O CASTELO MALDITO
Em um dia de verão ardente, tive de
atravessar um campo muito vasto.
O sol abrasador causava-me
vertigens, parecia-me que ia cair, sentia um constante zunido nos ouvidos,
devorava-me a sede; quis acelerar a marcha, mas o meu pobre cavalo, o meu valente
e generoso tordilho, já mal podia andar. Fustiguei-o, ergueu a nobre cabeça,
quis galopar, não pôde.
Perdi a esperança de chegar à
aldeia de..., que era a povoação mais próxima do lugar em que me achava.
Desalentado já, avistei, entre duas
coxilhas, um atalho que parecia levar a alguma habitação.
Tomei o atalho e, vinte minutos
depois, achava-me nas ruínas de uma grande casa, à beira de um arroio. Ali, as
parasitas que tinham nascido entre as fendas das paredes derrocadas
ofereceram-me fresco abrigo; a água do arroio matou-me a sede.
Enquanto o meu cavalo descansava,
fui examinar aquelas venerandas ruínas.
Eu não posso ver uma casa arruinada
na encosta de um monte solitário sem me lembrar das lendas com que me embalaram
na infância, dessas lendas de mouras encantadas, de salteadores, de fadas, de
bruxas.
Se estou triste, parece-me ver em
cada pedra uma mancha de sangue que atesta um crime, em cada surdo rumor
parece-me distinguir um gemido de agonia; se estou alegre, creio ver em cada
pedra uma inscrição de amor, creio ouvir em cada arruído o estalo de um beijo.
A minha imaginação está sempre
pronta para idear um poema de amor, ou um drama de sangue; um painel risonho e
ameno, ou um quadro negro e lúgubre.
Em uma das salas do vetusto
edifício, vi um pedaço de corrente preso a uma argola solidamente cravada na
parede, uma tenaz, um fogareiro e um desses instrumentos de cruel martírio a
que, por uma pungente irrisão, chamam anjinhos.
Tudo me levava a crer que aquela
sala tinha sido teatro de bárbaros suplícios.
Nas paredes e no ladrilho distingui
manchas negras que bem podiam ser de sangue.
Em vão procurei outros vestígios do
drama que devia ter sido ali representado.
O sol declinava já para o ocidente
quando deixei aqueles tristes lugares para retornar à estrada.
Eu sentia um mal-estar
inexplicável, uma espécie de pavor, que me obrigaram a acelerar a marcha.
Daí a uma hora, galguei uma alta
coxilha de cujo cimo tentei ver pela última vez aqueles medonhos destroços. Levantava-se
lá uma coluna de fumo negro, a espaços iluminada por labaredas: o fogo ia
acabar de aniquilar a casa...
Mas quem o ateara? Enquanto ali
estive, não fumei, não risquei fósforos: como, pois, se incendiaram aquelas
madeiras úmidas e podres?
O medo apoderou-se de mim; desci
correndo a coxilha; atravessei, sempre em vertiginosa corrida, o resto do
campo; sentia frio e tinha sede, um tremor convulso abalava-me os membros, os
dentes batiam uns nos outros, o cabelo estava hirto, frio suor banhava-me a
fronte...
Daí a pouco, avistei uma casinha de
lavrador. Bati, abriram-me a porta, entrei.
Aquela humilde cabana pareceu-me um
palácio; o lavrador, um rei, os filhos do lavrador, príncipes em fraldas de
camisa... O medo tinha me tornado otimista.
— O que quer, senhor? —
perguntou-me o lavrador.
— Peço-lhe que me dê, por esta
noite, uma pousada.
— Seja bem-vindo. É pobre a minha
casa, mais pobre a minha mesa, e péssima a cama; mas são-lhe oferecidas com
prazer.
— E aceitas com gratidão.
— O senhor chegou a propósito,
porque estávamos ceando. Vamos para a sala de jantar.
Não descreverei a ceia, mas pode o
leitor ficar certo de que ela era muito mais suculenta do que o copo d’água que
o autor do Sizino nos ofereceu há dias.
Terminada a refeição, o lavrador me
perguntou donde vinha e para onde ia.
— Venho da cidade e vou para a
aldeia de... — respondi.
— Neste caso, fez madrugada de
lagarto, porque, havendo apenas oito léguas desde a cidade até aqui...
— Eu devia estar cá mais cedo, não
é assim?
— É verdade.
— Demorei-me porque perdi duas boas
horas assentado nas ruínas de uma casa que encontrei perto da estrada.
— Pois esteve naquela casa? —
perguntou-me o lavrador com ares de susto.
— De que se admira? Eu tinha sede e
calor, o meu cavalo estava quase cansado e, assim, não podia viajar.
— O senhor esteve nas ruínas?!
— Já lhe disse que estive, mas
ainda não pude compreender por que é que isso tanto o admira. Diz-mo?
— E ali nada viu, nada ouviu que
lhe parecesse extraordinário?
— Vi uma corrente presa à parede,
um fogareiro, uma tenaz e um par de anjinhos.
— Só?
— Vi também alguns sinais negros no
chão, muito semelhante a manchas de sangue.
— Só?
— Quando subi a uma coxilha muito
alta que há no caminho, olhei para trás e vi que os restos da casa se tinham
incendiado, o que muito me admirou, porque, enquanto lá estive, não fumei, nem
acendi fósforos.
— É isto mesmo — resmungou
entredentes o meu interlocutor. E, continuou ele em voz alta: — E, quando viu
isto, não teve medo ou pavor ao menos?
— Medo? Por que é que eu, que me
jacto de valente, havia de ter medo? — perguntei com a voz um pouco trêmula,
mas afetando uma coragem que havia poucos momentos me tinha faltado.
— Oh! aquelas ruínas! aquelas
ruínas!
— Oh! homem de Deus! desembuche,
diga o que sabe a respeito daquela casa.
— Diga antes “daquela casa
maldita”, porque ela o é realmente.
— Mas por quê?
— Quer que lhe diga?
— Quero.
— Vou referir-lhe o que me dizia
meu pai, que foi testemunha de muitas das cenas de sangue e lágrimas do drama
que, há oitenta anos, se representou na casa, cuja história o senhor tanto
deseja saber, e que, entre nós, é conhecida pelo nome de castelo maldito.
Dizendo isto, o velho lavrador
preparou um cigarro, acendeu-o, e pôs-se a acompanhar com os olhos os espirais
de fumo branco.
A princípio, pensei que ele se
tinha esquecido da história; mas, momentos depois, voltou-se para mim, dizendo:
— Escuta.
I - D. PEDRO
BOTELHO
— Meu avô morava em uma casa na encosta de uma
das coxilhas que margeiam o caminho que conduz à planície em que foi construído
o castelo. Todas aquelas terras pertenciam-lhe, e ele, ajudado pelos filhos, as
cultivava continuamente, de modo que, por toda a parte, vicejaram as roças
cujos produtos eram vendidos no mercado da cidade, e, por isso, meu avô era
tido pelo mais abastado lavrador destes lugares; e geralmente dava pousada em
sua casa aos viajantes que, como o senhor, vinham da cidade com destino à
aldeia de...
Na noite de 13 para 14 de junho de
1796, meu avô foi despertado por fortes pancadas que alguém dava na porta.
—Minha velha, disse ele à minha avó
— vai acender a candeia enquanto me visto para ir ver quem bate.
— Para que te hás de levantar a
essas horas e com o frio que está fazendo? Quem aí está que siga o seu caminho,
e deixe-nos em paz.
— Ora, minha velha, não ouves como
cai a chuva a cântaros e como o vento gelado assobia lá fora?
— Pois sim; mas é que... tenho
medo.
— Medo de quê, toleirona? Será esta
a primeira vez que, a tais horas, se tenha aberto a nossa porta para dar
pousada a quem a pede? Deixa-te de medos e vai acender a candeia.
— Eu nunca tive medo, mas hoje...
não sei o que me adivinha o coração.
As pancadas na porta repetiram-se
com dobrada força. Meu avô tomou a candeia que minha avó acendera a tremer e
foi abrir a porta.
— Não abras, meu velho!
— Abro!
E abriu.
Um homem de estatura gigantesca precipitou-se
na sala, no momento em que uma rajada de vento apagava a candeia.
Apesar da completa escuridão em que
tinha ficado a sala, meu avô distinguiu perfeitamente o vulto do recém-chegado,
porque do seu amplo capote saía um tênue clarão fosforescente, porque os seus
olhos eram também brilhantes como carvões em brasa.
— Ficamos da cor do nosso mestre —
disse o desconhecido por entre uma risadinha sarcástica.
— Queira esperar um instante enquanto
eu vou acender a candeia — disse meu avô.
— Dê-ma, meu caro amigo, que eu a
acenderei de novo assoprando ao morrão.
E, realmente, acendeu a candeia,
não porque o morrão se inflamasse ao contato do ar, mas porque da boca do
desconhecido saiu uma centelha vivíssima.
Meu avô pôde então examinar o seu
hóspede.
Este era, como já disse, de
estatura gigantesca, tinha os olhos azuis e lânguidos, a boca breve e rosada
como a de uma mulher, a barba e o cabelo desse louro desmaiado que é o
característico das raças do norte; a voz era melodiosa e insinuante, o talhe, esbelto
e aristocrático, o vestuário, apesar de completamente molhado, era de extrema
elegância.
Tendo tirado de uma pequena mala
que trazia a tiracolo algumas peças de roupa, disse a meu avô:
— Dá licença que vista este fato
enxuto?
— Tenha a bondade de entrar para
aquele quarto — disse meu avô, indicando-lhe uma das alcovas da sala.
Um momento depois, volta o
desconhecido, trazendo na mão direita um cálice de ouro e na esquerda uma
garrafinha do mesmo metal.
— Meu caro anfitrião — disse ele — convido-o
a tomar comigo um cálice de verdadeiro conhaque.
— Eu nunca bebo — replicou meu avô.
—Não bebe conhaque?! — exclamou o
desconhecido. — Oh! o senhor não sabe apreciar a melhor, a mais perfeita das
maravilhas báquicas! O conhaque é a panaceia universal, é o remédio infalível
contra o calor e contra o frio, é o preservativo de todas as enfermidades, é o
agente mais poderoso das alegrias e dos risos, é o mais eficaz inspirador dos
poetas!
— Bebo à sua saúde.
E, de um só trago, esvaziou o
cálice.
Depois, fechou os olhos e assim
ficou por muito tempo em beatífico recolhimento saboreando o seu incomparável
conhaque.
—Como isto é bom! — exclamou ele
por fim. — Sinto-me outro do que era há pouco; tenho a cabeça um tanto pesada,
mas não estou embriagado. Embriagado? Não! O conhaque não me embriaga! Oh! eu
ateio um incêndio no peito bebendo labaredas, hei de apagar o incêndio bebendo
sangue! — Velho! — acrescentou ele, dirigindo-se a meu avô — a ninguém digas
que me viste beber este fogo efêmero do conhaque! Eu quero que todos saibam que
D. Pedro Botelho, primeiro médico de sua alteza o príncipe D. João, poderoso
regente dos reinos de Portugal, Brasil e Algarves, só bebe sangue! Velho! se tu
tiveres ainda sangue nessas veias, beber-to-ia todo para matar esta sede ardente
que me devora; mas tu...
E soltou uma gargalhada satânica.
— O conhaque — disse ele passados
instantes — subiu-me à cabeça, estou com sono. Meu amigo, dê-me uma cama, e
fique certo de que hoje tem a honra de dar hospedagem a D. Pedro Botelho.
Meu avô, admirado das
extravagâncias do seu hóspede, e talvez bem arrependido de ter desprezado os
conselhos de sua mulher, respondeu-lhe:
— A cama está feita na alcova em
que mudou de roupa: pode ir dormir e tenha boa noite.
Meu avô acompanhou-o até a porta da
alcova, e depois foi também deitar-se.
Mal que o viu, minha avó exclamou:
— Ah! João, João, que hospedastes em
nossa casa o próprio diabo!
— Ora, mulher, deixa-te de
histórias! Aquele homem será um doido, mas o diabo... Vai dormir, minha velha,
que o teu mal é sono.
Momentos depois todos dormiam, só
minha avó velava com medo do diabo.
II - DEVASTAÇÕES
— Tinha-se passado a noite
procelosa, e o sol surgira luminoso e esplêndido, inundando de luz o dorso das
montanhas — onde o inverno começava a estender o seu vasto manto de neve.
Na floresta, os passarinhos
entoavam os seus cantos harmoniosos, saudando a vinda do astro do dia; o lago
povoava-se de ururaus, o campo, de manso gado.
Meu avô levantou-se ao romper da
manhã, e fora, como de costume, ordenhar as vacas.
Nem ele mais se lembrara de que
tinha um hóspede e de que esse hóspede era, no dizer de sua mulher, o próprio
diabo, quando ouviu uma voz fresca e argentina que lhe dava os bons-dias.
— O Sr. D. Pedro já de pé? —
perguntou meu avô levantando-se da banquinha em que estava assentado e indo
apertar-lhe a mão.
— Eu sou muito madrugador —
respondeu D. Pedro.
— É admirável, porque os homens
que, como vossa senhoria, foram criados na corte são geralmente dorminhocos.
— É verdade que, na corte, dormimos
muito, porque lá nada há que não seja insípido, que não cause tédio. Na roça,
ao contrário, convida-nos a madrugar este quadro esplêndido que nos cerca, este
espetáculo sempre novo e encantador do despertar da natureza, este perfume
suavíssimo que só o campo tem. Como eu seria feliz se pudesse, abandonando a
corte e suas festas mentirosas, vir aqui viver neste remanso de paz e
tranquilidade, vir criar aqui uma felicidade que lá me foge, que lá procuro em
vão?! Oh! acredite, meu caro amigo, que tenho inveja, eu, que não sou invejoso,
da sua sorte, deste descuidoso e plácido viver de lavrador!
— Para um homem rico, como vossa
senhoria deve ser, não há impossíveis. Quem, pois, o impede de trocar o bulício
da corte pela tranquilidade do campo?
— Oh! sim! Eu sou rico, sou talvez
fabulosamente rico; mas quantas vezes todo o ouro da terra é pouco para a
satisfação de um desejo?
— O desejo que vossa senhoria
manifestou há pouco não é da ordem desses que nem com todo o ouro da terra
podem ser comprados. Este ar puro que respiramos aqui, este perfume suave dos
campos, estas auroras resplandecentes, estas aves com seus cantos, estas flores
com seus recessos sombrios, estes lagos, estas fontes, estes rios são-nos dados
pela natureza beneficente; algumas braças de terra, uma casinha alegre e branca
na margem de um lago transparente e calmo ou na encosta de um outeiro
verdejante compra-se com mui pouco ouro.
— Tem razão, meu amigo. A
felicidade, a verdadeira felicidade, que consiste em desejar pouco, é tão pouco
custosa que admira não se considerem felizes todos os homens.
Neste momento, foram interrompidos
por minha avó, que os chamava para almoçarem.
— Sr. D. Pedro, vamos almoçar, e
depois, se lhe aprouver, iremos ver as minhas plantações.
— Estou à sua disposição —
respondeu D. Pedro. — Creio que hoje, estando ainda alagadas as estradas, não
virão os meus criados buscar-me.
Depois do almoço, foram ver as
roças.
Durante a excursão, D. Pedro não
cessou de gabar a fertilidade das terras e o sistema de lavoura que meu avô
adotara.
Tudo parecia encantá-lo, tudo
motivava-lhe uma pesquisa ou uma pergunta.
Era meio-dia quando voltaram.
— Sr. João — disse D. Pedro depois
do jantar — que extensão têm os terrenos desta fazenda?
— Cinco léguas, pouco mais ou menos.
— Se eu quisesse comprar-lhos, o
senhor mos venderia?
— Se o preço me conviesse...
— E quanto quer por eles?
— Custaram-me dois contos de réis,
mas hoje valem mais alguma coisa, por causa das plantações.
— Pois eu dou-lhe dez contos de
réis por eles.
— Dez contos de réis?! O senhor
dá-me dez contos de réis pela minha fazenda? — perguntou meu avô no auge da
estupefação.
— E o que tem isso? De que se
admira? Eu já lhe não disse que era fabulosamente rico?
— Dez contos de réis! Dez contos de
réis! — repetiu meu avô, seduzido pela importância do oferecimento.
— Exatamente, meu amigo, dez contos
de réis e só com duas condições.
— Quais são, Sr. D. Pedro? Quais
são?
— A primeira é que, dentro de três
dias, há de entregar-me a casa.
— Não tenha cuidado. Eu possuo
outra fazenda aqui perto, e, em três dias, mudo-me. Qual é a segunda?
— A segunda é que quero tomar para
o meu serviço aquele moço que está assentado acolá.
— O meu Joaquim? É meu filho, Sr. D.
Pedro, e eu não quero separar-me dele.
— Ora, adeus! Pago cinquenta mil
réis por mês. Serve?
— Pode contar com o rapaz.
Minha avó, que tudo ouvira, chamou
meu avô e disse-lhe:
— João, por tudo que mais ames
neste mundo, não vendas a nossa casa a este homem, não lhe entregues o nosso
filho.
— E por que não?
— Porque... não sei, mas este homem
mete-me medo.
— Ele dá-me dez contos de réis pela
fazenda e paga cinquenta mil réis por mês ao nosso Joaquim.
— Para que queremos nós esse
dinheiro? Não somos já bastante ricos?
— Somos, mulher; mas um pão com um
pedaço é pão e meio.
— Tu és muito ambicioso, e ainda há
de ser-te fatal essa ambição.
— Quando vires os dez contos em
bonita moeda, hás de mudar de opinião — disse meu avô voltando-lhe as costas.
Passados três dias, meus avós
instalavam-se nesta casa: meu avô, satisfeito com o negócio que fizera; minha
avó, a sonhar desgraças, que, infelizmente, tinham de realizar-se.
Oito dias depois, D. Pedro Botelho,
acompanhado de um exército de trabalhadores, arrasava a casa e incendiava as
roças, cuja beleza e viço tanto o tinham seduzido.
— Por que arrasou a casa e queimou
as plantações? — perguntou-lhe um dia meu avô.
— Porque assim me aprouve —
respondeu brutalmente D. Pedro. — Comprei-lhe tudo isto com o meu suor, sou
aqui senhor, não tenho contas que lhe dar!
Dizendo isto, tinha nos olhos um
fulgor tão mau, que meu avô sentiu os seus arrasados de lágrimas, e repetiu em
voz baixa:
—Ah! minha velha! minha velha, tu
tinhas razão: D. Pedro Botelho é um mu homem!
III - ALGOZ E MÁRTIR
— Apenas se tinham passado três meses, e já à
beira do arroio campeava a casa acastelada de D. Pedro Botelho.
Naquela casa, porém, não reinavam o
bulício e as alegrias da família: o sepulcral silêncio que ali reinava era
apenas quebrado pelo ladrar do enorme cão que vigiava a entrada.
Entretanto, moravam ali três
pessoas — dom Pedro Botelho, meu pai e um negro mudo.
Os trabalhadores tinham
desaparecido sem que ninguém pudesse dizer para onde tinham ido.
Meu pai, não obstante, era mui bem
tratado por D. Pedro, que o fazia assentar à sua mesa sempre lauta, que lhe
dava ótima cama e que só o ocupava em caçar.
Todas as noites, quando acabavam de
cear, D. Pedro obrigava-o a beber um cálice de vinho, e, depois, mandava-o
dormir.
Depois de algum tempo, meu pai
notou que aquele vinho causava-lhe um sono tão invencível e tão pesado, que nem
o maior ruído era capaz de despertá-lo.
— Hei de saber — disse ele um dia —
se realmente é o vinho que assim me faz dormir.
E imediatamente tomou a resolução
de deitá-lo fora quando tivesse ocasião, e de modo que D. Pedro não o visse.
Passados dois dias, apresentou-se-lhe favorável ensejo. D. Pedro tinha-lhe
enchido o copo quando o cão começou a ladrar fortemente.
— Por que será que Cérbero está
ladrando? — perguntou D. Pedro, indo à janela.
Quando ele voltou, já meu pai tinha
deitado fora o vinho.
— Já bebeu? — perguntou D. Pedro.
— Já — respondeu meu pai — e, se me
dá licença, vou me deitar, porque estou a cair com sono.
— Pois então vá dormir.
Meu pai foi para o seu quarto e
deitou-se.
Daí a pouco, sentiu passos no
corredor, entreabriu as pálpebras e viu D. Pedro, que vinha verificar se ele realmente
dormia.
Depois de convencer-se de que era
profundo o seu sono, D. Pedro saiu.
O relógio acabava de dar meia-noite
quando meu pai ouviu um grito de agonia, e, logo em seguida, a voz de D. Pedro,
que bradava:
— Não te calarás, miserável
criatura?
Depois, o estalar de um chicote e
gritos sufocados...
Meu pai levantou-se e, guiado pelos
gemidos e pela voz de D. Pedro, chegou a uma sala em que ele nunca tinha
entrado.
A porta estava entreaberta, e ele
pôde ver o quadro mais horroroso que é dado imaginar-se.
Uma mulher extremamente magra e
pálida estava aí atada pela cintura com uma grossa corrente, cuja extremidade
ia prender-se à parede.
Vestida com uma túnica branca, mui
semelhante às alvas dos condenados, com os longos cabelos negros em desordem,
estava a mísera ajoelhada sobre a palha, que servia-lhe de leito, a estender as
mãos suplicantes para D. Pedro.
Os olhos, amortecidos pelas
lágrimas e pelas vigílias, eram formosos ainda; o rosto descarnado era de uma
beleza ideal.
Depois de um curto silêncio, apenas
interrompido pelos soluços da presa, D. Pedro perguntou com voz cavernosa:
— Estás hoje enfim resolvida a dizer-me
o nome do teu amante?
— Que nome queres que te diga, D. Pedro,
se esse amante só na tua imaginação existiu?
— Vou vencer a tua pertinácia —
exclamou D. Pedro.
E, com a disciplina de que estava
armado, açoitou a desgraçada, cujas roupas se tingiram de sangue.
— Piedade, D. Pedro, piedade para a
infeliz cujo único delito foi amar-te muito! — bradou a pobre mulher
rojando-se-lhe aos pés.
— O nome, o nome do teu amante?
— Eu nunca tive amante, porque só a
ti amei, e ainda te amo, apesar deste martírio tão cruel e tão injusto.
D. Pedro tomou os anjinhos,
aplicou-os às mãos da mulher, apertou-os a ponto de esguichar o sangue pelas
unhas da padecente.
— Confessas? — perguntou ele.
‘Estou inocente! — bradou ela por
entre as contorções da dor.
D. Pedro foi buscar o fogareiro,
tirou com a tenaz um carvão em brasa e encostou-o ao peito da mulher. Ao
contato do fogo, ela soltou um grito de dor, e uma espiral de fumo branco
levantou-se da carne cauterizada!
Confessas? — repetiu o bárbaro.
— Ah! D. Pedro, D. Pedro! por que me
maltratas assim? O que te fiz? Em que pequei? Eu era tão feliz quando criança,
descuidosa e alegre, brincava nos meus formosos jardins da Andaluzia! Quem me
dissera então que eu, tão mimosa e tão querida de meus pais, me havia de ver
hoje tal como me vejo?! Um dia vi-te, D. Pedro, e tu eras então formoso, tão
formoso como és hoje; eras a viva imagem desses belos cavaleiros dos contos das
minhas aias. Tu me falaste em amor, e eu, toda ardendo em amor, consagrei-te o
coração. Como foram felizes os primeiros dias do nosso casamento! Como tu eras
meigo e apaixonado! Depois... um dia te disseram que eu tinha um amante,
acreditaste a calúnia, de bom tornaste-te mau, trocaste o amor de esposo pela
crueza do verdugo! Eu sou inocente, D. Pedro; mas, se mesmo assim me odeias,
leva a meus pais este esqueleto da mulher que eles te deram, e eu e eles
beijaremos essas mãos tão tintas do meu sangue! Não queres, D. Pedro? Preferes
que eu morra? Pois bem! Mata-me, mata-me já, não prolongues mais este martírio!
E a desgraçada beijava os pés do
algoz!
D. Pedro pegou nos cabelos da sua
vítima, bateu-lhe com a cabeça nas lajens, que ficaram tintas de sangue!
Neste momento, a parede rasgou-se
com estampido horrível; um anjo vestido de cândidas roupagens e resplandecente
de luz lançou-se no cárcere, tomou nos braços o cadáver da desditosa moça, e
com ele sumiu-se em uma nuvem branca que pairava no espaço...
Meu pai fugiu espavorido, no
momento em que a casa, abalada por um braço invisível, desmoronava-se,
sepultando em suas ruínas o assassino cruel.
No dia seguinte, o sol iluminava
aqueles destroços que o senhor viu silenciosos e ermos durante o dia, mas que à
noite se povoam de fantasmas pavorosos que aquecem os ferros do martírio no
fogareiro, cujas chamas parece que vão consumir os restos da casa maldita.
***
— Eis aqui — disse-me o velho
lavrador — a história daquelas ruínas. Se algum dia tornar a passar por elas,
faça o sinal da cruz, e siga, sem parar, o seu caminho.
No outro dia, continuei a minha
viagem, resolvido a contar aos leitores esta história, tão desadornada como a
ouvi do pobre camponês que ma referiu.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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