O CAVALO-FANTASMA
— Uma noite,
afirmou um vaqueiro cinquentão, o nosso pastor Samambaia, estava no curral com
as éguas, umas oito, e duas poldrinhas, quando o cavalo-fantasma apareceu
nitrindo e chocalhando os arreios. Ah! não lhe digo nada, seu doutor, o
Samambaia meteu os pés num pulo furioso. Saltou a cerca e fugiu num galope
desabrido. As éguas fizeram o mesmo, mas para acompanhar o vulto do cavalo
mal-assombrado. Alotaram-se ao espírito e foram-se com ele abanando o rabo de
contentes. Nunca mais voltaram, quer o Samambaia, quer as éguas, quer as
poldrinhas. Aqui o respeito por essa visagem, em todas estas fazendas, é um
fato.
— Tu viste?
coirão...
Com estes olhos que a terra há de
comer. Seu doutor é herege, não acredita em nada. São Tomé, que mete o dedo em
tudo, não corre com vassuncê.
— Eu acredito
no que vejo. Estória de onça pintada, repetida e requentada, quando nos chega
aos ouvidos já está enorme, de proporções nunca vistas. Esse teu cavalo até
parece o de Tróia.
— É certo,
seu doutor, volveu de repente outro vaqueiro. Pergunte para o major Tutoia
quantas carreiras ele tem levado no coberto de visagem. Até uma porca, dessas
que só tem rosca de toucinho, já pregou uma de primeira nele. Vou lhe contar
meu branco, uma que me sucedeu não faz tempo.
— Onde? —
perguntou o engenheiro.
— Aqui mesmo,
na terra-firme. Eu andava com dois filhos da prima Jesuína juntando uma
pontinha de gado. Nós tínhamos virado estes cafundós sem botar vista numa rês.
O dia já estava descambando e nada. Nenhum boi da velha. Nas tripas, com perdão
da palavra, eu só contava um gole de cachaça tomado no grito da maria-já-é-dia.
A vista, de vez em quando, me faltava. Até que me perdi numa baixada. Ao redor,
credo em cruz, aparecia cada barranco vermelho que nem sangue. O meu desassossego
era de doente. O diabo andava por ali...
— Tudo isso,
aparteou o Dr. Florêncio, traduzia meio delírio. Estômago vazio num tal serviço,
são favas contadas, transforma a cabeça do sujeito.
— Mas nós,
insistiu o vaqueiro, fora um ou outro fazendeiro que dá café de manhã e
matalotagem para o almoço, só trabalhamos assim, com água que passarinho não
bebe. Vai-se para toda a parte a pé, remando, montado a peso de cachaça.
— Pois é isso
que faz a visagem, retrucou o Dr. Florêncio.
— Mas escute,
patrão.
— Conta lá a
tua caraminhola.
— Perdido
naquele socavão, de repente relinchou um cavalo correndo de crinas levantadas.
Animal castanho, bonito, espumava e caracolava na marcha. Ia e vinha dum lado
para o outro. Piquei o alazão da minha sela, virei o laço no alto da cabeça e
haja cercar o maldito, ligeiro como o vento. Errei várias vezes até que lacei o
animal. Desmontei, prendi o castanho num tronco de pau e rumei na esperança de
ir para a casa da prima Jesuína. Meus ouvidos zumbiam. Uma dor de cabeça me
agoniava tanto que só faltava me estourar os miolos. Perdi os sentidos.
— Em que ano
foi isso? perguntou o major Tutoia em ar de troça.
— Ano da
alagação grande. Mas bem. Acordei daí a três dias na casa do pai Felipe. Tinham
me achado no campo. Pelo rasto foram buscar meu laço, amarrado num tronco de
pau caído.
O engenheiro deu uma risada.
— Ora vai
bugiar! Tu queres, então, que eu acredite nessas potocas, simples caso de
barriga vazia? Se a cachaça de madrugada já é uma agravante em tais
circunstâncias, avalia o que não sucede ao indivíduo que fica sem comer nem
beber até à tardinha? Devias ter visto um cavalo marinho, pelo menos...
Todos se riram. No fundo, porém, o
Dr. Florêncio não desacreditava inteiramente nessas abusões. Rebatia com os
maiores argumentos. No seu intimo, no entanto, havia qualquer coisa que deixava
na dúvida. As estórias de fadas, gnomos, anões, curupiras e matintapereras,
botos e cobras-grandes, que ele ouvira da avó e da ama, em menino, não tinham
sido completamente apagadas pela matemática. A Escola Politécnica, com a
vigorosa esponja científica, não conseguira lavar-lhe estes resíduos do subconsciente.
Talvez houvesse qualquer coisa do lado de lá, pensava. Refletia, pois, com
certa condescendência sobre essa abundância de almas penadas. Então os animais
também se materializavam? Que horror não seria ver um jacaré ou uma sucuriju
voltarem do espaço para entreter conversa com seus semelhantes, pedindo perdão
humildemente do grande pecado de andarem comendo na terra a torto e a direito.
Nisto, porém, dormiu.
Daí a nada a vaqueirada ressonava
também. Uns assobiavam, outros sopravam, outros gemiam. Estes lembravam
jacamins, grilos, cigarras; aqueles, flautas, rabecões, pandeiros. No céu azul,
o disco redondo e branco da lua evocava o luar do sertão. Do lado baixo do
igarapé, das ventarolas dos miritizeiros, vinham vozes de aves noturnas,
jacurutus e corujas. Dos campos também subiam trinados, rufos de tambores,
remadas vivas de quem aporfia. Eram os sapos. Até que a maria-já-é-dia, num
primeiro grito, anunciara o sol. Uma nesga cor de opala com frisos de carmim
rasgou o oriente. As saracuras, em seguida, reforçaram o alarme. Era mesmo o
carro do sol que vinha estrondando no fogo de mil chamas. O quadrante se
avermelhara. Aqui, ali, acolá, rebentavam brochadas escarlates, sangue puro no
céu. Todos se sentaram nas redes.
—O dia vem
rinchando, gente. Aqueles três potes! três potes! três potes! das saracuras não
enganam ninguém.
O cavalo-fantasma tinha virado
ponta de cigarro. A alegria da luz, fecunda e criadora, espantando as sombras
espantava os espetros...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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