MARACATUS E
FREVOS
Os maracatus eram típicos no Carnaval de antigamente.
Típicos,
numerosos, importantes, suntuosos.
No
meio do vozerio da mascarada, dominando as marchas dos cordões, ouvia-se ainda
longe o rumor constante, uniforme, monótono, dos atabaques.
Bum... bum...
bum... bum...
Bum... bum... bum... bum...
Era
o maracatu.
Havia
os que gostavam dele e esperavam-no curiosidade.
Havia
os que protestavam contra a revivescência africana e resmungavam.
Bum... bum...
bum... bum...
No
fim da rua, por cima do povo, surdia grande chapéu de sol vermelho, rodando,
oscilando, curvando-se. E o batuque cada vez mais perto, mais perto.
Dali
a pouco desfilava o cortejo real dos negros.
Vinha o rico estandarte de cores vivas com bordados a ouro. Seguiam-se as alas de mulheres ostentando turbantes, saias bem rodadas, corpetes enfeitados de vidrilhos. Traziam fetiches religiosos nas mãos. Depois, o rei e a rainha em trajes majestosos, debaixo da ampla umbela de seda encarnada com franjas douradas. Empunhavam os cetros, vestiam longos mantos e tinham as cabeças coroadas. Na retaguarda do préstito, os atabaques, as marimbas, os cangás, os pandeiros, as buzinas...
As canções que todos entoavam eram ordinariamente
nostálgicas, como numa ancestral saudade da terra de berço, ficada tão
distante.
Costumavam também cantar assim:
Bravos,
Ioiô
Maracatu já chegou Bravos, Iaiá
Maracatu vai passá...
Uma das mulheres empunhava uma grande boneca de
pano toda engalanada de fitas, e repetia numa toada dolente:
A
boneca é de seda...
A boneca é de seda...
Os maracatus paravam em frente às casas dos
protetores e ali dançavam durante alguns minutos. Antigamente licenciavam-se
dezenas deles e apresentavam-se com verdadeiro luxo. Nas sedes havia demoradas
festas, com danças e batuques, a que assistiam os "soberanos" sob um
dossel de veludo. Todos os negros da costa, tão comuns no Recife de ontem — aqueles
mesmos que se reuniam, também, religiosamente na igreja do Rosário lá se
achavam para tomar parte nos "toques".
O maracatu escasseou e já não tinha mais o
esplendor de dantes. Hoje está na moda. Dá que falar. Entrou até nos salões e
já o macaqueiam a pretexto de estilizá-lo...
Em menino eu tinha medo dos maracatus. Medo e como
que uma espécie de piedade intraduzível. Aqueles passos de dança, aqueles
trajes esquisitos, aqueles cantos dolentes me davam uma agonia... Eu me
encolhia todo, juntando-me à saia de chita de minha mãe-preta, com receio
talvez de que os negros do maracatu a levassem também.
E eu nem sabia ainda ser o maracatu uma saudade...
Hoje é que a compreendo, que a sinto, recordando os maracatus de minha infância
e de minha terra, vendo os carnavais de outras cidades e de outra época.
Parece-me perceber ainda o batuque longínquo, cada
vez mais remoto, cada vez mais indeciso, quando, na alta noite de terça-feira,
no silêncio e na tristeza do Carnaval acabado, o derradeiro maracatu se
recolhia à sede...
Bum...
bum... bum... bum...
Bum... bum... bum... bum...
E lá se ia, como se foi, o meu maracatu de menino.
* * *
O frevo não veio do Carnaval de antigamente. É
hoje a nota típica do Carnaval recifense, mas, relativamente, uma novidade.
Data de 1909, diz Pereira da Costa. E, de fato, nasceu mais ou menos nessa
época. Outrora os cordões saíam com boas orquestras, luxo de vestimentas,
marchas arrebatadoras, mas não tinham o acompanhamento de agora, nem o povo
fazia as piruetas que depois se chamou o "passo", para uns, a
"onda" para outros, e "frevo", para todos.
De onde se originou o nome? Não se sabe bem.
Supõe-se seja uma corrupção de "fervor" ou de "fervura". O
fato é que a expressão de pernambucana está passando a ser brasileira. E queira
Deus não acabe universal.
O frevo pega como sarampo, como coqueluche, como
coceira. Porque as marchas desafiam, seduzem, arrastam. Elas só dizem o que são
de verdade tocadas pelas próprias orquestras dos clubes. Fora delas é cópia, é
café requentado.
Em meio do folguedo carnavalesco, numa das ruas
mais cheias de povo, cheinhas de parecer não caber um cristão, surge um dos
cordões. O Pás ou o Vassourinhas. Por exemplo. De um sobrado, vê-se a massa
bruta de gente que eles puxam. E aquilo tudo tem de atravessar a rua já
repleta. Imaginem! Aquele povaréu enorme mexe-se numa dança constante,
vibrante, estranha. A frente o estandarte carregado por uma mulher morena, de
fantasia colada ao corpo, com uns quadris e uns seios em ressalto provocador.
Atrás dela quatro molecotes de camisas de riscas empunhando archotes; em
seguida os músicos, também fantasiados, de caras lustrosas de suor e de tinta,
bochechas infladas, olhos esbugalhados, no esforço do sopro ou dos tambores e
ganzás. A maçaroca do pessoal vem depois como um bando de malucos. Estes se
acocoram e se levantam, aqueles abrem os braços e rodam, outros se empinam para
trás e para frente, torcem as pernas, fingem tremores, cantam estribilhos,
empunham guarda-sóis, erguem as mãos, piruetas de todas as maneiras. Mas, tudo,
combinado a rigor com o ritmo da marcha. Se esta tem uma síncope, todos
estacam. Se a música rompe de novo, todos recomeçam o "passo"; se se
acelera, todos avançam; se se agita, todos rodopiam. Vê-se naquele povão gente
de todas as classes, de todas as idades, de todas as cores, de todas as
posições. É um zunzum de muitas mil vozes, um cheiro de muitos mil corpos, um
contato de muitos mil desejos, um prurido de muitas mil folias... Ninguém faz
caso de atritos, de empurrões, de machucadelas, de pilhérias, de beliscões, de
afoitezas. Só há um alvo: fazer o "passo", ir no frevo. E vai-se...
A marcha é ao mesmo tempo cutucadora e arisca,
lúbrica e esquiva, abandonante e fugidia, brincalhona e astuciosa. Tem arrancos
e tentanizações. Promete-se e furta-se. Beija e morde. Avizinha-se e foge.
Oferece-se e esconde-se. Tem carícias de veludo e coceiras de papel picado.
Enfarofa os acordes como sabe enfarofar as pernas dos foliões. E o povo chama a
essa dança de "onda" e de "passo". As piruetas tomam os
nomes de "dobradiças", "tesouras", "saca-rolhas",
"chá de barriguinha" e outras denominações pitorescas, conforme as
posições que as justifiquem.
O frevo, durante os dias de Carnaval, dança-se em
todos os recantos da cidade. Uns com mais perícia e regra, outros com mais
condimento ou desacerto. Nos salões penetrou, "estilizando-se",
perdendo um pouco a rudeza popular, mas mesmo assim contagioso, delirante,
formidável.
Comprimindo-se, "pegando a doença do
passo", os cordões conseguem varar as ruas cheias de gente. O corso pára e
os automóveis como que se esvaziam porque todos entram no frevo. E lá se vai o
Lenhadores ou o Vasculhadores, como Pás e Lenhadores, parecendo uma imensa e
bojuda cobra saracoteante, atravessando as ruas largas ou estreitas, as praças
antigas e modernas, os próprios bequinhos de São José onde, por vezes, ficam as
suas sedes, em sobradinhos iluminados, cheirando a folhas de canelas.
Dois meses antes de Momo, já esses cordões fazem
ensaios à noite, pela cidade. Um ensaio constitui uma amostra saborosíssima do
frevo. Nas redondezas ninguém fica dentro de casa. As calçadas se enchem e, 20
passar o cordão, com a sua marcha danadinha de provocadora, o acompanhamento
vai engrossando. Cada um segue como está. Por fim são milhares de pessoas que
dançam, saracoteiam, fazem o "passo". Até à madrugada, até à
quarta-feira de cinzas. Já era assim há 30 anos.
E no dia seguinte, em todo o Recife, só se ouviam
frases semelhantes a esta:
—
Minha negra, o frevo do Vassoura ontem de noite
estava falando boneco!
Como hoje se dirá:
---
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