HERÓI
Naquela hora de um ocaso manchado a sangue, no
silêncio do galpão, entre largas baforadas de cigarro “crioulo” e lentos
chupões do excelente “amargo” de “barbaquá”, Amâncio rematava a sua narrativa,
olhando, evocativamente, o fundo deserto da estrada que lá adiante morria entre
cortes e atalhos.
Era uma história comovedora, passada na
campanha imensa, nos últimos dias da sangrenta revolução “farroupilha”.
Terminara-se o combate de “Ponche Verde”, onde
as hostes heroicas da cavalaria de Canabarro, depois de um encontro violento, a
cargas de lança e de fogo, cantaram vitória sobre as forças legalistas ao mando
de Bento Manoel, o valente guerreiro bandeador que tanta perseguição
deitara à república constituída de
Piratini. Nesse dia memorável, um dos últimos feitos luzidos da longa campanha
revolucionária, Januário Pedroso, um tenente de coluna do primeiro,
desgarrara-se da grande parte da gente que, formando a retaguarda da força,
marchava tomando distância, quebrando altiva, orgulhosa, embora exausta, um
repontão de coxilha, prolongando a marcha sem uma direção determinada, até onde
pudessem encontrar um pouso pacífico para acampar, sem o cuidado dos assaltos e
emboscadas temerosas. Era o que cumpria fazer, com cautela, depois da notícia
rapidamente espalhada de que Caxias mandaria reforço incontinente, para
oferecer combate decisivo àquela tremenda campanha travada em dez anos de
heroísmo e loucura. Mas o guapo tenente, sempre alegre e garboso, em cima do
cavalo ferido, pouco preocupou-se da distância tomada pelos companheiros. Havia
tido permissão do comandante em chefe para, com o seu cabo ordenança, ficar
atrás, a fim de arrebanhar cavalos e patriotas extraviados no ímpeto formidável
da refrega.
Todavia, grande parte dos inimigos não se
dispersara. Passado o momento terrível, conjugaram-se alguns pelotões de
cavalaria. Ao longe já se ouvia o estampido das garruchas, o estrépito da
cavalhada rebelde, em plena liberdade pampiana, na vasta solidão das coxilhas
ondulantes, onde jorrara sangue em meio dia de carnificina. Era uma força que
se agitava, levantando poeira, em ânsia de vindita. A ordenança que acompanhava
o tenente revolucionário, lembrou-lhe o perigo, guasqueando o matungo abombado.
— Era bom atropelar. O seu tenente que se
cuidasse, aquilo eram “bichos” na certa…
Mas o oficial gracejou contra o mau prenúncio
do camarada:
— Ora chô! Aquilo não era nada; quando muito
alguns guaipecas perdidos… Depois, coragem, caramba! Que fosse…
A massa, à distância, tomava já uma forma
definida. Era realmente um esquadrão de lanceiros, a trote largo. O entardecer
caía, lento e úmido, espalhando pelas solidões uma brutalidade de inverno
carregado de vento e chuva.
As perspectivas sepultavam-se em brumas densas
e o campo todo era uma vasta cerração, diluindo as paisagens e os vultos
errantes dos animais.
A ordenança demorou ainda, para trás, o olhar
ansioso, de uma acentuada timidez. Os “bichos” se aproximavam em tropel,
volteando os lançantes da estrada. Ainda vinham longe. Mas o velho soldado de
35 quis afastar o superior daquelas frias ideias de descaso e de valente,
lembrando-lhe o próximo termo da luta, coisas enternecidas do lar, o riso doce
das crianças, a alegria comovedora da mulher saudosa, à frente do rancho, de
olhos rasos de emoção, com os filhos agarrados à saia, esperando o marido de
volta dos campos de combate, são e salvo, carregado de honras e glórias, livre,
talvez, para sempre, da fúria impetuosa dos entreveros…
— Qual nada! Isso são coisas... Inda tenho
mostarda para muito tobiano sotreta — respondeu Pedroso, abrindo um largo
sorriso de indiferença nos lábios tostados pelo sol e pelo fogo. Acima de tudo
estava a liberdade dos pagos, do altivo fogão gaúcho. Todo o seu íntimo
mostrava o mesmo ardor de sempre, uma vontade decisiva de luta, de encontros
decisivos, engrandecendo-se, cada vez mais, em favor da causa revolucionária
que abraçara, desde o dia em que abandonou, por tempo incerto, a sua
estanciola, no município de Bagé. O sangue da revolução, o ideal de uma
liberdade absoluta, anunciada pelos arautos gauchescos, de pago em pago, de
coxilha em coxilha, de serra em serra, emancipando o torrão querido da vontade
prepotente do Império que estendia os seus braços de ferro até a última linha
das fronteiras do sul, alteavam-lhe na alma indomável de revel a chama da
revolta, o sonho da conquista, depurandose, como resultado de todas as suas
energias, um caudilho submisso, às ordens de Bento Gonçalves e Canabarro. Com
este último tomara parte no cerco de Rio Pardo, na expedição de Lages,
afrontando a iminência dos perigos, rompendo obstáculos de toda sorte, sempre na
vanguarda das forças, ao lado do velho herói republicano. Naquele combate de
“Ponche Verde” portara-se, então, com inexcedível denodo, até a última carga de
lança contra as hostes inimigas, estendidas em linha de fogo cerrado.
O esquadrão de legalistas aproximava-se, pouco
a pouco, picando os destroços da força vitoriosa que marchava sem ordem, como
de volta de uma derrota. E ele não compreendia os motivos daquela perseguição
depois de tamanha tunda que levaram.
Procurou com calma verificar a arma que trazia
no coldre, quando ouviu, já próximo, a primeira detonação da espingarda
inimiga. Não havia mais dúvida: eram “eles”, realmente. Já não lhe restava mais
tempo a perder, tanto fora o descuido naquele resto de dia, à procura de
extraviados e feridos no meio do campo. Puxou da sua arma, verificou a carga, a
estabilidade do gatilho e atropelou o cavalo.
Os legalistas já vinham a cem passos, quando
muito; os companheiros distanciavam-se a mais de meia légua. O perigo surgia
intransponível. Contudo, “aquilo não havia de ser nada”, dizia, e para a
retaguarda alvejou duas vezes com a arma. Súbito, as rédeas lhe fugiram das
mãos, vergando o corpo com vago gemido, na testeira do lombilho aperado. Um
ferimento! A consequência fatal de um descuido!... A ordenança, esporeando o
matungo, à rédea solta, precipitou-se, à frente, aos gritos de “já se vieram!”.
Só então, quando se sentiu traído pela
imprudência da sua não desmentida coragem, foi que Januário Pedroso
compreendeu, claramente, a seriedade do perigo. O esquadrão aproximava-se em
fragor, para cair sobre aquele homem só, abandonado na coxilha deserta. Outros
tiros dispararam, errando o alvo. Uma bala zuniu-lhe pela orelha. Argamassou-se
ao cavalo; era um vulto só, correndo, desenfreadamente; já não havia mais tempo
de carregar a pistola. Uma resolução brusca fê-lo parar subitamente. Sabia que
dali não escaparia. Era chegada a ocasião: restava-lhe morrer como homem… A
certeza da morte o convenceu da inutilidade da fuga. Nenhum companheiro tinha
que corresse em seu auxílio. O próprio camarada de ordens fugira em melhor
cavalo, diante do primeiro sinal da força que se aproximava. Desembainhou a
espada com a mão ferida e apeou-se do “douradilho” exausto, seu fiel
companheiro de guerra, também, como ele, vítima do alvo certeiro das balas. E,
foi uma luta tremenda e encarniçada! Todo o esquadrão ali estava, cercando-o,
num delírio inaudito.
— Matem-me como homem, bandidos!
Cruzou o ferro com os primeiros que se
achegaram, numa destreza única, que surgia momentânea e violenta, obrigada pelo
instinto da conservação até os últimos momentos da vida. A espada vibrou várias
vezes, várias vezes recuou, ferindo, defendendo-se, com indomável coragem.
Conheciam-lhe o nome valente e respeitado em toda a campanha revolucionária.
Por isso mesmo cuidavam todos os seus passos, até aquele encontro cruel, onde o
apanharam, já ferido, mas lutando, lutando sempre, até onde a sua força
conduzisse.
— Comigo é isto aqui no mais — gritou um
oficial, e um tiro certeiro o jogou ao solo, num arranco desesperado de vida.
Entre bravos e vivas, um sargento lanceiro cravou-lhe a lança na pupila
direita, — e de novo seguiram à cata de outros inimigos desgarrados no esfumado
traiçoeiro da tarde que morria.
Retorcendo-se, num retesamento de nervos, em
espasmos mortais, convulsionando-se, dolorosamente, na hemorragia das feridas,
o velho tenente republicano ainda balbuciou um “viva” à liberdade gaúcha, um
“viva” soturno, cavo, saindo das profundidades dilaceradas de sua alma
patriota, levada até às raias dos heróis idealistas e medievos, pela alucinação
de uma esperança, pela exaltação de uma crença impotente…
Uma ânsia de desespero arrancou-lhe um último
suspiro, morrendo com o seu próprio sonho de liberdade no fundo abandonado da
coxilha, ao lado do seu velho cavalo espingardeado também pelo desespero das
cargas inimigas!
* * *
Um a um, baixavam, dias depois, os corvos,
para o repasto que oferecia aquele soldado infeliz. Eram amontoados tumultuosos
de sombras negras a precipitarem-se no cadáver, destruindo, a bicadas, o corpo
que se putrefazia ao sol, sobre a terra que foi seu berço e seu túmulo.
E aquela reunião de asas sinistras,
esvoaçando, ali ao lado, na erma solidão do pampa, formava uma estranha
bandeira negra, cobrindo um herói anônimo num adeus derradeiro…
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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