4/13/2025

Nem mel nem cabaça (Conto), de Domingos Olímpio

 

NEM MEL NEM CABAÇA

Suum cuique tribuere

O sonho dourado, a suprema aspiração da meiga consorte do Azevedo, era possuir uma casa, libertar-se do abutre do aluguel, companheiro voraz de cama e mesa, a extorquir-lhe, todos os, dias cinco mil reis, quase tanto quanto custavam os meios de alimentação da exemplar e venturosa família. Foi por isso de festa, de indizível alegria, o memorável dia em que Azevedo, ao regressar do trabalho, impando de satisfação, como um vitorioso, anunciou a surpreendente conquista.

Aqui tens, mulher querida, disse ele, estendendo-lhe, com um largo gesto de orgulho, um grande envelope o teu sonho, o teu impossível realizado... Temos casa, muito nossa, uma pechincha que Deus me deparou em hasta pública no juízo federal.

E mostrou á mulher atônita, trêmula de júbilo, mal acreditando no que via com os formosos olhos desbordantes de lágrimas, a carta de arrematação, condecorada de estampilhas multicores, documento da compra com todas as formalidades legais de uma casa na rua de... nº 45.

Amélia abraçou-o numa imensa efusão grata; beijou-lhe o rosto barbudo, e murmurou, com um longo suspiro de alívio:

— É um peso que me tiras da cabeça, esse maldito aluguel mensal. Deus seja louvado, Deus te abençoe, maridinho de minha alma...

Foi-se tudo; foram-se as economias observou Azevedo, mas... somos proprietários...

E contou como por um propicio acaso, sem competidores, conseguira arrematar uma casa daquelas, um palacete que rendia duzentos mil reis por mês, todo de pedra e cal, muito bem acabado, com obras de esquadria que eram uma especialidade. O caso era tão extraordinário, que se lhe figurava um milagre, um especial favor de Deus.

Amélia preferiria uma chácara, cheia de arvoredo frondoso, com um pomar, uma horta, e, para os meninos brincarem ao ar livre, um delicioso jardim, que ela trataria com desvelo, cortado de ruas calçadas de seixos, com o rio minúsculo, povoado de peixes dourados, a se contorcer por entre as roseiras olentes, passando por baixo de baixo de pequeninas pontes rústicas de madeira fingida em cimento e ferro, e precipitando-se numa rumorosa cascatinha forrada de musgo aveludado. Mas, não estava por isso menos contente com a sua sorte: a casa daria bastante para alugar a chácara.

* * *

No dia seguinte Azevedo, foi visitar o inquilino. Subiu, com ares de quem entra no que é seu, as escadas; bateu palmas sonoras, e, introduzido na sala por um criado, ficou, durante alguns minutos, examinando o assoalho, o teto, as portas, o papel das paredes, tudo limpo e polido, denotando o zelo e os bons costumes do morador.

Sim, senhor balbuciou ele este é pichoso, conserva com solicitude o alheio.

Que deseja? disse-lhe o inquilino, aparecendo em trajo matinal. Faça o favor de sentar-se.

Desculpe vossa senhoria o incômodo. A demora é pouca... Eu... vim participar-lhe que de hoje em diante deve pagar a mim o aluguel, que fica elevado a duzentos e cinquenta mil reis.

O aluguel?... exclamou o outro, assombrado, como se estivesse diante de um louco.

Sim, senhor. Comprei-a em hasta pública...

Não é possível... O senhor está sonhando...

 

Como não é possível!? Aqui tem a carta de arrematação feita num executivo fiscal para pagamento de impostos...

Eu nada devo à fazenda nacional, graças a Deus retrucou o homem encolerizado.

E essa?... Fui sempre pontual para não pagar multas. Há, por força, engano... Ora, espere...

Pouco depois, voltou com um maço de papéis cuidadosamente dobrados e amarrados por uma fita vermelha: eram recibos impressos de quitações de impostos, décimas, penas d'água e os documentos de aquisição do prédio.

Nada tenho com isso concluiu Azevedo, depois de passar desdenhosamente os olhos pelos documentos. Comprei a casa à justiça, que não se engana. Está muito bem comprada com todas as formalidades... Vossa senhoria que se avenha com a justiça...

Eu, não. A casa é muito minha. Daqui não saio nem à bala.

Esta expressão estava, naquele tempo, muito consagrada pela superstição política.

Pois há de sair por mal, tocado pelos oficiais de justiça intimou Azevedo, desconcertado pela resistência do seu inquilino. E... passe muito bem...

* * *

Verificou-se que houvera engano no lançamento, em consequência de uma reforma de numeração, feita em placas esmaltadas. O prédio devedor tinha o numero 43, e era muito inferior ao que fora vendido.

Azevedo fez medonho barulho, portou-se com irreverência no augusto recinto do pretório, tal foi o seu atordoamento, quanto se convenceu do terrível engano e que o proprietário do prédio nº 43 estava, por sua vez, quite com o erário da República.

Como há de ser agora, senhor juiz? inquiriu ele, acabrunhado, quase em pranto.

O senhor tem razão, mas eu não posso ex-officio reformar o que está feito em processo findo.

E o meu dinheiro, os meus trinta centos que representam privações sem conto, sacrifícios enormes?... Então a gente se fia da justiça, compra uma coisa que ela vende em voz alta na porta da rua; compra de boa fé; e, agora, sem mais nem menos, a justiça diz que houve engano, que eu tenho razão, mas não me pode restituir o meu dinheiro, o preço, os impostos e as custas?...

Tem razão ponderou o juiz, que aliava um rijo caráter ao mais piedoso coração. O senhor não perderá o seu dinheiro; mas é indispensável promover pelos meios legais a restituição do que pagou...

* * *

Azevedo partiu praguejando contra a justiça, gesticulando com gestos desordenados, voltando-se repetidas vezes de punhos cerrados, ameaçadores, para o imundo pardieiro onde funcionavam tribunais.

Em casa, a sua indignação rubra se transmitiu à mulher que, em contraste com a doçura habitual, as maneiras meigas, entrou a dizer injúrias contra a República, governada por larápios, gatunos indecentes, que extorquiam, por meios indignos, dinheiro à gente honrada,

No tempo da monarquia exclamava a excelente senhora, esbragada de rancor casos desses não se dariam, nunca se deram. E, quando tal acontecesse, a gente ia queixar-se ao Imperador, que não pactuava com bandalheiras. Hoje... é isso que se está vendo: A justiça vende o que lhe não pertence e nós, que caímos na asneira de comprar, ficamos às cascas, vamos nos queixar ao bispo, ou chorar na cama o nosso dinheiro roubado... É um horror, uma pouca vergonha...

E a pobre, sacudida de comoção, abrigou-se, sufocada pelo pranto, no seio do marido.

* * *

Azevedo propôs uma ação para haver o seu dinheiro.

Correram sem incidentes, por mera formalidade, todos os trâmites do processo, mas afinal o procurador da República, para não marear a sua legítima reputação de funcionário zeloso, esgaravatou umas tantas nulidades que, repelidas pelo juiz do feito, foram decretadas na instância superior.

O pobre homem tinha carradas de razão; era evidente, palpável, indiscutível a injustiça; mas a ética profissional impunha o dever de opor todos os embaraços à restituição do dinheiro recolhido por qualquer título aos cofres públicos..

Assim o exigiam os sagrados interesses da União.

Dinheiro, que entra no Tesouro Nacional, é como alma caída no inferno.

Resignado a esse novo golpe, Azevedo pagou as custas, propôs nova ação e obteve sentença favorável; mas, por seu caiporismo aconteceu que o presidente desta República, cuja organização assenta na pedra angular da independência dos poderes, passasse em substancial mensagem, um pito nos juízes que decidiam contra a União.

Era indispensável que a Justiça, secundando os patrióticos esforços do governo, desse pancada de cego.

De outro modo, toda a renda nacional, sempre aumentada pelo abuso de contribuições opressoras, seria insuficiente para pagar as consequências funestas dos desastres das administrações desorientadas, da desídia, da ignorância, da concussão de funcionários, da crueldade, da selvageria dos agentes do governo ao serviço da politicagem, de todos os erros e vícios que estavam desmoralizando e desorganizando o mecanismo social.

Essa exortação, impregnada de patriótico zelo pelos mais transcendentes interesses da Pátria, não podia deixar de ecoar como uma ordem, nas serenas regiões da Justiça, soberana, independente. E como era indispensável acabar com as indenizações, com as reparações de direitos violados, com as restituições de impostos arrecadados ilegalmente pelo minotauro do fisco, a Justiça suprema desatou do augusto rosto a venda mitológica para ver melhor e trucidar, inexoravelmente, tudo quanto cheirasse a pretensão contra o estado, principalmente a pedido de dinheiro do Tesouro Nacional.

O Congresso, por sua vez, fiel à sua missão de instrumento subalterno do governo, decretara a mais cabal desconfiança nos arestos, impondo o pagamento dos julgados com desconto de onzenário, estabelecendo umas tantas providências para embaraçar com nugas de vilíssima chicana a execução de sentenças contra a União, ou vencer os litigantes pelo cansaço, pelo desespero.

A justiça para manter o essencial equilíbrio dos poderes se submeteu a tudo; engoliu, de cara alegre, todos esses absurdos monstruosos.

A causa de Azevedo por via de apelação obrigatória para os Procuradores, sob pena de demissão, chegou à instancia augusta, à sagrada acrópole da Justiça, precisamente no período de maior exacerbação do sagrado zelo pelo intangível dinheiro nacional.

No julgamento, houve azeda discussão entre o relator e Covarruvias, que perturbou a placidez do recinto com frases enérgicas, contundentes como pedradas; bradou contra a rude injustiça, qualificou vandálica extorsão a negação daquele direito, demonstrado pelo fato, assente em razões inexpugnáveis, de evidencia deslumbradora; não logrou, porém demover de seus inexpugnáveis redutos de ideias inabaláveis, de resoluções preconcebidas, os colegas que, indiferentes à escaramuça, ao tiroteio da discussão, conversavam sobre coisas inocentes as consequências de um ataque de influenza, as tiranias de um reumatismo, a exarcebação das hemorroidas ou algum engraçado caso de política.

Covarruvias perdeu o seu rico latim: os transcendentes interesses nacionais foram mais eloquentes e o gládio legendário cumpriu, fatídico, o seu dever de instrumento da restauração das corroídas finanças da República.

Foi reformada a sentença apelada para ser o autor julgado carecer da ação.

* * *

Foram assim burladas as mais queridas aspirações, o sonho de ouro da pobre Amélia Azevedo.

Esse golpe desequilibrou as finanças do casal e o voraz abutre do aluguel continuou a roer-lhe as economias, a beber-lhe o suor do rosto.

Nem prédio, nem dinheiro. Nem mel nem cabaça...


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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