O
SAPO
À noite, porém, como ele andasse meio febril e
nervoso, com ligeiras manifestações de alcoolismo, o Bruce teve uma espécie de
pesadelo, um sonho estrambótico e incômodo.
Apresentou-se-lhe o pai, pequenino, com uma
estatura inferior à que tinha em vida, e vinha todo risonho, todo malicioso,
pisca-piscando os olhos sem cílios. Bateu-lhe de leve num ombro, encarou-o um
instante, e disse-lhe, em tom de camaradagem jovial:
— Então? Passaste-me a perna, canalha? Não
quiseste cair no laço? Pois olha, eu gastei uma vida inteira para armá-lo...
Não sabes como eu te invejo de lá de cima, ladrão, esta bela vidinha que
conseguiste seguir! É o que devia ter feito e não fiz, por simples poltroneria.
Passei sem incomodar-me com coisa alguma deste mundo, no mais profundo egoísmo,
isso é verdade, mas, afinal, um modo de gozar muito aborrecido e monótono.
Continua!... E adeus! Paz e bichas, meu velhaco!
Nisto o Bruce viu o velho disparar para cima, numa
gargalhada estridente, infernal.
Daí por diante, quase todas as noites, foi aquele
tormento.
Mas, ora a aparição se apresentava sob este
aspecto, ora sob formas diferentes.
De uma vez ele viu somente isto: o velho passou-lhe
pelos olhos tal qual o Bruce sempre o conhecera, ansioso, calado, com aquela
preocupação de quem se anda preparando para uma longa viagem. Lançou-lhe,
porém, um olhar indizível, de desprezo e de lástima. Daí a pouco voltou, nessa
mesma atitude, inalterável. Foi. Tornou a voltar instantes depois. Andou assim,
nesse passe e repasse, vagaroso, intermitente, dez vezes. E vinha iluminado
como por um clarão duradouro de relâmpago.
A pior dessas visões, porém, teve-a o Bruce numa
noite em que o velho se lhe apresentou quase tal e qual tinha vindo da
primeira. Apenas estava minúsculo, vinha olhando para o filho como para uma
torre perdida nos ares. Trazia o mesmo sorriso, mas agora mais lisonjeiro,
servil. Principiou a falar-lhe, a captar-lhe a confiança, untuoso.
Embrenharam-se por conversas escabrosas, de bandidos alegres, os dois. O Bruce
abriu-se francamente, a dar esclarecimentos minuciosos, que o pai, cheio de
curiosidade, pedia, contando-lhe processos de vida que adotara, audazes,
criminosos, infames.
Nesse tempo, entretanto, um mês depois que aqueles
pesadelos tinham começado a visitá-lo, ele já modificara seus costumes,
impressionando-se progressivamente com aquilo, de modo a ter atingido a um
verdadeiro terror.
Fora ficando silencioso, arredio. Continuara a
frequentar algumas rodas, porque literalmente estava dependente delas,
precisava de pão. Demais, não conseguira livrar-se do álcool. Pelo contrário,
de cada vez bebia mais, preferindo com paixão a aguardente e o conhaque.
Como tinha uma resistência rara, porém, lhe era
muito difícil embriagar-se de modo a ficar numa inconsciência completa e
salvadora.
Pelo contrário, quase sempre, dormitava entre uma
meia lucidez e uma meia alucinação, diabólica e cáustica.
Tinham-lhe voltado suas preocupações morais. Ele
se encontrara de novo consigo mesmo, mas ficara assombrado da ruína trágica que
representava agora, vendo-se cheio de crimes e de lama. Rompera-se aquela
antiga conciliação entre o seu orgulho e a sua individualidade própria.
Então o infeliz se tornara o algoz de si mesmo,
achava-se asqueroso, comparava-se como noutros tempos comparava os outros, a um
sapo.
— Sapo! Sapo! Sapo! — gritava ele para dentro de
si, pondo-se num inferno, por seu motu próprio.
Nessa noite recolhera-se com o estômago varado de
fome, sem quase o sentir, porque havia três dias não procurava alimento.
Acabara por passar assim, isolado de todos, sem
comer, principalmente sem dormir, aterrorizado de seus sonhos, assustado do
mundo, como quem vai entrar numa completa alucinação.
Corriam por esse tempo os últimos dias mais
rigorosos do estio.
Achava-se incompatível de viver, indigno de ter
por amigos até os cães. Queria morte, mas depois de uma penitência sem exemplo,
que ainda lhe pudesse trazer a salvação.
Passara a crer novamente, mas com uma crença de
réprobo, assaltada de um medo furioso, indomável.
E talvez porque seu espírito se houvesse
embrenhado por esses tenebrosos caminhos, aquele sonho que ora o surpreendera,
quando ele estava debruçado sobre a mesa, foi tomando um desenvolvimento
singular.
Aos poucos, capcioso, o pai, depois de lhe ter
arrancado aquelas confissões absolutas, assumiu uns ares irônicos, que se foram
fazendo amargos, e começou a ridicularizar-lhe as opiniões perversas, a
aborrecê-las, a enojar-se delas, a evidenciar-lhes a infâmia e a baixeza. E
enquanto isto ia insensivelmente crescendo.
— É assim, filho, é assim, acabou por trovejar,
essas ideias são mais repugnantes do que o vômito de um gato leproso! E tu és o
defensor confesso, o praticador confesso de tudo isso, não és?!
Agora ele estava gigante, media-se face a face com
o Bruce.
— É desse modo então que ouviste as minhas
derradeiras palavras?! — continuou. — É assim que perpetuas a minha tradição
sobre a terra?! É sujo, da cabeça aos pés, como estás, que aspiras ao caminho
da Resplandecência e da Pureza?! Filho, eu ainda te chamo assim para ter o
direito de amaldiçoar, como te amaldiçoo para sempre!! Tremes?! Ele ironizou
pungente, como visse o infeliz numas convulsões de epilético, tremes?! Que
fizeste de teu incomparável orgulho, então?! Ah! É que te sentes podre, já meio
oco, como um olho que de tanta sânie vazou! Tinhas orgulho por quê? Hoje, vê
tu, és pior do que todos quantos desprezavas! Hoje, Bruce, hoje tu és sapo!!
Mas, enquanto falava, a visão sinistra fora
crescendo sempre, e agora, de tão grande, já estava longe das proporções
humanas.
A vítima miseranda daquela alucinação, pelo
contrário, sentia-se cair, cair sobre si mesma, fazendo-se meio rotunda, meio
informe.
Quando aquela última frase retiniu-lhe aos
ouvidos, pareceu-lhe que por todos os lados o fantasma se multiplicava, e que,
de toda parte, em coro, aqueles múltiplos fantasmas saídos de um só repetiam em
estribilho implacável:
— Sapo! Sapo! Sapo!
E aí o Bruce se sentiu sapo, fisicamente, em
verdade.
Ele viu malhas amarelas e verde-escuras
cobrirem-lhe o corpo, os olhos saltaram-lhe, rubros, das órbitas, veio-lhe uma
ânsia enorme de desabafar aquela angústia, mas, ao mesmo tempo, ele sentiu uma
força invencível impeli-lo para o solo, onde caiu com as duas mãos, que já lhe
pareceram encurtar-se como forma de patas. Então, saltando, saltando,
quadrúmano, ele começou a arrancar da alma umas notas de fazer chorar pedras,
mas sob a forma horrível de um coaxar perfeito, com que despertou toda a casa,
assombrada.
O Bruce estava para sempre louco.
Agora ele vive em hospital de alienados,
ordinariamente modorrento durante o dia, de rastros no chão. Tem-se por um
grande batráquio solitário, encurralado numa espécie de aquário lamacento e
triste. Passa as horas apanhando insetos, de boca entreaberta, ou a catar do
solo coisas malsãs, negando-se a receber outros quaisquer alimentos.
Quando o dia vai declinando, ele começa a
despertar, a olhar para o céu, através das grades da cela. Batem-lhe os últimos
raios de sol, mortiços e suaves, sobre as costas, o ocidente todo tocando de
mágoas, como um campo onde saudades de várias cores, lírio, vieux roses, roxas
e brancas florescem. E ele se sente todo voluptuoso, todo vibrante, com a epiderme
assim mornamente aquecida.
Começa então a coaxar. São notas tão tristes essas
de seu estranho canto monótono, que às vezes a casa inteira fica suspensa
daquela boca condenada, os outros loucos, próprios, como que recuperando
momentaneamente a razão.
Nos dias em que a lua, sedutora fatal, o atrai e o
convulsiona, deixando-o como uma tempestade encarcerada, aquela visão sinistra
que lhe quebrou o último fio de razão vem atormentá-lo frequentemente, sob
formas diversas, mas sempre impiedosas e malditas.
Passada essa fase, porém, alucinações cheias de
misericórdia o protegem. Por horas e horas lhe faz companhia o velho pai, mas
com a estatura que tinha em vida, pequenina e trêmula, meigo como o Bruce nunca
o tinha conhecido, abraçado com ele, chorando ambos o velho lastimando-se da
indiferença com que passou pela terra, e por isso participando agora daquela
imensa desgraça, voluntariamente, como de um castigo que para ser justo deve
ser comum. E então no pobre louco às vezes ressurge sua esperança morta, ele
entrevê o Céu de novo, mais claro, e maravilhoso como nunca, ouve daqui de
longe as fanfarras dos anjos, músicas cheias de clemência e de serenidade, que
só lhe falam de Amor e de Perdão.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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