4/15/2025

O sapo (Conto), de Nestor Victor


O SAPO

À noite, porém, como ele andasse meio febril e nervoso, com ligeiras manifestações de alcoolismo, o Bruce teve uma espécie de pesadelo, um sonho estrambótico e incômodo.

Apresentou-se-lhe o pai, pequenino, com uma estatura inferior à que tinha em vida, e vinha todo risonho, todo malicioso, pisca-piscando os olhos sem cílios. Bateu-lhe de leve num ombro, encarou-o um instante, e disse-lhe, em tom de camaradagem jovial:

— Então? Passaste-me a perna, canalha? Não quiseste cair no laço? Pois olha, eu gastei uma vida inteira para armá-lo... Não sabes como eu te invejo de lá de cima, ladrão, esta bela vidinha que conseguiste seguir! É o que devia ter feito e não fiz, por simples poltroneria. Passei sem incomodar-me com coisa alguma deste mundo, no mais profundo egoísmo, isso é verdade, mas, afinal, um modo de gozar muito aborrecido e monótono. Continua!... E adeus! Paz e bichas, meu velhaco!

Nisto o Bruce viu o velho disparar para cima, numa gargalhada estridente, infernal.

Daí por diante, quase todas as noites, foi aquele tormento.

Mas, ora a aparição se apresentava sob este aspecto, ora sob formas diferentes.

De uma vez ele viu somente isto: o velho passou-lhe pelos olhos tal qual o Bruce sempre o conhecera, ansioso, calado, com aquela preocupação de quem se anda preparando para uma longa viagem. Lançou-lhe, porém, um olhar indizível, de desprezo e de lástima. Daí a pouco voltou, nessa mesma atitude, inalterável. Foi. Tornou a voltar instantes depois. Andou assim, nesse passe e repasse, vagaroso, intermitente, dez vezes. E vinha iluminado como por um clarão duradouro de relâmpago.

A pior dessas visões, porém, teve-a o Bruce numa noite em que o velho se lhe apresentou quase tal e qual tinha vindo da primeira. Apenas estava minúsculo, vinha olhando para o filho como para uma torre perdida nos ares. Trazia o mesmo sorriso, mas agora mais lisonjeiro, servil. Principiou a falar-lhe, a captar-lhe a confiança, untuoso. Embrenharam-se por conversas escabrosas, de bandidos alegres, os dois. O Bruce abriu-se francamente, a dar esclarecimentos minuciosos, que o pai, cheio de curiosidade, pedia, contando-lhe processos de vida que adotara, audazes, criminosos, infames.

Nesse tempo, entretanto, um mês depois que aqueles pesadelos tinham começado a visitá-lo, ele já modificara seus costumes, impressionando-se progressivamente com aquilo, de modo a ter atingido a um verdadeiro terror.

Fora ficando silencioso, arredio. Continuara a frequentar algumas rodas, porque literalmente estava dependente delas, precisava de pão. Demais, não conseguira livrar-se do álcool. Pelo contrário, de cada vez bebia mais, preferindo com paixão a aguardente e o conhaque.

Como tinha uma resistência rara, porém, lhe era muito difícil embriagar-se de modo a ficar numa inconsciência completa e salvadora.

Pelo contrário, quase sempre, dormitava entre uma meia lucidez e uma meia alucinação, diabólica e cáustica.

Tinham-lhe voltado suas preocupações morais. Ele se encontrara de novo consigo mesmo, mas ficara assombrado da ruína trágica que representava agora, vendo-se cheio de crimes e de lama. Rompera-se aquela antiga conciliação entre o seu orgulho e a sua individualidade própria.

Então o infeliz se tornara o algoz de si mesmo, achava-se asqueroso, comparava-se como noutros tempos comparava os outros, a um sapo.

— Sapo! Sapo! Sapo! — gritava ele para dentro de si, pondo-se num inferno, por seu motu próprio.

Nessa noite recolhera-se com o estômago varado de fome, sem quase o sentir, porque havia três dias não procurava alimento.

Acabara por passar assim, isolado de todos, sem comer, principalmente sem dormir, aterrorizado de seus sonhos, assustado do mundo, como quem vai entrar numa completa alucinação.

Corriam por esse tempo os últimos dias mais rigorosos do estio.

Achava-se incompatível de viver, indigno de ter por amigos até os cães. Queria morte, mas depois de uma penitência sem exemplo, que ainda lhe pudesse trazer a salvação.

Passara a crer novamente, mas com uma crença de réprobo, assaltada de um medo furioso, indomável.

E talvez porque seu espírito se houvesse embrenhado por esses tenebrosos caminhos, aquele sonho que ora o surpreendera, quando ele estava debruçado sobre a mesa, foi tomando um desenvolvimento singular.

Aos poucos, capcioso, o pai, depois de lhe ter arrancado aquelas confissões absolutas, assumiu uns ares irônicos, que se foram fazendo amargos, e começou a ridicularizar-lhe as opiniões perversas, a aborrecê-las, a enojar-se delas, a evidenciar-lhes a infâmia e a baixeza. E enquanto isto ia insensivelmente crescendo.

— É assim, filho, é assim, acabou por trovejar, essas ideias são mais repugnantes do que o vômito de um gato leproso! E tu és o defensor confesso, o praticador confesso de tudo isso, não és?!

Agora ele estava gigante, media-se face a face com o Bruce.

— É desse modo então que ouviste as minhas derradeiras palavras?! — continuou. — É assim que perpetuas a minha tradição sobre a terra?! É sujo, da cabeça aos pés, como estás, que aspiras ao caminho da Resplandecência e da Pureza?! Filho, eu ainda te chamo assim para ter o direito de amaldiçoar, como te amaldiçoo para sempre!! Tremes?! Ele ironizou pungente, como visse o infeliz numas convulsões de epilético, tremes?! Que fizeste de teu incomparável orgulho, então?! Ah! É que te sentes podre, já meio oco, como um olho que de tanta sânie vazou! Tinhas orgulho por quê? Hoje, vê tu, és pior do que todos quantos desprezavas! Hoje, Bruce, hoje tu és sapo!!

Mas, enquanto falava, a visão sinistra fora crescendo sempre, e agora, de tão grande, já estava longe das proporções humanas.

A vítima miseranda daquela alucinação, pelo contrário, sentia-se cair, cair sobre si mesma, fazendo-se meio rotunda, meio informe.

Quando aquela última frase retiniu-lhe aos ouvidos, pareceu-lhe que por todos os lados o fantasma se multiplicava, e que, de toda parte, em coro, aqueles múltiplos fantasmas saídos de um só repetiam em estribilho implacável:

— Sapo! Sapo! Sapo!

E aí o Bruce se sentiu sapo, fisicamente, em verdade.

Ele viu malhas amarelas e verde-escuras cobrirem-lhe o corpo, os olhos saltaram-lhe, rubros, das órbitas, veio-lhe uma ânsia enorme de desabafar aquela angústia, mas, ao mesmo tempo, ele sentiu uma força invencível impeli-lo para o solo, onde caiu com as duas mãos, que já lhe pareceram encurtar-se como forma de patas. Então, saltando, saltando, quadrúmano, ele começou a arrancar da alma umas notas de fazer chorar pedras, mas sob a forma horrível de um coaxar perfeito, com que despertou toda a casa, assombrada.

O Bruce estava para sempre louco.

Agora ele vive em hospital de alienados, ordinariamente modorrento durante o dia, de rastros no chão. Tem-se por um grande batráquio solitário, encurralado numa espécie de aquário lamacento e triste. Passa as horas apanhando insetos, de boca entreaberta, ou a catar do solo coisas malsãs, negando-se a receber outros quaisquer alimentos.

Quando o dia vai declinando, ele começa a despertar, a olhar para o céu, através das grades da cela. Batem-lhe os últimos raios de sol, mortiços e suaves, sobre as costas, o ocidente todo tocando de mágoas, como um campo onde saudades de várias cores, lírio, vieux roses, roxas e brancas florescem. E ele se sente todo voluptuoso, todo vibrante, com a epiderme assim mornamente aquecida.

Começa então a coaxar. São notas tão tristes essas de seu estranho canto monótono, que às vezes a casa inteira fica suspensa daquela boca condenada, os outros loucos, próprios, como que recuperando momentaneamente a razão.

Nos dias em que a lua, sedutora fatal, o atrai e o convulsiona, deixando-o como uma tempestade encarcerada, aquela visão sinistra que lhe quebrou o último fio de razão vem atormentá-lo frequentemente, sob formas diversas, mas sempre impiedosas e malditas.

Passada essa fase, porém, alucinações cheias de misericórdia o protegem. Por horas e horas lhe faz companhia o velho pai, mas com a estatura que tinha em vida, pequenina e trêmula, meigo como o Bruce nunca o tinha conhecido, abraçado com ele, chorando ambos o velho lastimando-se da indiferença com que passou pela terra, e por isso participando agora daquela imensa desgraça, voluntariamente, como de um castigo que para ser justo deve ser comum. E então no pobre louco às vezes ressurge sua esperança morta, ele entrevê o Céu de novo, mais claro, e maravilhoso como nunca, ouve daqui de longe as fanfarras dos anjos, músicas cheias de clemência e de serenidade, que só lhe falam de Amor e de Perdão.

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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