4/15/2025

Júlio Perneta (Conto), de Exorcismo



EXORCISMO

O Vadozinho gastara a rósea mocidade a ensinar meninos, e essa recordação de um passado já longínquo enche-o de orgulho, dilatando-lhe a alma encarquilhada e velha.

Ele, que nascera no fundo de uma vila pobre, obscuramente esquecida numa esplêndida e exuberante colina, risonha sempre, sempre florida, como se a primavera ali cantasse eternamente — mas onde também santas aspirações nascem e morrem sem o batismo sagrado das realizações —, fora um dia surpreendido por seu pai, que reuniu toda a família que, também como ele, desconhecia a causa daquela reunião secreta.

A princípio olhavam-se, numa interrogação pasma e misteriosa, sem nada compreender, perspectivando lutuosa notícia, conjeturando intimamente os mais recentes fatos, até que seu pai, o velho lbraim, contraindo o sobrolho num ríctus de severidade, desfranziu os lábios grasnando com voz rouca e cansada:

— Vadô, hoje fui chamado pelo compadre Totó, e dele tive a boa notícia que foste nomeado, pelo governo, mestre-escola daqui da vila. Agora é preciso ver o que fazes. Desempenha o teu cargo de modo satisfatório para tua família e para aquele que nos protege. Vê lá, Vadozinho, se entras na vida com o pé direito; vê lá!

A família se dispersara pelo interior da casa, pererecando num contentamento enluarado em sombras de tristezas; porque, apesar de ignorante, ela tinha a intuição, que é o patrimônio das almas simples: realizar um ideal é a maior de todas as infelicidades.

O Vadozinho, de imaginação mais poética, leitor assíduo das Primaveras de Casimiro de Abreu, se deixou ficar ainda, por longas horas, num êxtase de sonho, numa espécie de saudade vaga, de recordações vaporosas que nos despertam os dias brumosos, vistos através das vidraças, dias tão sugestivos de tristezas, tão profundamente melancólicos, como se o bando fúnebre das almas torturadas vagasse errante, enchendo o mundo duma tristeza desoladora e aflita, enchendo o espaço com a liturgia sonâmbula dos gemidos.

A lembrança de que se ia realizar o seu supremo ideal deixava-o nervoso, cheio de uma ansiedade, de um alvoroço que se não pode explicar.

“Eu, mestre-escola? Não creio. Parece-me um sonho, riem-se da minha santa aspiração; são cruéis!...” E, com o olhar perdido no espaço, sem ver nada do que via, recitava a meia-voz:  

Há dores fundas, agonias lentas,
Dramas pungentes que a ninguém consola
Ou suspeita sequer!
Mágoas maiores do que a dor dum dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!

O Vadozinho estava incomodado; percorria a sala em todas as direções, repetindo sempre, cheio de alegria duvidosa:

“Eu, mestre-escola, eu, mestre-escola!”, como se quisesse corporizar essa ambição ardente de sua alma.  

Dias depois, o Vadozinho, rodeado da família, lia o ofício que trazia a sua nomeação para o cargo de mestre-escola da vila.

Foguetes estrugiram no espaço, a vila engalhardeou-se como nos dias de festa do seu padroeiro.

O Vadô, metido numa fatiota nova que mandara fazer para assistir ao casamento do Zeca Duarte, recebia as felicitações de todo o povo que, reunido em frente à casa, quebrava o silêncio religioso dos dias de trabalho com a algazarra de expressivos viva nhô Vadô, viva o mestre da escola daqui!  

E essas recordações ainda lhe enchiam a alma de uma grande saudade dolorosa. Ouvia ainda perfeitamente, distintamente, a voz daquele povo aclamando-o numa ovação de entusiasmo; porque ele ia ser o mestre dos seus filhos.

Boa gente, boa gente daquele tempo hoje quase desaparecida com seus pais na voragem fatal do cemitério!...

E para lembrar esse passado encarquilhado e velho como a sua alma, o Vadozinho reunia todas as noites a família, que o escutava cheia de respeito e admiração.

Depois iam-se todos para a roda do fogo, onde a canjica fumegava deliciosamente numa panela de barro.

Sua mulher, a velha Josefa, ocupava-se em distribuir a rapadura pelos netos, com muita igualdade para evitar conflitos ou orquestração de soluços, o que quase sempre acontece nessas ocasiões; porque o pedaço que coube ao Jango foi maior, que ela quer mais bem àquele do que a este.

Acabada a merenda, começavam as histórias de lobisomem, boitatá, almas de outro mundo, terminando quase sempre o serão em pânico geral. Até o velho Vadô, de vez em quando, olhava para os lados desconfiadamente, arrastava o cepo mais próximo do fogo, tiritando, como se o sopro gélido de alguma alma o incomodasse.

A velha Josefa, que geralmente começava as histórias, era a primeira a pedir que não contassem mais, porque depois as crianças não podiam dormir; que era melhor falar em coisas mais alegres e deixar os mortos em paz.

E, num assomo de coragem, erguia-se para ir buscar lenha no quintal; mas voltava da porta, gritando que uma mão fria lhe puxara os cabelos e vira uma alma correr arrastando um lençol branco, muito grande, muito grande.

— Vamos, vamos deitar, Vadô; isto assim não serve, depois as crianças não podem dormir.

O velho Vadô, que já cochilava, quando sentiu a mão da mulher tocar-lhe no ombro, deu um salto, e, esfregando os olhos:

— Não viste, Josefa? Não viste como me apertaram a garganta, que nem podia respirar? Quis gritar, não pude; vamos, vamos, Josefa; acho melhor irmos pousar para a casa do compadre Faustininho; isto aqui está como o diabo.

— Cruzes, não diga isso, Vadô; creio em Deus padre, você ainda chamando esse feiticeiro! Cruzes, manifica!

E ambos, joelhos em terra, muito unidos, persignavam-se três vezes, em cruz, para afugentar os maus espíritos que os perseguiam.  

O dia vinha cantando o hino triunfal de uma alvorada sadia, pela garganta dos pássaros. Em casa do Vadô tomavam o chimarrão à roda do fogo crepitante, alegres como quem desperta vindo de viagem feita em sonho ao país fantástico das fadas.

O velho Vadô, a fronte vergada sobre o peito, cismava na alma doutro mundo, naquela mão fria que lhe puxara o cabelo; e por sua imaginação desfilava todo um cortejo fúnebre de superstições. Lembrava-se de um cavalo sem cabeça que às sextas-feiras à meia-noite corcoveava no pátio da igreja; da serenata das bruxas no cemitério, que seu falecido pai sempre contava que ouvira; e estremecia de vez em quando, como se estivesse ante a pávida realidade.

A superstição faz parte da crença religiosa do nosso caboclo; ele ouve, à roda do fogo, essas narrativas contadas pelos pais e as transmite aos filhos; e assim vão, de geração em geração, corretas e aumentadas como os almanaques de notícias.

Não ser supersticioso é não crer em Deus.

O caboclo vê nas menores coisas o prenúncio de uma fatalidade. Se lhe passa por sobre a casa o tesoureiro zirrando a cauda em V, é que no céu se talha uma mortalha para alguma pessoa da sua família.

O velho Vadô ainda tinha a fronte vergada ao peso das funestas recordações, quando no portão da mangueira uma voz rude e forte bradou:

— Ó de casa!

— Seja bem-vindo, entre quem é! — respondeu a velha Josefa com a alma iluminada por um raio de dulcificadora esperança. Era o Zeca Duarte, que o velho Vadô mandara chamar para lhe relatar os fatos antecedentes.

Depois de palestrarem muito sobre o caso, ficou resolvido — por lembrança do Zeca Duarte — que ele mesmo iria buscar tio Chico, o feiticeiro, muito conhecido de todos pelo terror que inspirava, graças aos seus grandes triunfos no mistério do exorcismo.  

Tio Chico, o feiticeiro, era o terror, o assombro do povo de Caqueguera.

Quando ele passava, um velho pala de algodão enfiado — o arco-íris das listras quase consumido —, um chapéu de palha gasto pelas invernias ríspidas, as barbas brancas ancestralmente esparramadas sobre o largo peito, um murmúrio de pavor burburinhava em [233] torno, de lábios que se crispavam, num ríctus extravagante de momos, como se fora o espectro da morte que por ali passasse.

E, no entanto, todos o queriam muito.

No Caqueguera nada se fazia sem a sua aprovação.

E o velho feiticeiro, como se nada pressentisse, passava por entre aquele povo dando os bons-dias a uns, abençoando outros que se lhe acercavam beijando as magras e nervosas mãos.

Por vezes abria um bocó, que costumava trazer a tiracolo, e dele tirava uma caixa com tabaco, aspirava uma forte pitada, acendia o cachimbo de barro, já quilotado por longo tempo de serviço, e lá se ia, mato afora, à cata de ervas medicinais.

Depois de uma busca minuciosa pelos matos e vargedos, colhendo aqui uma folha verde de uma planta, excelente contra veneno; ali a raiz de uma árvore seca, para humores tiro e queda, voltava, atalhando caminho pelos carreadores. À tarde, ao regressar à casa, quase sempre trazia um grande feixe de ervas à cabeça, como um deus velho coroado de pâmpanos e parras.

As crianças lhe corriam ao encontro para descansá-lo da carga, recebendo como recompensa a bênção trêmula do velho feiticeiro.

O laboratório terapêutico dos sortilégios diabólicos do tio Chico era uma espécie de museu, cheio de curiosidades, prateleiras com alguns vidros bojudos, onde enormes jararacas, cascavéis, cobras-d’água, enrodilhadas dormiam, numa infusão de espírito de vinho, o sono dos inertes; uma variedade enorme de insetos, alfinetados pelas paredes de tábua; frascos com líquidos de diversas cores; a um canto um oratório aberto sobre uma mesa, deixando ver ao fundo, iluminado pela luz triste de uma lamparina, algumas imagens descarnadas e anêmicas de velhos santos da devoção satânica do feiticeiro. Embaixo da mesa ardiam duas velas de cera, esbatendo uma claridade amarela no semblante resignado de Santo Antônio, que jazia deitado no soalho, sobre o flanco esquerdo. E ali permaneceria até que se reatasse o casamento do Felisberto, que a Maria bugra e o João africano haviam desmanchado.

“E havia de se reatar”, porque o tio Chico o queria. Para isso ele mandara o Felisberto arranjar um objeto qualquer que fosse do uso da moça. Então haviam de ver de que lado a corda rebentaria, pois seu responso não lhe enganava; duas vezes já o tinha consultado e as coisas iam boas.  

Sol em agonia, pestanejando indeciso, de pálpebras cansadas.

A soledade! Soledade em toda a natureza. Hora de quietude, de recolhimento íntimo, de romaria das lágrimas ao passado. Ao longe o velho sino da igreja da vila soluça plangentemente Ave-Maria, num bam... bam... bam... rítmico de cântico sagrado. As cabeças se descobrem e os lábios ciciam ante o esquife do ocaso, onde o sol desaparece, amortalhado.

Tio Chico, depois da oração, ergueu-se em direção à porta que dava para a encruzilhada, espraiou a vista pela vastidão exuberante das grandes coxilhas que se estendiam à sua frente, sentou-se ao portal, quietou-se em profunda meditação. Como que naquele momento todo o seu passado inútil, toda uma vida de aventuras diabólicas lhe aparecia toldada de arrependimento, espinhozada de remorsos — dos muitos malefícios que já distribuíra pelo mundo.

Súbito, como se estivesse vendo diante de si o espectro macabro dessa lembrança, ergueu-se esfregando os olhos sofregamente e encaminhou-se para a encruzilhada cantarolando uma velha trova, muito em voga no seu tempo:  

Ela partiu e me deixou,
Ela foi comigo ingrata;
Levou tudo quanto tinha,
Por isso choro sua falta.
Ela partiu e me deixou,
Ela foi comigo ingrata.

Estrelas pestanejavam no céu azul.

Ao chegar à beira da estrada, tio Chico estacou ante um cavaleiro.

— Boas noites, tio Chico.

— Quem é?

— Sou eu, tio Chico, o Felisberto.

— Oh Felisberto, quase que não te conheci com um poncho tão grande; vamos chegar.

— Mecê parece que ia pra vila?

— Não, vim até aqui dar um passeio, esparecer um pouco. Então, Felisberto, arranjou a coisa?

— Arranjei, nhor sim: paguei pra Sabina, que foi escrava da casa, mecê conhece, e ela me arranjou um pouco de cabelo. Não sei se servirá.

— Há de servir!... Está muito bom... Agora vamos lá pra botica.

Assim chamava tio Chico ao laboratório de suas mandracas. Ergueu Santo Antônio, colocou o cabelo embaixo da imagem.

— Agora, Felisberto, você leve esta caixinha com pó, e veja se a Sabina faz a menina tomar um pouco... Isto não faz mal... Sem ela saber... No café, no mate. Bem; tem mais esta agulha que você mesmo fará passar no vestido dela; não vá se espetar, que é venenosa.

— Mas como eu posso fazer isso, tio Chico?

— Muito bem: sábado há reza na casa do Faustininho, e ela vai, então aí é ocasião. Quando se quer e se precisa, tudo se realiza, diz o velho adágio. Ora pois, faça isso que lhe digo e deixe o resto cá para o velho, porque muito logo havemos de comer os doces: meu responso nunca mentiu; hoje vou tornar a falar com ele.

E se foram para junto do fogo.

Palestraram sobre o corte da erva que o Pedro Mascate estava fazendo no erval do falecido Ludogério, e que era fora de tempo, que estava estragando; pois a erva agora começava a brotar.

— Isso é malvadeza; o espetor já recebeu queixa e com certeza...

— Ó de casa, tio Chico! — gritou uma voz do portão da mangueira.

— Seja bem-vindo; mecê entre.

— Sou eu, tio Chico. — E assomou à entrada o vulto desempenado do Zeca Duarte, compadre do velho Vadô.

— Oh! nhô Zeca, mecê por aqui a esta hora... Que novas lhe trazem?...

Vá sentando por aí... Mas o que lhe traz por estas alturas?

— Saudades de tio Chico...

Tio Chico sacudiu o corpo todo numa gargalhada franca e ruidosa, como só ele sabia dar, e ofereceu um chimarrão.

— Mas, nhô Zeca, eu estou ansiado por saber a que vem a sua visita... A alguma coisa mecê vem... Será alguma parelhinha que vai atar e precisa do velho pra arrumar a raia; ou algum amorzinho novo que não quer se ajeitar?...

— Nada disso, tio Chico; é coisa mais séria e de que só mecê nos poderá livrar.

Tio Chico a princípio o fitou com um olhar cavo e inquieto, onde se lia a astúcia perscrutadora de quem vai ouvir uma revelação criminosa.

— Só eu poderei livrar... — repetiu ele pausadamente, como quem autopsia uma frase em sílabas.

— Eu lhe conto, tio Chico.

E desfiou o rosário das atribulações por que estava passando o velho Vadô.

— E só mecê poderá livrar o compadre daqueles maus espíritos que andam por lá fazendo rumor.

Como depois de um pesadelo, a respiração de tio Chico foi larga, as narinas se dilataram para acompanhar os lábios nas gargalhadas que então sucederam a esse momento trágico de indecisão.

— Mas, nhô Zeca, há muito tempo que ai isso por lá? 

— Nhor sim; há um ror de tempo.

— Está direito. — Pensou um instante e, depois, como que tem certeza do bom êxito da empresa: — Não há de ser nada; eu vou conversar com o meu responso e amanhã imo ver isso de perto.

Ainda palestraram por algum tempo em roda do fogo, fumando, chuchurreando o chimarrão. Já passavam das onze horas quando tio Chico enterrou na cinza o guarda-fogo, que é o modo diplomático do caipira convidar o hóspede para se ir acomodar na cama, feita de cipós entrelaçados.  

Os galos, empoleirados, anunciavam a aproximação triunfal do dia com os seus festivos tatá... tatá... có... có... có... ó... alegres e prolongados, e o dia avançava destruindo a indecisão das últimas sombras de uma noite que desaparece.

Ó madrugadas esplêndidas, brancas e voluptuosas, pareceis feitas de risos de crianças e beijos de boca soberbamente amada!  

Tio Chico chuchurreava os últimos goles do chimarrão, batendo com a mão espalmada na cuia grogrolejante, num desconsolo de vazia.

— Vamos indo, nhô Zeca... Felisberto, você fica?

— Nhor não, vou até a vila.

— Então, vamo indo que eu ainda quero voltar cedo.

E puseram-se a caminho. Os animais mastigavam o freio, alegres, espichando o pescoço, dilatando as narinas, arregaçando uns beiços grossos para haurirem o ar fresco e sadio da madrugada. Quando entraram na Restinga Grande, que fica antes da vila, tio Chico apeou-se para apanhar umas esguias e espinhosas folhas de juá do mato, que há muito procurava para preparar uma mezinha.

— Isto é muito bom, é um remédio santo para dores de cabeça e cãibras de sangue — disse tio Chico mostrando aos seus companheiros as folhas esguias de juá do mato.

E continuaram a marcha. Não demorariam muito para chegar à vila; era só o tempo de pitar um cigarro.

— Home, vocês não tomam tabaco? — disse tio Chico ex abrupto aos companheiros, como pensando surpreender neles um grande desejo insatisfeito; e, apresentando a caixinha de rapé: — Olhe que este é bom; veio de Curitiba.

— Nhor não; isso faz a gente espirrar muito. Um cigarrinho é mior — disse o Zeca Duarte com aprovação do Felisberto, que sacudiu a cabeça automaticamente.

E continuaram a prosa. Tio Chico apresentava as vantagens do tabaco sobre o cigarro e os prejuízos deste para as moléstias do peito; até que a vila apareceu branca na sua esplêndida colina, de repente, por entre as últimas ramagens falhas da Restinga, como uma paisagem fantástica, vista através do cosmorama de um sonho.

— Agora, Felisberto, nós se apartemo aqui, e se você puder vá sexta-feira lá em casa.

— Nhor sim.

— Então, até sexta-feira, se Deus quiser.

— Deus lhe acompanhe.

Tio Chico seguiu com o Zeca Duarte para a casa do velho Vadô, que os esperava numa ansiedade de dúvida, no portão da mangueira.

— Bons dias, seu Vadô, voncê como vai e toda sua família? — disse o tio Chico apeando-se do lobuno, único animal que lhe restava de uma tropilha que comprara no Sul.

— Nós vamos indo como Deus é servido e a Virgem Santíssima. Vá entrando, tio Chico; deixe o animal que o compadre Zeca manda pôr na soga e manear.

Uma vez sentados na cozinha, o velho Vadô começou de explicar a tio Chico os fenômenos espíritas que o punham em alvoroço.

— Ultimamente se tem reproduzido mais vezes. Quase todas as noites há barulho, principalmente no quarto grande onde morreu uma tia velha que foi de meu falecido pai. Quebram a louça, derrubam bancos e, quando se vai ver, no forro da casa, dão uma gargalhada medonha, como se fosse uma suindara que estivesse ali. Não se pode viver mais nesta casa; está mal-assombrada. Eu tenho ficado mais velho que realmente sou. A Josefa, coitada! Vive sempre chorando, agarrada aos netos; tem medo que sejam bruxas e que levem alguns deles. Então o compadre Zeca lembrou que tio Chico... podia nos livrar disto; tem viajado muito, há de saber alguma coisa que possa acabar com esta penitência.

Tio Chico, de pernas traçadas, o queixo apoiado a uma das mãos, escutava com a gravidade que a revelação fantasmagórica exigia.

Às vezes, como se compreendesse a causa daquilo tudo, como se tivesse certeza do bom êxito da empresa, deixava escorregar por entre a espessura florestal das barbas brancas um brando sorriso de triunfo; depois, destraçando as pernas, aprumando o busto, distendendo os braços secos, num espreguiçamento de lombeira, ergueu-se.

— Não há de ser nada, não há de ser nada; eu vou fazer um serviço, para depois ver se as almas do outro mundo ainda fazem barulho. Fé em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que tudo se faz. Voncê mande pedir a seu vigário um pouco de água benta, e uma vela que haja servido na missa de Nossa Senhora, um pouco de incenso, e um raminho de alecrim e arruda.

O velho Vadô, com a esperança de que a paz voltasse de novo aos seus lares, foi em pessoa falar com seu vigário para obter tudo que tio Chico precisava; e, com pouca demora, voltou com as disposições do velho feiticeiro todas cumpridas.

Iam dar começo ao exorcismo. Tio Chico, com a solenidade de [239] um padre recomendando um defunto, aspergia água benta por todos os cantos da casa, monossilabando palavras, ora calmo, ora enérgico, como um CUMPRA-SE de repartição pública.

O velho Vadô, cabisbaixo, acompanhava-o com um caco de telha onde ardiam incenso e arruda, defumando os lugares benzidos pelo feiticeiro.

A família do velho Vadô, que assistia à cerimônia de satanismo, estava trêmula, pálida de pavor.

Depois de percorrerem toda a casa, tio Chico, escarrando a um canto, pronunciou a sentença definitiva:

— Almas, voltai para o céu; espíritos maus, ide para as profundezas.

E mandou cavar um buraco junto à porta do quintal para enterrar o resto de água benta e incenso.

Depois, benzeu o velho Vadô e a família, bebeu meio quartilho de vinho branco, por causa de uma espécie de delirium tremens que ataca o exorcista depois de tais operações; porque todo o malefício que estiver no corpo da pessoa benzida passa para o do benzedor.

Ainda palestraram por muito tempo. Quando o dia começava de fechar a grande pálpebra, cansada de luz, tio Chico seguiu para casa pela solitária estrada da Restinga Grande, vergado sobre o lombo do lobuno, modulando, a meia-voz, um canto enternecido, cheio de saudade:  

Ai, minha vida doutrora,
Ai, meus queridos amores,
Tudo, tudo foi-se embora,
Só me ficaram as dores.
Ai, minha vida doutrora,
Ai, meus queridos amores.

Às vezes interrompia o canto e quedava-se numa luta interna de recordações, que não procuraremos indagar, porque há dores íntimas que não se revelam.

A casa do velho Vadô, depois do benzimento, voltou ao primitivo estado de tranquilidade e de paz; nem o ruído trêfego dos camundongos quebrava a religiosidade daquele silêncio.

Voltaram os serões à roda do fogo, onde o velho Vadô contava à família os episódios da sua mocidade. Só não voltaram mais as histórias de almas do outro mundo.

E creio que o Felisberto, graças às mandracas de tio Chico, está casado, gozando a lua de mel de abelhas entre um sorriso de amor e um beijo de gratidão.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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