4/13/2025

Mandinga (Conto), de Apolinário Porto Alegre

 

MANDINGA

Corria o ano de 1867.

Estávamos no mês de julho, mês de geadas hibernais e calores de verão. A inconstância da temperatura transtornava a saúde e os cálculos do homem. O estado atmosférico, pela sua irregularidade e súbitas mudanças, trazia um mal-estar que afetava não só a existência como os interesses de cada um. A própria natureza parecia dominada pelos sentimentos de angústia e tristeza estereotipados em cada fisionomia; pelo trajar sombrio e desalinhado do arvoredo, pelo plangente soluço de cada folha e de cada onda, dir-se-ia que ela vestia luto e chorava a viuvez e a orfandade inconsoláveis ao ceifar da morte.

Era um mês maldito!

Assim, por vezes, de manhã o capinzal surgia enastrado de carambanos, ao meio-dia a mormacenta calma convidava à sesta, ao entardecer os serros vestiam úmidas névoas, que, como um manto, pouco a pouco desdobravam e cobriam toda a superfície da terra.

O minuano de sopro glacial, mas saudável; o minuano, que se espoja bravio no tapete das várzeas e nas tranças da mataria, esparzindo a maunças a rama amarelenta; o minuano, que revolve os caetés do banhado e os borbotões das catadupas, e curva a vetusta coma dos pinheirais, a raros intervalos cruzava o espaço, repontando o rebanho de nimbos que empanavam o azul diáfano dos céus do sul.

Soprava às vezes algumas horas e desaparecia, deixando as caligens e nevoeiros invadirem seus largos domínios.

Os campeiros não sabiam mesmo a estação por que passavam.

E quem poderia dizê-lo?

As gramíneas dos prados, começando a pungir viçosas e com alegria do gado magro e famulento, após alguns dias de benéfico sol crestavam às bátegas de neve, que, sobrevindo de repente, esvaeciam o prematuro sorriso da primavera, cerravam uma ou outra flor, que, como um sinal de esperança e alegria, ia desabotoando intempestivamente as pétalas, esparzindo no ambiente a caçoila de perfumes.

O passarinho ensaiando o atito da quadra verna, iludido pela transição mentirosa do tempo, logo emudecia, trêmulo de frio e talvez de susto.

***

Prosseguia, entretanto, ativa a safra da farinhada, apesar de lá vir um dia em que a massa fermentava no cocho ou fazia estalar o ordume dos tipitis nas prensas.

As raízes da gostosa maniva aguaram pela maior parte e as de roça em baixadas apodreceram.

Os farinheiros estavam descontentes e, resmungando, continuavam no serviço, que este ano lhes prometia poucos lucros.

Vamos então a uma atafona na encosta do morro de Santana.

É noite.

As rodas dos engenhos rangem, movem-se e gritam no silêncio daquelas paragens.

O pião guincha girando, o tremonhal estremece, a almanjarra estala aos empuxos de um possante animal.

As pás do forno batem furiosas agitando o polme da mandioca.

O cevador e o forneiro estimulam a espaços os bois com a palavra e o diapasão que lhes são peculiares.

É o ruído do trabalho. É a voz da vida.

Viajor, no país onde encontrares máquinas funcionando, a agitação de mós e o burburinho da gente que se afana, conclui logo que esse país marcha, progride.

Esse era o interior.

Por fora o céu era negro e tremenda borrasca ribombava.

Tudo treva e caos! Relâmpagos, trovões e raios sucediam-se continuamente, quase sem interrupção.  

Uma chuva de pedras de todas as dimensões zurzia o telhado e a frente da casa.

A geração que trabalhava naquela atafona não se lembrava de tormenta igual, e a própria tradição talvez só tivesse para cotejo as cenas e peripécias do dilúvio.

Em torno ao monte de mandioca estão umas vinte pessoas.

As facas lestas esfolam as raízes; porém os pensamentos e a palestra versam sobre o tempo, que berra e estruge fora.

As luzes das candeias pousam pálidas e versáteis em cada semblante.

A raspagem da mandioca, que é o serviço mais alegre e animado, ora é triste e cheia de maus presságios.

Os capotes são dados sem gracejos; o olhar da roceirinha não tem a viveza e o dengue provocador, nem sua boca desfaz-se num muxoxo faceiro; os moços estão taciturnos, os velhos mudos, e a miuçalha, sempre travessa e ruidosa, sempre com a risadinha pronta e o gesto em ação, então retraída como a flor do cacto ao bafo do pampeiro.

Formavam um grupo digno duma paisagem campestre, mas com uma expressão de terror pouco frisante.

— Mau tempo! Desde que vim ao mundo, não vi uma invernada assim! — exclamou Brígida.

— Mau tempo! Mau tempo! — repetiram alguns em coro, acompanhando como um eco a reflexão da respeitável matrona.

Um rapaz de mangas arregaçadas até os cotovelos ajuntou:

— Má cara traz Santana! Hoje nem viola, nem tirana e chimarrita. É um tempo dos diabos!  

Cala-te, bagual!... Ouves como troveja, e não conténs essa língua maldita! — se lhe dirigiu outro, cujo medo pelos raios era proverbial.

— Bagual!... Eu podia... — E mostrou-lhe uma enorme raiz de cananeia — porém... mil raios te partam!

Cavernosa e profunda detonação abalou céus e terra.

Todos olharam para o moço.

— João — ponderou Brígida —, mais respeito!

O silêncio restabeleceu-se.

 ***

Num quarto contíguo à atafona estava uma negra doente.

A patologia acharia sérios embaraços em determinar os caracteres da enfermidade.

Ela não gemia, mugia. Não admitia roupas sobre si. Em vão lutavam para tê-la coberta. Em vão. Cobertores e lençóis, os arrojava longe; camisas e vestidos, despedaçava-os. De gatinhas e nua, atirava-se no soalho e retouçava como os brutos. O grande Nabucodonosor, dizem, acabara assim. Triste desvario o em que uma criatura humana, dotada de sentimentos elevados, de uma inteligência superior aos outros seres do globo, vê-se num instante esbulhada de tais predicados, buscando descer à condição do quadrúpede e do réptil!

Que enfermidade é essa?

Que nome lhe dá a ciência?

Nenhum. Não é a alienação mental nem a excentricidade dos filhos de Álbion.

Se fosse o desejo de ser pássaro, ainda ia bem; porque era uma aspiração a voo. Voar, sondar os céus, seria admirável; porém, rastejar!? É uma degradação.

A negra assaltada de mal tão incompreensível chama-se Luísa. Nasceu em terras de África. É mina de nação, segundo o selo do rosto. Alta, volumosa, feia e, então, meio fula por efeito da febre e insônias. Dorme quase sempre durante o dia, se é possível dar o nome de sono a um estado marasmático. De noite vela, grita e preenche as funções de alimária de que se incumbiu.

Tornou-se também de uma voracidade espantosa. É gastrônoma como um avestruz ou dois padres.

 ***

— Mau tempo! — repetiram os raspadores em coro.

— Eu só o que digo é que o diabo anda com este mês — insistia João, levando um balaio para o cevadouro.

— Mais respeito, rapaz; o céu está feio! — tornava Brígida.

— Tia Brígida, cada um sabe de si e Deus de todos. Eu sei por que falo... e você mesma tem o exemplo em casa. Por que esticaram o mulambo quase todas as suas galinhas, a leitoada, que era só boa, e aquele terneiro petiço que, à força de raspa, estava redondinho?

— Ora, João, descobriste o mel de pau! — exclamou um da roda.

— Como!

— Pois bicho que bebe manipueira lá se estriba mais no garrão!

Ou eu ou vocês não damos em bola. Não é a mesma calha das prensas? Não é a mesma manipueira de sempre? E como nos outros anos nunca tal aconteceu? O Chico Dias, que é o ilhéu mais caborteiro da redondeza e feliz como filho de padre, não contou também outro dia, no Claudino, que a mãe do ouro sapecou todo o seu mandiocal?

— E eu vi quando ela passou — intercalou um. — Parecia a roda grande que engranza no rodízio! Veio do cocuruto do serro e passou pelo potreiro das pedras.

O Bernardino Nunes, que era um incrédulo digno de excomunhão, voltou à carga:

— Histórias de bambaê! Já tropeei em toda a campanha e nunca vi coisa que me arredasse pé. — E com sorriso sarcástico mediu toda a roda, mais propensa à opinião de João.

Este último não desacorçoou:

— E por que a negra Luísa grita de um modo tão estúrdio? Aquilo é gemer de gente?

Os gritos da africana eram bem distintos aos ouvidos de todos.

Os trabalhadores paravam com os caxirenguengues em uma mão, e a raiz pendida na outra, sobre os montículos de raspas. Acharam razão no dito de João. O próprio Nunes não encontrou retruque.

Houve silêncio profundo por instantes. Só o boi do cevadouro, desajoujado há pouco da almanjarra, num canto fazia estalar a sua tamina de cruera; Luísa mugia e a tempestade detonava fora.

— Aquilo não será mandinga que botaram na negra?

— Qual! Eu sei por que falo...

— João, desde inda agora estás a dizer que sabes por que falas... O que é que sabes?

— Eu vi — retrucou com um gesto de íntima convicção.

— Viste? — exclamaram.

Ele meneou a cabeça com um movimento de íntima convicção.

— O quê? Conta-nos isso.

João foi o alvo da atenção geral.

O joeirador e o forneiro deixaram o serviço e vieram ao monte. A neta de Brígida esqueceu a barrica do polvilho com a massa empilhada na peneira. O baiano Maneca retirou tão rapidamente o braço de dentro do tipiti, onde socava o polme da mandioca, que o arranhou todo nas pontas de taquara. O Prudêncio, cuja surdez fazia suar no rigor do inverno a quem com ele conversasse, mudou de cepo e começou a escutar antes de o moço falar.

O imprenseiro não depôs, atirou a vara.

João estava pálido, merencório e trêmulo.

As mulheres, mais que os homens, tinham friagem no seio; não essa da atmosfera, a do susto, sempre mais contagiosa e enérgica, sempre produzindo oscilação irregular do coração e regelo da medula dos ossos.

— Anteontem — começou ele —, vinha eu do morro com a foice e o machado ao ombro. Ao passar pela casa do Anacleto, o porqueiro, entrei. Pauteando e verdeando, a noite caiu. Depois arranjamos um fandango.

Vieram mais rapazes do vizindário e eu esqueci-me de casa. Era natural.

“A estrela da meia-noite apontou quando eu saía por último. A noite estava escura como carvão.

Ao passar junto à coivara do Tiradeira foi que vi... oh! inda sinto os cabelos se espetarem na cabeça! Vinha montado num touro caraúno.”

Num touro!? — bradaram.

— Sim, o juro por minha alma! Caramba! Era um novilho ligeiro! Corria mais que um galheiro no vargedo ou uma cotia no cerrado! E ele vinha montado guapamente, trazendo um poncho encarnado e chilenas que repenicavam como nas coritibas da sapateada. Seus cabelos e seus olhos pareciam de fogo.

— Porém, quem?

— O diabo — respondeu João, grave e solene.

Nesse momento três pancadas na porta da atafona, sobrepujando a tempestade, ressoaram cavernosas e mortuárias.

— Quem bate? — perguntou o imprenseiro.

— Uma pousada. O temporal apanhou-me em viagem.

— Que diz, tia Brígida, abro a porta?

— Abre, abre, que é crueldade deixar um cristão exposto ao tempo.

Um dos que estavam sob a impressão da crendice de João interveio:

— Tia Brígida, seria bom não abrir... Este mês não é como os outros...

— Abre — tornou em tom incisivo a velha matrona.

A porta escancarou-se.

As candeias e velas se apagaram, talvez à lufada que entrou esfuziando.

Porém a luz do forno dos beijus esclarecia a meio, e destacou o vulto do hóspede.

Era o original da descrição de João.

Ele chegou-se ao monte de mandioca e saudou a todos com cortesia, dizendo:

— Falai no mau, aparelhai o pau. — E dirigindo-se a João, que parecia atacado de sezões: — Esqueceste de falar do meu chapéu de abas largas com plumas de galo e destas botas de couro da Rússia; e, sobretudo, da corrida de anteontem à noite. Admirei-te as pernas... tinham asas!

Todos estavam mudos e estatelados. Passavam por esta crise em que o espírito humano dir-se-ia flutuar entre a terra e o céu, despojado de parte das condições da vida ordinária.

Então qualquer objeto em torno toma aspecto diverso, formas amplas e variáveis, como na nuvem balouçada nos braços do tufão, e a semitransparência da bruma sobre as árvores da montanha.

Há na visão mil caprichos fantásticos da imaginação, sem que se possa chamar a este estado de vigília febril ou sonho.

É uma fase do terror, da qual os mais fortes nem sempre se acham isentos.

Enquanto, ouvindo-o, ficavam suspensos, ele acendeu as candeias.

— D. Brígida — disse — há de consentir que raspe algumas mandioquinhas.

A pobre senhora, que não era das menos medrosas, ainda mais espantou-se de ser tratada pelo nome; nem teve ânimo de polidamente recusar o oferecimento.

 ***

 Ei-lo ativo no trabalho! As raízes voam-lhe das mãos ao cesto com uma rapidez indizível.

Está sentado numa banqueta.

A pena de galo flutua-lhe na cabeça como o distintivo da realeza.

Ninguém falava em torno; um ou outro olhar o buscava de viés, receando encontrar o seu.

Era o terror soberano.

Afinal, Brígida ousou uma interrogação.

— O senhor é da cidade?

— Não, minha senhora, meu reino não é deste mundo.

Ela não o compreendeu, e depois de breve pausa:

— Viajava por nossos pagos?

— É verdade — respondeu ele sem fixá-la. — Jacto-me de ser excelente médico e ofereço de tempos a tempos meus préstimos à humanidade sofredora. Há mais de cem mil anos o homem reclama o auxílio de minha arte, que conhece os específicos das cinco partes da Terra.

Também isso foi como uma zoada aos ouvidos da boa mulher, que lhe dirigiu a palavra apenas para fazer as honras da casa a hóspede tão singular.

Os outros da roda não o honraram também com um só relance d’olhos; porém sentiram sua voz abemolada e terna titilar-lhes o ouvido como um canto de sereia.

Não tinham razão, era um preconceito, uma injustiça que a presença do recém-chegado destruía ao mais ligeiro exame.

Era um belo mocetão de cabelos ruivos, barba à inglesa e olhos azuis derramando carinhos e esplendores que transbordavam pelos vidros dos óculos de ouro.

Ele prosseguiu:

— Se a senhora quiser utilizar-se de meus serviços, nada de cerimônias.

Gosto de plena franqueza.

— Obrigada, senhor. Tenho uma negra, a quem, eu penso, botaram mandinga; pois na cidade os médicos não conhecem a doença.

— Oh! — exclamou ele, rindo-se. — A Luísa!

Todos ficaram horrorizados.

— Sim, meu senhor; conhece-a?

— Muito. Uma pagã, nunca foi batizada. Nem outra é a causa das geadas e calores deste mês e da saraiva, raio e chuva desta noite.

— E não há remédio para ela? Oh! eu lhe ficaria muito agradecida se pudesse curá-la...

— Impossível! Minha ciência se esboroa contra os poderes do inferno que laboram naquela alma.

— Mas inda é tempo de batizá-la.

— Quem diz à senhora que ela durará até amanhã? Ainda uma hora? A tempestade cresce. Não ouve? Mau sinal!

Calaram-se.

O estranho, com espantosa alacridade, acabara, pondo de parte algum trabalho já feito, com um carro de mandioca, de cevas de seis palmos de altura.

Quase só e conversando, pois quando entrara o serviço havia começado há pouco, e, então, ao redor do monte apenas restavam ele e Brígida, que não se aventurava a encará-lo.

Os mais, tomados de susto pânico, esgueiraram-se furtivamente e foram barafustando pelos mais remotos esconderijos da casa.

Quando a raspagem terminou, os dois interlocutores se olharam.

Estavam a sós.

As raras falripas de Brígida ficaram hirtas no pericrânio como espinhos de tuna.

— Não se assuste, minha senhora, sou o mais pacato cidadão do orbe civilizado. — E guardou na cinta sua faca, que semelhava antes uma pá de alvanel. — Aquele tolo do João — continuou o desconhecido, impassível e com tom firme — contava uma bem esquisita história quando me lembrei de pedir pouso. Diga com toda a sinceridade, acha o diabo tão feio como o pintam?

A mísera velha tartamudeou. Não se entendeu o que articulara.

— João mentiu impudentemente — observou ainda, tomando um tição e acendendo um perfumoso charuto. — Os papalvos, devo confessá-lo, acham poderosos recursos na sua própria imaginação para esboçarem a fisionomia de outrem... Porém, que importunidade, com a minha parlenda a roubar-lhe as horas de repouso! Vá deitar-se, sem constrangimento. Eu me estiro na boca deste forno e dormirei satisfeito. O fogo é meu elemento.

Brígida respirou como o prisioneiro que sai das estacas, e perguntou, trêmula e pálida:

— O senhor não quer um mate?

— Nada absolutamente. Agradecido. Meu sistema higiênico é de nada tomar à noite, mormente bebidas frias.

 ***

Que formosa manhã raiou após a noite tempestuosa! Os primeiros albores vinham dourando o topo dos serros e a natureza saudava a festiva madrugada.

Vamos à atafona.

Em cada pálpebra há o carimbo das insônias. Má noite, por certo, a que passaram. O trabalho está todo em atraso. São poucos os tipitis nas prensas. Os fusos estão frouxos, as chapeletas bamboleiam, a massa não enxugou.

Não se forneia, portanto.

— Que é isto? — exclama o vizinho Juanico entrando. — Então hoje não se põem antolhos nos animais, não se acende o forno? Epuxa! Tanta gente e tão pouco trabalho! Temem estropiar os bois? Estrompar os braços? Ou estão encarangados?

Ninguém respondeu à explosão ruidosa da intimidade de Juanico.

Brígida e João lhe fizeram um aceno e ele acompanhou-os a um quarto. O sol entrava aos borbotões por uma janela. No chão havia um cadáver nu, hirto, nojento, e com uma expressão tão medonha, que arrancou um grito espontâneo ao bom vizinho.

Não trocaram uma palavra. Saíram.

Brígida, ainda com vivos sinais de pavor, contou o que já sabemos... e mais alguma coisa.

Pôs o capitel à coluna. Era o remate da história.

Ei-lo:

— Não imagina, vizinho, como fiquei zonza quando levantei os olhos e vi que estava a sós com ele! Todos, todos tinham fugido!

— Eu com razão — murmurou João.

— Não, não — retorquiu com energia —, nos homens foi uma vileza, tu sobre todos, João!... Oh! nunca hei de esquecer a véspera de Santana!...

— Como podia valer-lhe, tia Brígida, contra o demônio?

— Como?! Cala-te, é melhor. Com tua presença davas-me ânimo. Não esquecerei, eu te juro, os amigos de ontem. Nestas ocasiões é que se conhece o quilate de cada um.

— Porém, vizinha, vamos ao resto — acudiu Juanico.

— Tem razão! Eu dizia?! Ah! deixei-o estendido junto ao forno com o chapéu de abas largas e plumas de galo. Não o vi mais depois. Quando o relógio da sala deu a última pancada da meia-noite, a casa estremeceu toda a um grito feroz e terrível de Luísa.

Persignou-se a boa velha e continuou:

— Um escravo cobrou ânimo e foi vê-la. Estava morta, e o hóspede havia desaparecido. Toda a casa encheu-se de cheiro de enxofre. Também o tempo estiou e a noite limpou, como por milagre. Junto ao fogo ele deixou-me um gato negro, com uns olhos! Que olhos, meu Deus! Parece que ainda os estou vendo. Que olhos malvados!

E de novo persignou-se.

— Para enxotá-lo e afugentá-lo, queimei alecrim... todos queimaram alecrim... rezamos... O bichano desapareceu, mas ninguém pregou olho até agora.

— É estranho o passo! É estranho! — resmungava entre dentes Juanico.

 ***

Ao romper do dia, ainda no lusco-fusco, um trapeiro conta que vira subindo em uma nuvem um homem de chapéu de penacho e poncho vermelho. Cavalgava um touro preto, levando na garupa uma coisa que parecia uma mulher.

Se o trapeiro falava a verdade, eis o que não sabemos.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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