Corria o ano de 1867.
Estávamos no mês de julho, mês de geadas
hibernais e calores de verão. A inconstância da temperatura transtornava a
saúde e os cálculos do homem. O estado atmosférico, pela sua irregularidade e
súbitas mudanças, trazia um mal-estar que afetava não só a existência como os
interesses de cada um. A própria natureza parecia dominada pelos sentimentos de
angústia e tristeza estereotipados em cada fisionomia; pelo trajar sombrio e
desalinhado do arvoredo, pelo plangente soluço de cada folha e de cada onda, dir-se-ia
que ela vestia luto e chorava a viuvez e a orfandade inconsoláveis ao ceifar da
morte.
Era um mês maldito!
Assim, por vezes, de manhã o capinzal surgia
enastrado de carambanos, ao meio-dia a mormacenta calma convidava à sesta, ao
entardecer os serros vestiam úmidas névoas, que, como um manto, pouco a pouco
desdobravam e cobriam toda a superfície da terra.
O minuano de sopro glacial, mas saudável; o
minuano, que se espoja bravio no tapete das várzeas e nas tranças da mataria,
esparzindo a maunças a rama amarelenta; o minuano, que revolve os caetés do
banhado e os borbotões das catadupas, e curva a vetusta coma dos pinheirais, a
raros intervalos cruzava o espaço, repontando o rebanho de nimbos que empanavam
o azul diáfano dos céus do sul.
Soprava às vezes algumas horas e desaparecia,
deixando as caligens e nevoeiros invadirem seus largos domínios.
Os campeiros não sabiam mesmo a estação por
que passavam.
E quem poderia dizê-lo?
As gramíneas dos prados, começando a pungir
viçosas e com alegria do gado magro e famulento, após alguns dias de benéfico
sol crestavam às bátegas de neve, que, sobrevindo de repente, esvaeciam o
prematuro sorriso da primavera, cerravam uma ou outra flor, que, como um sinal
de esperança e alegria, ia desabotoando intempestivamente as pétalas,
esparzindo no ambiente a caçoila de perfumes.
O passarinho ensaiando o atito da quadra
verna, iludido pela transição mentirosa do tempo, logo emudecia, trêmulo de
frio e talvez de susto.
***
Prosseguia, entretanto, ativa a safra da
farinhada, apesar de lá vir um dia em que a massa fermentava no cocho ou fazia
estalar o ordume dos tipitis nas prensas.
As raízes da gostosa maniva aguaram pela maior
parte e as de roça em baixadas apodreceram.
Os farinheiros estavam descontentes e,
resmungando, continuavam no serviço, que este ano lhes prometia poucos lucros.
Vamos então a uma atafona na encosta do morro
de Santana.
É noite.
As rodas dos engenhos rangem, movem-se e
gritam no silêncio daquelas paragens.
O pião guincha girando, o tremonhal estremece,
a almanjarra estala aos empuxos de um possante animal.
As pás do forno batem furiosas agitando o
polme da mandioca.
O cevador e o forneiro estimulam a espaços os
bois com a palavra e o diapasão que lhes são peculiares.
É o ruído do trabalho. É a voz da vida.
Viajor, no país onde encontrares máquinas
funcionando, a agitação de mós e o burburinho da gente que se afana, conclui
logo que esse país marcha, progride.
Esse era o interior.
Por fora o céu era negro e tremenda borrasca
ribombava.
Tudo treva e caos! Relâmpagos, trovões e raios
sucediam-se continuamente, quase sem interrupção.
Uma chuva de pedras de todas as dimensões
zurzia o telhado e a frente da casa.
A geração que trabalhava naquela atafona não
se lembrava de tormenta igual, e a própria tradição talvez só tivesse para
cotejo as cenas e peripécias do dilúvio.
Em torno ao monte de mandioca estão umas vinte
pessoas.
As facas lestas esfolam as raízes; porém os
pensamentos e a palestra versam sobre o tempo, que berra e estruge fora.
As luzes das candeias pousam pálidas e
versáteis em cada semblante.
A raspagem da mandioca, que é o serviço mais
alegre e animado, ora é triste e cheia de maus presságios.
Os capotes são dados sem gracejos; o olhar da
roceirinha não tem a viveza e o dengue provocador, nem sua boca desfaz-se num
muxoxo faceiro; os moços estão taciturnos, os velhos mudos, e a miuçalha,
sempre travessa e ruidosa, sempre com a risadinha pronta e o gesto em ação, então
retraída como a flor do cacto ao bafo do pampeiro.
Formavam um grupo digno duma paisagem
campestre, mas com uma expressão de terror pouco frisante.
— Mau tempo! Desde que vim ao mundo, não vi
uma invernada assim! — exclamou Brígida.
— Mau tempo! Mau tempo! — repetiram alguns em
coro, acompanhando como um eco a reflexão da respeitável matrona.
Um rapaz de mangas arregaçadas até os
cotovelos ajuntou:
— Má cara traz Santana! Hoje nem viola, nem
tirana e chimarrita. É um tempo dos diabos!
Cala-te, bagual!... Ouves como troveja, e não
conténs essa língua maldita! — se lhe dirigiu outro, cujo medo pelos raios era
proverbial.
— Bagual!... Eu podia... — E mostrou-lhe uma
enorme raiz de cananeia — porém... mil raios te partam!
Cavernosa e profunda detonação abalou céus e
terra.
Todos olharam para o moço.
— João — ponderou Brígida —, mais respeito!
O silêncio restabeleceu-se.
***
Num quarto contíguo à atafona estava uma negra
doente.
A patologia acharia sérios embaraços em
determinar os caracteres da enfermidade.
Ela não gemia, mugia. Não admitia roupas sobre
si. Em vão lutavam para tê-la coberta. Em vão. Cobertores e lençóis, os
arrojava longe; camisas e vestidos, despedaçava-os. De gatinhas e nua,
atirava-se no soalho e retouçava como os brutos. O grande Nabucodonosor, dizem,
acabara assim. Triste desvario o em que uma criatura humana, dotada de
sentimentos elevados, de uma inteligência superior aos outros seres do globo,
vê-se num instante esbulhada de tais predicados, buscando descer à condição do
quadrúpede e do réptil!
Que enfermidade é essa?
Que nome lhe dá a ciência?
Nenhum. Não é a alienação mental nem a
excentricidade dos filhos de Álbion.
Se fosse o desejo de ser pássaro, ainda ia
bem; porque era uma aspiração a voo. Voar, sondar os céus, seria admirável;
porém, rastejar!? É uma degradação.
A negra assaltada de mal tão incompreensível
chama-se Luísa. Nasceu em terras de África. É mina de nação, segundo o selo do
rosto. Alta, volumosa, feia e, então, meio fula por efeito da febre e insônias.
Dorme quase sempre durante o dia, se é possível dar o nome de sono a um estado
marasmático. De noite vela, grita e preenche as funções de alimária de que se
incumbiu.
Tornou-se também de uma voracidade espantosa.
É gastrônoma como um avestruz ou dois padres.
***
— Mau tempo! — repetiram os raspadores em
coro.
— Eu só o que digo é que o diabo anda com este
mês — insistia João, levando um balaio para o cevadouro.
— Mais respeito, rapaz; o céu está feio! —
tornava Brígida.
— Tia Brígida, cada um sabe de si e Deus de
todos. Eu sei por que falo... e você mesma tem o exemplo em casa. Por que
esticaram o mulambo quase todas as suas galinhas, a leitoada, que era só boa, e
aquele terneiro petiço que, à força de raspa, estava redondinho?
— Ora, João, descobriste o mel de pau! —
exclamou um da roda.
— Como!
— Pois bicho que bebe manipueira lá se estriba
mais no garrão!
Ou eu ou vocês não damos em bola. Não é a
mesma calha das prensas? Não é a mesma manipueira de sempre? E como nos outros
anos nunca tal aconteceu? O Chico Dias, que é o ilhéu mais caborteiro da
redondeza e feliz como filho de padre, não contou também outro dia, no
Claudino, que a mãe do ouro sapecou todo o seu mandiocal?
— E eu vi quando ela passou — intercalou um. —
Parecia a roda grande que engranza no rodízio! Veio do cocuruto do serro e
passou pelo potreiro das pedras.
O Bernardino Nunes, que era um incrédulo digno
de excomunhão, voltou à carga:
— Histórias de bambaê! Já tropeei em toda a
campanha e nunca vi coisa que me arredasse pé. — E com sorriso sarcástico mediu
toda a roda, mais propensa à opinião de João.
Este último não desacorçoou:
— E por que a negra Luísa grita de um modo tão
estúrdio? Aquilo é gemer de gente?
Os gritos da africana eram bem distintos aos
ouvidos de todos.
Os trabalhadores paravam com os
caxirenguengues em uma mão, e a raiz pendida na outra, sobre os montículos de
raspas. Acharam razão no dito de João. O próprio Nunes não encontrou retruque.
Houve silêncio profundo por instantes. Só o boi
do cevadouro, desajoujado há pouco da almanjarra, num canto fazia estalar a sua
tamina de cruera; Luísa mugia e a tempestade detonava fora.
— Aquilo não será mandinga que botaram na
negra?
— Qual! Eu sei por que falo...
— João, desde inda agora estás a dizer que
sabes por que falas... O que é que sabes?
— Eu vi — retrucou com um gesto de íntima
convicção.
— Viste? — exclamaram.
Ele meneou a cabeça com um movimento de íntima
convicção.
— O quê? Conta-nos isso.
João foi o alvo da atenção geral.
O joeirador e o forneiro deixaram o serviço e
vieram ao monte. A neta de Brígida esqueceu a barrica do polvilho com a massa
empilhada na peneira. O baiano Maneca retirou tão rapidamente o braço de dentro
do tipiti, onde socava o polme da mandioca, que o arranhou todo nas pontas de
taquara. O Prudêncio, cuja surdez fazia suar no rigor do inverno a quem com ele
conversasse, mudou de cepo e começou a escutar antes de o moço falar.
O imprenseiro não depôs, atirou a vara.
João estava pálido, merencório e trêmulo.
As mulheres, mais que os homens, tinham
friagem no seio; não essa da atmosfera, a do susto, sempre mais contagiosa e
enérgica, sempre produzindo oscilação irregular do coração e regelo da medula
dos ossos.
— Anteontem — começou ele —, vinha eu do morro
com a foice e o machado ao ombro. Ao passar pela casa do Anacleto, o porqueiro,
entrei. Pauteando e verdeando, a noite caiu. Depois arranjamos um fandango.
Vieram mais rapazes do vizindário e eu
esqueci-me de casa. Era natural.
“A estrela da meia-noite apontou quando eu
saía por último. A noite estava escura como carvão.
Ao passar junto à coivara do Tiradeira foi que
vi... oh! inda sinto os cabelos se espetarem na cabeça! Vinha montado num touro
caraúno.”
Num touro!? — bradaram.
— Sim, o juro por minha alma! Caramba! Era um
novilho ligeiro! Corria mais que um galheiro no vargedo ou uma cotia no
cerrado! E ele vinha montado guapamente, trazendo um poncho encarnado e
chilenas que repenicavam como nas coritibas da sapateada. Seus cabelos e seus
olhos pareciam de fogo.
— Porém, quem?
— O diabo — respondeu João, grave e solene.
Nesse momento três pancadas na porta da
atafona, sobrepujando a tempestade, ressoaram cavernosas e mortuárias.
— Quem bate? — perguntou o imprenseiro.
— Uma pousada. O temporal apanhou-me em
viagem.
— Que diz, tia Brígida, abro a porta?
— Abre, abre, que é crueldade deixar um
cristão exposto ao tempo.
Um dos que estavam sob a impressão da crendice
de João interveio:
— Tia Brígida, seria bom não abrir... Este mês
não é como os outros...
— Abre — tornou em tom incisivo a velha
matrona.
A porta escancarou-se.
As candeias e velas se apagaram, talvez à
lufada que entrou esfuziando.
Porém a luz do forno dos beijus esclarecia a
meio, e destacou o vulto do hóspede.
Era o original da descrição de João.
Ele chegou-se ao monte de mandioca e saudou a
todos com cortesia, dizendo:
— Falai no mau, aparelhai o pau. — E
dirigindo-se a João, que parecia atacado de sezões: — Esqueceste de falar do
meu chapéu de abas largas com plumas de galo e destas botas de couro da Rússia;
e, sobretudo, da corrida de anteontem à noite. Admirei-te as pernas... tinham
asas!
Todos estavam mudos e estatelados. Passavam
por esta crise em que o espírito humano dir-se-ia flutuar entre a terra e o
céu, despojado de parte das condições da vida ordinária.
Então qualquer objeto em torno toma aspecto
diverso, formas amplas e variáveis, como na nuvem balouçada nos braços do
tufão, e a semitransparência da bruma sobre as árvores da montanha.
Há na visão mil caprichos fantásticos da
imaginação, sem que se possa chamar a este estado de vigília febril ou sonho.
É uma fase do terror, da qual os mais fortes
nem sempre se acham isentos.
Enquanto, ouvindo-o, ficavam suspensos, ele
acendeu as candeias.
— D. Brígida — disse — há de consentir que
raspe algumas mandioquinhas.
A pobre senhora, que não era das menos
medrosas, ainda mais espantou-se de ser tratada pelo nome; nem teve ânimo de
polidamente recusar o oferecimento.
***
Ei-lo
ativo no trabalho! As raízes voam-lhe das mãos ao cesto com uma rapidez
indizível.
Está sentado numa banqueta.
A pena de galo flutua-lhe na cabeça como o
distintivo da realeza.
Ninguém falava em torno; um ou outro olhar o
buscava de viés, receando encontrar o seu.
Era o terror soberano.
Afinal, Brígida ousou uma interrogação.
— O senhor é da cidade?
— Não, minha senhora, meu reino não é deste
mundo.
Ela não o compreendeu, e depois de breve
pausa:
— Viajava por nossos pagos?
— É verdade — respondeu ele sem fixá-la. —
Jacto-me de ser excelente médico e ofereço de tempos a tempos meus préstimos à
humanidade sofredora. Há mais de cem mil anos o homem reclama o auxílio de
minha arte, que conhece os específicos das cinco partes da Terra.
Também isso foi como uma zoada aos ouvidos da
boa mulher, que lhe dirigiu a palavra apenas para fazer as honras da casa a
hóspede tão singular.
Os outros da roda não o honraram também com um
só relance d’olhos; porém sentiram sua voz abemolada e terna titilar-lhes o
ouvido como um canto de sereia.
Não tinham razão, era um preconceito, uma
injustiça que a presença do recém-chegado destruía ao mais ligeiro exame.
Era um belo mocetão de cabelos ruivos, barba à
inglesa e olhos azuis derramando carinhos e esplendores que transbordavam pelos
vidros dos óculos de ouro.
Ele prosseguiu:
— Se a senhora quiser utilizar-se de meus
serviços, nada de cerimônias.
Gosto de plena franqueza.
— Obrigada, senhor. Tenho uma negra, a quem,
eu penso, botaram mandinga; pois na cidade os médicos não conhecem a doença.
— Oh! — exclamou ele, rindo-se. — A Luísa!
Todos ficaram horrorizados.
— Sim, meu senhor; conhece-a?
— Muito. Uma pagã, nunca foi batizada. Nem
outra é a causa das geadas e calores deste mês e da saraiva, raio e chuva desta
noite.
— E não há remédio para ela? Oh! eu lhe
ficaria muito agradecida se pudesse curá-la...
— Impossível! Minha ciência se esboroa contra
os poderes do inferno que laboram naquela alma.
— Mas inda é tempo de batizá-la.
— Quem diz à senhora que ela durará até
amanhã? Ainda uma hora? A tempestade cresce. Não ouve? Mau sinal!
Calaram-se.
O estranho, com espantosa alacridade, acabara,
pondo de parte algum trabalho já feito, com um carro de mandioca, de cevas de
seis palmos de altura.
Quase só e conversando, pois quando entrara o
serviço havia começado há pouco, e, então, ao redor do monte apenas restavam
ele e Brígida, que não se aventurava a encará-lo.
Os mais, tomados de susto pânico,
esgueiraram-se furtivamente e foram barafustando pelos mais remotos
esconderijos da casa.
Quando a raspagem terminou, os dois
interlocutores se olharam.
Estavam a sós.
As raras falripas de Brígida ficaram hirtas no
pericrânio como espinhos de tuna.
— Não se assuste, minha senhora, sou o mais
pacato cidadão do orbe civilizado. — E guardou na cinta sua faca, que semelhava
antes uma pá de alvanel. — Aquele tolo do João — continuou o desconhecido,
impassível e com tom firme — contava uma bem esquisita história quando me
lembrei de pedir pouso. Diga com toda a sinceridade, acha o diabo tão feio como
o pintam?
A mísera velha tartamudeou. Não se entendeu o
que articulara.
— João mentiu impudentemente — observou ainda,
tomando um tição e acendendo um perfumoso charuto. — Os papalvos, devo
confessá-lo, acham poderosos recursos na sua própria imaginação para esboçarem
a fisionomia de outrem... Porém, que importunidade, com a minha parlenda a
roubar-lhe as horas de repouso! Vá deitar-se, sem constrangimento. Eu me estiro
na boca deste forno e dormirei satisfeito. O fogo é meu elemento.
Brígida respirou como o prisioneiro que sai
das estacas, e perguntou, trêmula e pálida:
— O senhor não quer um mate?
— Nada absolutamente. Agradecido. Meu sistema
higiênico é de nada tomar à noite, mormente bebidas frias.
***
Que formosa manhã raiou após a noite
tempestuosa! Os primeiros albores vinham dourando o topo dos serros e a
natureza saudava a festiva madrugada.
Vamos à atafona.
Em cada pálpebra há o carimbo das insônias. Má
noite, por certo, a que passaram. O trabalho está todo em atraso. São poucos os
tipitis nas prensas. Os fusos estão frouxos, as chapeletas bamboleiam, a massa
não enxugou.
Não se forneia, portanto.
— Que é isto? — exclama o vizinho Juanico
entrando. — Então hoje não se põem antolhos nos animais, não se acende o forno?
Epuxa! Tanta gente e tão pouco trabalho! Temem estropiar os bois? Estrompar os
braços? Ou estão encarangados?
Ninguém respondeu à explosão ruidosa da
intimidade de Juanico.
Brígida e João lhe fizeram um aceno e ele
acompanhou-os a um quarto. O sol entrava aos borbotões por uma janela. No chão
havia um cadáver nu, hirto, nojento, e com uma expressão tão medonha, que
arrancou um grito espontâneo ao bom vizinho.
Não trocaram uma palavra. Saíram.
Brígida, ainda com vivos sinais de pavor,
contou o que já sabemos... e mais alguma coisa.
Pôs o capitel à coluna. Era o remate da
história.
Ei-lo:
— Não imagina, vizinho, como fiquei zonza
quando levantei os olhos e vi que estava a sós com ele! Todos, todos tinham
fugido!
— Eu com razão — murmurou João.
— Não, não — retorquiu com energia —, nos
homens foi uma vileza, tu sobre todos, João!... Oh! nunca hei de esquecer a
véspera de Santana!...
— Como podia valer-lhe, tia Brígida, contra o
demônio?
— Como?! Cala-te, é melhor. Com tua presença
davas-me ânimo. Não esquecerei, eu te juro, os amigos de ontem. Nestas ocasiões
é que se conhece o quilate de cada um.
— Porém, vizinha, vamos ao resto — acudiu
Juanico.
— Tem razão! Eu dizia?! Ah! deixei-o estendido
junto ao forno com o chapéu de abas largas e plumas de galo. Não o vi mais
depois. Quando o relógio da sala deu a última pancada da meia-noite, a casa
estremeceu toda a um grito feroz e terrível de Luísa.
Persignou-se a boa velha e continuou:
— Um escravo cobrou ânimo e foi vê-la. Estava
morta, e o hóspede havia desaparecido. Toda a casa encheu-se de cheiro de
enxofre. Também o tempo estiou e a noite limpou, como por milagre. Junto ao
fogo ele deixou-me um gato negro, com uns olhos! Que olhos, meu Deus! Parece
que ainda os estou vendo. Que olhos malvados!
E de novo persignou-se.
— Para enxotá-lo e afugentá-lo, queimei
alecrim... todos queimaram alecrim... rezamos... O bichano desapareceu, mas
ninguém pregou olho até agora.
— É estranho o passo! É estranho! — resmungava
entre dentes Juanico.
***
Ao romper do dia, ainda no lusco-fusco, um
trapeiro conta que vira subindo em uma nuvem um homem de chapéu de penacho e
poncho vermelho. Cavalgava um touro preto, levando na garupa uma coisa que
parecia uma mulher.
Se o trapeiro falava a verdade, eis o que não
sabemos.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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