4/14/2025

O cavalo-fantasma (Conto), de Raimundo Morais

 


O CAVALO-FANTASMA

Uma noite, afirmou um vaqueiro cinquentão, o nosso pastor Samambaia, estava no curral com as éguas, umas oito, e duas poldrinhas, quando o cavalo-fantasma apareceu nitrindo e chocalhando os arreios. Ah! não lhe digo nada, seu doutor, o Samambaia meteu os pés num pulo furioso. Saltou a cerca e fugiu num galope desabrido. As éguas fizeram o mesmo, mas para acompanhar o vulto do cavalo mal-assombrado. Alotaram-se ao espírito e foram-se com ele abanando o rabo de contentes. Nunca mais voltaram, quer o Samambaia, quer as éguas, quer as poldrinhas. Aqui o respeito por essa visagem, em todas estas fazendas, é um fato.

Tu viste? coirão...

Com estes olhos que a terra há de comer. Seu doutor é herege, não acredita em nada. São Tomé, que mete o dedo em tudo, não corre com vassuncê.

Eu acredito no que vejo. Estória de onça pintada, repetida e requentada, quando nos chega aos ouvidos já está enorme, de proporções nunca vistas. Esse teu cavalo até parece o de Tróia.

É certo, seu doutor, volveu de repente outro vaqueiro. Pergunte para o major Tutoia quantas carreiras ele tem levado no coberto de visagem. Até uma porca, dessas que só tem rosca de toucinho, já pregou uma de primeira nele. Vou lhe contar meu branco, uma que me sucedeu não faz tempo.

Onde? perguntou o engenheiro.

Aqui mesmo, na terra-firme. Eu andava com dois filhos da prima Jesuína juntando uma pontinha de gado. Nós tínhamos virado estes cafundós sem botar vista numa rês. O dia já estava descambando e nada. Nenhum boi da velha. Nas tripas, com perdão da palavra, eu só contava um gole de cachaça tomado no grito da maria-já-é-dia. A vista, de vez em quando, me faltava. Até que me perdi numa baixada. Ao redor, credo em cruz, aparecia cada barranco vermelho que nem sangue. O meu desassossego era de doente. O diabo andava por ali...

Tudo isso, aparteou o Dr. Florêncio, traduzia meio delírio. Estômago vazio num tal serviço, são favas contadas, transforma a cabeça do sujeito.

Mas nós, insistiu o vaqueiro, fora um ou outro fazendeiro que dá café de manhã e matalotagem para o almoço, só trabalhamos assim, com água que passarinho não bebe. Vai-se para toda a parte a pé, remando, montado a peso de cachaça.

Pois é isso que faz a visagem, retrucou o Dr. Florêncio.

Mas escute, patrão.

Conta lá a tua caraminhola.

Perdido naquele socavão, de repente relinchou um cavalo correndo de crinas levantadas. Animal castanho, bonito, espumava e caracolava na marcha. Ia e vinha dum lado para o outro. Piquei o alazão da minha sela, virei o laço no alto da cabeça e haja cercar o maldito, ligeiro como o vento. Errei várias vezes até que lacei o animal. Desmontei, prendi o castanho num tronco de pau e rumei na esperança de ir para a casa da prima Jesuína. Meus ouvidos zumbiam. Uma dor de cabeça me agoniava tanto que só faltava me estourar os miolos. Perdi os sentidos.

Em que ano foi isso? perguntou o major Tutoia em ar de troça.

Ano da alagação grande. Mas bem. Acordei daí a três dias na casa do pai Felipe. Tinham me achado no campo. Pelo rasto foram buscar meu laço, amarrado num tronco de pau caído.

O engenheiro deu uma risada.

Ora vai bugiar! Tu queres, então, que eu acredite nessas potocas, simples caso de barriga vazia? Se a cachaça de madrugada já é uma agravante em tais circunstâncias, avalia o que não sucede ao indivíduo que fica sem comer nem beber até à tardinha? Devias ter visto um cavalo marinho, pelo menos...

Todos se riram. No fundo, porém, o Dr. Florêncio não desacreditava inteiramente nessas abusões. Rebatia com os maiores argumentos. No seu intimo, no entanto, havia qualquer coisa que deixava na dúvida. As estórias de fadas, gnomos, anões, curupiras e matintapereras, botos e cobras-grandes, que ele ouvira da avó e da ama, em menino, não tinham sido completamente apagadas pela matemática. A Escola Politécnica, com a vigorosa esponja científica, não conseguira lavar-lhe estes resíduos do subconsciente. Talvez houvesse qualquer coisa do lado de lá, pensava. Refletia, pois, com certa condescendência sobre essa abundância de almas penadas. Então os animais também se materializavam? Que horror não seria ver um jacaré ou uma sucuriju voltarem do espaço para entreter conversa com seus semelhantes, pedindo perdão humildemente do grande pecado de andarem comendo na terra a torto e a direito. Nisto, porém, dormiu.

Daí a nada a vaqueirada ressonava também. Uns assobiavam, outros sopravam, outros gemiam. Estes lembravam jacamins, grilos, cigarras; aqueles, flautas, rabecões, pandeiros. No céu azul, o disco redondo e branco da lua evocava o luar do sertão. Do lado baixo do igarapé, das ventarolas dos miritizeiros, vinham vozes de aves noturnas, jacurutus e corujas. Dos campos também subiam trinados, rufos de tambores, remadas vivas de quem aporfia. Eram os sapos. Até que a maria-já-é-dia, num primeiro grito, anunciara o sol. Uma nesga cor de opala com frisos de carmim rasgou o oriente. As saracuras, em seguida, reforçaram o alarme. Era mesmo o carro do sol que vinha estrondando no fogo de mil chamas. O quadrante se avermelhara. Aqui, ali, acolá, rebentavam brochadas escarlates, sangue puro no céu. Todos se sentaram nas redes.

O dia vem rinchando, gente. Aqueles três potes! três potes! três potes! das saracuras não enganam ninguém.

O cavalo-fantasma tinha virado ponta de cigarro. A alegria da luz, fecunda e criadora, espantando as sombras espantava os espetros...


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...