agora nega? Lutou toda a sua vida contra a tentação; se acusado agora, apesar de inocente, essa sua inocência for reconhecida e proclamada pelos homens, quando o senhor se julga irremissivelmente perdido, não virá isso confirmar-lhe a crença na existência da força que rege os destinos do mundo? E esse pensamento fortalecido não lhe virá dar mais ânimo para prosseguir na luta, que até hoje tem sustentado? O seu suicídio vem, pelo contrário, macular-lhe o nome, fazendo que se suspeite, que o senhor não era inocente da falta que lhe imputam. Defenda-se até a última hora, e deixe que Deus decida.

“Eu vejo que o senhor acredita na imortalidade da alma humana. Raciocinemos. Nós vemos na Terra indivíduos bons e indivíduos maus. Seria possível que Deus, tão poderoso e tão sábio, fosse injusto? Não, a injustiça é filha do nosso atraso. Mas, se Deus é justo, por que nascem uns com propensões viciosas e outros com inclinações para o bem?

“Só há uma teoria que responde satisfatoriamente a essa pergunta, é a que nos ensina que esta não é a nossa primeira nem a nossa última vida, que nós já vivemos na Terra ou em outros mundos, e ainda viveremos aqui ou alhures, com outros corpos, para purificarmo-nos de nossas imperfeições pela luta, pelos sofrimentos. Cada uma de nossas vidas é um cadinho, em que nosso espírito vem deixar uma parte de suas impurezas. Encarnando-se, nosso espírito traz os sentimentos que o dominam, os bons que os sustentarão, os maus com que ele tem de lutar. O senhor pediu essa prova; com os seus sentimentos bons combate essa ideia de rapina que o obseda, legado, não se ofenda com isso, de suas outras vidas. Os espíritos estão em contínua relação conosco. Há entre eles bons e maus, amigos e inimigos; é um inimigo seu quem lhe sugere esse sentimento repulsivo do crime; são seus amigos que o auxiliam no combate. Não fraqueie, resista e vencerá.

— Ah! Que vergonha! Meu Deus! Preso por assassino e ladrão!

— Tenha fé — retorquiu João com um tom de profunda convicção —, eu tenho toda a certeza que o verdadeiro criminoso será descoberto.

No meio do silêncio profundo que então reinava, ouviram ambos uma voz bem distinta de mulher dizer de fora:

— Obrigada, João!

— Que é isso? — perguntou Alvear, sobressaltado, indo à porta.

— Alguma ave retardada que regressa ao ninho.

— Pareceu uma voz humana.

— Ilusão — disse o solitário sorrindo —, a esta hora ninguém se aproxima desta morada frequentada pelas almas do outro mundo. Vamos; eu o acompanharei esta noite.

O luar estava magnífico; o sítio ficava a uns 3 quilômetros, e os dois foram dormir no sítio de Alvear; onde o velho desenvolveu-lhe todo o seu tesouro de doutrina, que derramou torrentes de fé e de esperança na alma do moço.

Às 7 horas da manhã chegou o subdelegado do distrito, amigo de Alvear, que abraçou-o, e com a voz alterada lhe disse o que havia. Viera por ordem de Manaus para prendê-lo por suspeitas de cumplicidade no desaparecimento de Jerônimo Rios, que se supunha que fora assassinado. As suspeitas baseavam-se em ter havido poucos anos antes um resfriamento de relações entre os dois, e ter Alvear ido à casa de Rios e saído com ele, não tornando este à casa.

— Eu creio na sua inocência — disse o recém-chegado —, como na minha própria. Vim só, e quero que me conte tudo, pois hei de fazer o possível para descobrir o culpado.

Alvear narrou-lhe tudo minuciosamente: a indisposição que tivera com Rios havia 5 anos; o modo amigável por que este recebeu-o; o fim de sua visita, documentado com a carta do seu correspondente e o recibo passado pelo desaparecido; o modo despreocupado com que ele voltou à sua casa, como podiam atestá-lo os agregados, que o acompanharam na sua volta pelo rio.

Tinha, porém, Alvear de ir à Manaus e seguiu com o subdelegado para o Jamari, onde deviam aguardar a chegada do barco a vapor, que os levaria à capital da província.

Quando, pálido e com os olhos cheios d’água, Alvear abraçou seu velho conselheiro, este repetiu-lhe ainda:

— Tenha fé. Deus o salvará.

* * *

Na margem esquerda da barra do Jamari erguia-se, na época a que nos referimos, uma grande casa de palha, onde se fornecia pousada aos passageiros, que aí vinham esperar a chegada do barco a vapor, que fazia viagem de ida e volta para a capital.

O barco estava carregado e partia no dia seguinte. Vários negociantes aí se achavam reunidos e conversavam sobre seus negócios. Alvear, que havia chegado na véspera, estava sentado a um canto, cabisbaixo e pensativo, cismando na dolorosa situação em que se achava, supondo ler em todos os semblantes uma repulsão, que talvez só existisse em sua imaginação.

— Sr. Alvear, disse o subdelegado, que com ele viera, vamos para a mesa, são horas de almoçar. Deixe-se de criançadas, seja homem.

Todos tomaram assento ao redor de uma grande mesa, colocada no centro da casa, sobre a qual fumegavam apetitosos guisados de tartaruga e peixe, e um assado de anta, carne saborosíssima, superior à do porco doméstico. Servia aos hóspedes um homem de meia idade, tipo indiático, fleumático como todos os índios mansos do Amazonas. Joaquim era o seu nome, mas todos juntavam-lhe o codinome Açaí, por causa da sua paixão por essa bebida.

O almoço ia em meio, quando um novo hóspede entrou na sala, era o solitário do Alto Madeira. Seu ar solene denunciava, que se havia passado alguma coisa de extraordinária. De pé, com a voz passada e firme, dirigindo-se ao subdelegado que ocupava a cabeceira da mesa, ele disse:

— Senhor juiz, eu venho esclarecer a justiça sobre o assassinato do mal-aventurado Jerônimo Rios.

Todos se ergueram espantados e fitaram-no.

— Eu sei — continuou ele — onde o corpo está sepultado. Está junto a um umbuzeiro pouco afastado da estrada, a meio caminho da casa de Rios a este ponto; e quem o enterrou aí, foi aquele homem — apontou para o índio Joaquim Açaí.

— Mas não fui eu que o matou — respondeu o índio, pálido como um cadáver. Foi o Sr. André Turino que fez isso, e me obrigou a ir com o seu escravo Pedro enterrar o corpo no mato.

Os soldados da escolta que viera de Manaus, tiveram ordem de não deixar sair alguém: e a autoridade dirigiu-se a Joaquim:

— Narre-nos o fato, como se deu; nada oculte, e nada tema.

Joaquim continuou, um pouco mais animado:

— Eu estava junto à estrada tirando seringa, quando vi passar o Sr. Alvear com o Sr. Rios. Não me importei com isso e fui continuando no meu trabalho. Cerca de meia hora depois, já me achando eu mais afastado, ouvi alguém pedindo socorro e dizendo: “Não me mates, miserável ladrão!” Corri para a estrada e vi o Sr. Rios caído e o Sr. André Turino tirar-lhe do bolso uma carteira e papéis e guardá-los. Não tive ânimo de dizer nada. Ele se ergueu e, vendo-me, atirou-me com duas moedas de prata, dizendo: “Toma para matares o bicho. Se fores prudente, terás maior paga; mas, se por ti se vier a saber disso, fica certo que esta faca te fará nunca mais denunciar a outro.” Ele assoviou, e Pedro que estava perto, apareceu. Então ele mandounos enterrar o corpo em cova bem funda. Nós o sepultamos junto do umbuzeiro. Agora eu peço que me livrem do Sr. Turino, que é um homem do diabo.

— Nada temas, fica conosco — respondeu a autoridade. E sabes onde está Pedro agora?

— Está perto, vai pela estrada, esteve aqui ainda há pouco.

Mandou-se-lhe no encalço, e encontrado, ele se apresentou. Era um crioulo, ainda muito moço e bem falante. Seu depoimento, devido ao terror que lhe inspirava seu senhor, confirmou em tudo o de Joaquim.

Duas praças ficaram guardando os dois cúmplices do crime, e o subdelegado com os seis restantes e alguns homens de confiança dirigiu-se ao estabelecimento de André Turino, rio abaixo. João, ao embarcar em sua canoa para tornar ao seu sítio, disse, ao despedir-se de seu amigo Alvear:

— Então existe ou não uma Providência, guiando os negócios dos homens?

— Sim — respondeu o mancebo —, abraçando-o, e tem na Terra anjos encarregados do cumprimento de seus santos decretos.

Houve alguma imprudência da parte da autoridade em ir assim intimar a ordem de prisão mesmo em casa de Turino, por todos reconhecido como homem mau e rixoso, e que tinha em seu serviço cerca de 30 homens, na maioria soldados escusos do serviço, turbulentos e destemidos. Felizmente todos tinham seguido em uma expedição com Álvaro, filho de Turino, e só estariam de volta pelas 9 horas da noite. Só se achavam em casa André Turino, sua mulher e uma criada negra.

Contrariamente ao que se esperava, Turino acovardou-se e, informado do depoimento dos seus dois cúmplices, caiu em profundo abatimento, e confessou sua falta. Como fora de si, ele disse:

— Já não posso. Há dois meses que o espectro de Rios me persegue por toda a parte, ameaçando aniquilar-me.

Eram 5 horas da tarde, quando ele partiu com o subdelegado e a escolta para o Jamari, a fim de seguir para Manaus na manhã seguinte.

Deixemo-los partirem ao seu destino, e demoremo-nos no sítio de André Turino.

* * *

Era de alguma importância o estabelecimento de Manicó; além do cantchin, baunilha, cacau, ipecacuanha e salsa, daí se exportava milho, de que havia grandes plantações, bananas, e peixe salgado. A casa de vivenda da família, afastada da praia, era de paredes de barro rebocadas e caiadas, mas coberta de palha, era uma casa grande e de bonito aspecto. Há cerca de 500 metros dela viam-se as palhoças dos agregados.

Às 9 horas da noite chegaram os exploradores extenuados de fome e de fadiga. Álvaro, sabendo o que se havia passado, ficou como uma fera e vociferou contra a covardia do pai, e a incúria da mãe e da criada, que não correram a avisá-lo, fosse como fosse. Ele resolveu ir com os seus às 2 horas da manhã assaltar o pouso do Jamari e arrancar seu pai das mãos da justiça. Distribuiu armamento à sua gente e mandou-a comer e dormir, para estar pronta na hora aprazada. Duas grandes canoas os conduziriam, e a distância de menos de 7 léguas seria vencida em menos de 2 horas.

Todos se recolheram, ele só, com a cabeça em fogo, passeou por algum tempo em frente à casa, e depois, já pronto, foi sentar-se na borda de uma das canoas, como querendo por sua ansiedade precipitar o curso do tempo. O cansaço fê-lo dormitar, mas de súbito foi despertado por um alarido horroroso; a plantação ardia, os homens da fazenda despertavam meio queimados de suas palhoças incendiadas e, ainda tontos de sono, corriam seminus em todos os sentidos.

— Os Parintins! Demônio! — bradou o filho de Turino, engatilhando sua espingarda.

Eram, com efeito, eles, esse flagelo dos habitantes do Madeira abaixo do Jamari, hoje muito reduzidos pelas perseguições que por todos os modos lhe promovem, mas então para todos um objeto de horror. Não havia ano em que eles não aparecessem, incendiando, matando e destruindo tudo como uma sanha feroz. São antropófagos e excessivamente cruéis. Atacam de preferência de surpresa, escolhendo a noite para as suas satânicas proezas, e por meio de mechas acesas presas às suas flechas ateiam o incêndio nas casas e plantações. Um pedaço de pano grosseiro passando-lhes por entre as pernas e prendendo-se à cintura é o seu vestuário único; seu rosto e corpo são cobertos de traços negros e figuras, que os tornam hediondos. Eles não se batem a pé firme, mas saltando para um e outro lado, a fim de impedir que lhes façam pontarias. Durante o combate levantam uma grita medonha, para intimidarem aos contrários. Eles tinham visto a partida e o regresso da expedição, e contavam com o cansaço dos trabalhadores, para surpreendê-los.

Álvaro, vendo em chamas a casa de sua família, lembrou-se de sua velha mãe e correu para lá. Oh! Desespero! As portas estavam arrombadas, as infelizes, ama e criada, tinham sido surpreendidas durante o sono e arrastadas para as brenhas por esses canibais.

Ele conseguiu reunir sua gente e avançou contra os selvagens, que se iam retirando. Em um descampado, do vermelho clarão do incêndio, os índios acossados empenharam combate. Um deles, chefe, estava no meio do terreno, fazendo face aos assaltantes. As balas pareciam respeitá-lo; mas afinal um ex-soldado enviou-lhe uma diretamente no peito; o selvagem cambaleou, estendeu o arco; sua flecha partiu e atravessou a garganta do seu vencedor. Ele também caiu, e o combate tornou-se furioso, pois seria uma vergonha para a tribo inteira deixar o cadáver de seu chefe em poder do inimigo. Um selvagem avançou, protegido por uma nuvem de flechas e ameaçado pelas balas contrárias, pôs o cadáver ao ombro e partiu; uma bala derrubou-o, outro selvagem substituiu-o e com o corpo às costas ganhou a mata. Tudo cessou por parte deles, e os malvados desapareceram como os fantasmas de um sonho.

Os perseguidores embrenharam-se atrás deles, mas era inútil, não os encontrariam.

O dia surgia, e o plano de Álvaro fora aniquilado por um poder desconhecido.

Daí a pouco o barco a vapor se aproximava da praia. Nada mais havia a fazer-se; a destruição estava consumada, e ir ao encalço dos selvagens era perder tempo inutilmente. Ao ouvir a narração do que se passara, André Turino, que não quis sair do seu camarote, exclamou com acento lúgubre:

— Estás vingada, sombra de Rios! Estás vingada; eu sou um desgraçado.

Ninguém mais conseguiu arrancar-lhe uma palavra até Manaus.

* * *

Tinha decorrido um mês depois dos últimos acontecimentos que acabamos de contar. João acordara triste e, sem saber por que, tinha vontade de chorar. Alvear chegara na véspera, e narrara-lhe o que se havia passado na capital. André Turino estava louco, ora furioso, ora buscando um esconderijo, dizendo que o fantasma de Rios o queria arrastar para o inferno. O julgamento fora suspenso.

O velho boliviano, companheiro do solitário, acabava de chegar do mato, onde fora preparar uma armadilha para dar cabo de um veado, que lhe estava estragando a roça. Em lugar apropriado ele colocara a espingarda com carga de bala e chumbo grosso, presa ao gatilho por uma corda que, esticada, a faria descarregar. O animal, passando, se encarregaria dessa tarefa, pois não podia evitar o encontro da corda.

Estava ele entregue aos seus trabalhos culinários, quando Alvear chegou e entrou a conversar sobre a doutrina, que tanto o havia consolado. De repente em frente a uma janela lateral, que ficava a algumas braças do mato, soou um tiro, e o solitário recebendo a carga em pleno peito, tombou dizendo:

— Álvaro Turino, desgraçado!

Alvear e o índio tomaram suas espingardas para perseguirem ao assassino:

— Não, disse o solitário com voz já pouco clara; é inútil, meu trabalho está concluído, meus pais me esperam; entreguemos à Deus esse infeliz. Sr. Alvear, proteja a esse meu pobre companheiro e lembre-se sempre de seu amigo João Paulo.

Tinha expirado. A dor de seus dois amigos se manifestava nas lágrimas abundantes, que derramavam. Ouviu-se então uma forte detonação ao longe, aumentada pelo eco da floresta.

— Oh! Bradou o velho boliviano, o malvado foi punido por Deus, caiu na minha armadilha.

Foram ambos ao lugar com outros vizinhos, que haviam chegado, e encontraram o cadáver do infeliz Álvaro ferido no coração.

* * *

Alvear fez construir no cemitério de seu estabelecimento uma sepultura decente para encerrar o corpo de seu excelente amigo, e conservou consigo o velho companheiro deste. Seus negócios foram bem, e depois de um ano, ele desposou a filha de Rios, viúva de Álvaro Turino.

Com os ensinos do solitário ele compreendeu o que se passava consigo, e o pensamento que o atormentava desde criança, tinha desaparecido.

André Turino falecera louco em Manaus.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025

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