GUPEVA
Era
uma bela tarde; o sol de agosto animador e grato declinava já seus fúlgidos
raios; no ocaso ele derramava um derradeiro olhar sobre a terra e sobre o mar,
que a essa hora mágica do crepúsculo estava calmo e bonançoso, como uma criança
adormecida nos braços de sua mãe.
Seus
raios desenhavam no horizonte as cores cambiantes do prisma e desciam com
melancólico sorriso às planuras da terra e à superfície do mar.
Uma
tarde de agosto nas nossas terras do Norte tem um encanto particular; quem
ainda as não gozou não conhece na vida o que há de mais belo, mais poético, não
conhece a hora do dia que o Criador nos deu para esquecermos todas as ambições
da vida, para folhearmos o livro do nosso passado, buscarmos nele a melhor
página, a única dourada que nele existe, e aí nos deleitarmos na recordação
saudável da hora feliz da nossa existência: aquele que ainda a não gozou é como
se seus olhos vivessem cerrados à luz; é como se seu coração empedernido nunca
houvera sentido uma doce emoção, é como se à voz da sua alma nunca uma voz
amiga houvera respondido.
O
que a gozou, sim; o que a goza, esse adivinha os prazeres do paraíso, sonha as
poesias do céu, escuta a voz dos anjos na morada celeste; esquece as dores da
existência e embala-se na esperança duma eternidade risonha, ama o seu Deus e
lhe dispensa afetos; porque nessa hora como que a face do Senhor se nos
patenteia nos desmaiados raios do sol, no manso gemer da brisa, no saudoso
murmúrio das matas, na vasta superfície das águas, na ondulação mimosa dos
palmares, no perfume odorífero das flores, no canto suavíssimo das aves, na voz
reconhecida da nossa alma!
Era
pois, como dissemos, uma bela tarde de agosto, e dessa encantadora tarde
gozavam com delícias os habitantes da Bahia, nessa época bem raros, e ainda
incultos, ou quase selvagens. O disco do sol amortecido em seu último alento
beijava as enxárcias dum navio ancorado na baía de Todos os Santos, a cuja
frente eleva-se hoje a bela cidade de São Salvador, e afagava mansamente as
faces pálidas dum jovem oficial que, à hora do crepúsculo, com os olhos fitos
em terra, parecia devorado por um ardentíssimo desejo, por um querer que a seu
pesar lhe atraía para onde quer que fosse todos os sentimentos da sua alma.
Sonhava
acordado; mas era esse sonhar desesperado, ansioso, frenético como o sonhar dum
louco; era um sonhar doído, cansado, incômodo, como o sonhar do homem que já
não tem uma esperança; era o sonhar frenético de Napoleão nas solidões de Santa
Helena, era o sonhar doído de Luís XVI na véspera do suplício. Encostado ao
castelo da popa, o mancebo parecia nada ver do que lhe ia em torno, nem mesmo o
sol, que dava-lhe então seu derradeiro e melancólico adeus, escondendo seu
disco nas regiões do oceano.
Patética,
sublime e quase misteriosa era a despedida desse sol, brincando tristemente nos
cabelos acetinados do moço oficial e fugindo vagaroso, e de novo voltando,
envolvendo-o pelas espáduas, como em um último abraço, e depois mergulhando-se
pressuroso nas trevas, como um amigo que junto do sepulcro beija as faces
geladas e lívidas do amigo e corre com a saudade no coração a cobrir seus
membros de lutuosas vestes.
O
navio em que acabamos de ver esse moço, que ainda mal conhecemos, era O Infante
de Portugal, vaso de guerra que havia trazido à Bahia Francisco Pereira
Coutinho, donatário daquela capitania, depois que a célebre Paraguaçu, princesa
do Brasil, cedera seus direitos em favor da coroa de Portugal. O Infante
acabava de receber as últimas ordens de Coutinho e velejava no dia seguinte em
demanda do Tejo.
Voltemos
pois ao mancebo, que, conquanto fosse noite, permanecia ainda no mesmo lugar em
que o encontramos. Em seus grandes olhos negros transparecia todo o
desassossego dum coração agitado. Sua idade não podia exceder a vinte e um
anos. Era jovem e belo; o uniforme de Marinha fazia sobressair as delicadas formas
do seu talhe esbelto e juvenil.
Mas
as trevas eram já mais densas, e o coração do moço confrangia-se e redobrava de
ansiedade. Seus olhos ardentes pareciam querer divisar através dessas matas
ainda quase virgens um objeto qualquer. Sem dúvida nesse lugar outrora
solitário, hoje populoso e civilizado, havia alguma coisa que o mancebo amava
mais que a vida, em que fazia consistir toda a sua felicidade, resumia todo o
seu querer, todas as suas ambições, toda a sua ventura. Havia aí algum ente
extremamente amado: alguém que atraía para si todas as faculdades, toda a alma
do mancebo europeu.
—
Que tens tu, meu querido Gastão? — interpelou-o um outro jovem oficial,
tocando-lhe amigavelmente no ombro. — O que te aflige? Estás triste!!…
O moço interrogado estremeceu ligeiramente, como quem desperta de um profundo
sono; e, fitando o seu interlocutor, com pungente sorriso, disse:
—
Triste… sim, Alberto, contrariado, meu caro amigo.
—
Tu, meu caro? E por quê? — tornou-lhe aquele a quem este designara Alberto. — O
que te aconteceu, caro Gastão?
—
Sairemos amanhã!... — respondeu Gastão. Nestas duas únicas palavras
encerrava-se tudo quanto o homem pode sofrer de mais doloroso, amargo e acerbo
na carreira da vida; e por isso o acento com que as proferia calou n’alma de
Alberto. Este contemplou-o por algum tempo com uma curiosidade travada de
surpresa e, sem poder compreender o acento de tais palavras, nem qual a causa
de tão grande amargura, disse-lhe:
—
É isso o que te contraria e te aflige?!...
Gastão
ergueu a fronte até então abatida e, deixando cair suas vistas sobre seu amigo,
murmurou:
—
Alberto, para que me interrogas? Podes acaso compreender o martírio do meu
coração!?
—
Ah! pensas nela?!… — exclamou sorrindo-se o jovem Alberto. — Ora, Gastão, pelo
céu! Meu amigo, creio que estás louco.
Gastão
abaixou novamente a cabeça e balbuciou:
—
Embora… mas… era um delírio, que poderia ter suas consequências.
Alberto
pensou nisso e procurou dissuadi-lo.
—
Gastão — disse, procurando tomar-lhe entre as suas mãos —, que loucura, meu
amigo, que loucura a tua apaixonares-te por uma indígena do Brasil; por uma
mulher selvagem, por uma mulher sem nascimento, sem prestígio: ora, Gastão, sê
mais prudente; esquece-a.
—
Esquecê-la! — exclamou o moço apaixonado. — Nunca!
—
Tanto pior — tornou-lhe o outro —, será para ti um constante martírio.
—
E por quê?
—
E por quê?! Porque ela não pode ser tua mulher, visto que é muito inferior a
ti; porque tu não poderás jamais viver junto dela a menos que intentasses
cortar a tua carreira na Marinha, a menos que desprezando a sociedade te
quisesses concentrar com ela nestas matas. Gastão, em nome da nossa amizade,
esquece-a.
—
Pede à Terra que esqueça seu constante movimento, ao vento que cesse o seu
girar contínuo, às flores que transformem seus odores em pestilentos cheiros,
às aves que emudeçam as galas da madrugada — murmurou Gastão, com melancolia.
Alberto
guardou silêncio por alguns minutos, e de novo disse:
—
Louco! louco! Gastão, meu amigo, traga até às fezes o teu cálice de amargura;
mas faze o sacrifício do teu amor em atenção a ti mesmo, ao teu futuro…
—
O meu futuro é ela… — replicou Gastão, interrompendo seu jovem amigo.
—
Primeiro-tenente de Marinha hoje, meu querido Gastão, breve terás uma patente
superior que…
—
Que me importa a mim tudo isso, Alberto, acaso isso pode indenizar-me da dor de
perdê-la? Alberto, tu não és francês, o teu clima cria almas intrépidas,
corações fortes, ou rudes ardendo sempre, mas em fogo belicoso: o sangue que
herdaste de teus avós gira em teu peito com ambição de glória, de renome; são
nobres as tuas ambições, eu as respeito: porém as minhas são destituídas de
toda a vaidade… As minhas ambições, o meu querer, o meu desejo resume-se todo
nela. Para que me falas das grandezas deste mundo? Alberto, eu as desprezo, se
não forem para repartir com ela.
—
Todos nós — disse-lhe Alberto — temos a nossa hora de loucura, também o
português, meu caro, a experimenta às vezes, não obstante como dizes, o nosso
clima gera corações mais rudes; mas, Gastão, teus pais!
Queres
acaso afrontar a maldição paterna?
—
Sim — tornou o jovem francês —, ainda quando ela houvesse de cair sobre minha
cabeça, eu não poderia esquecer a mulher a quem dedico todo o meu coração.
—
Decididamente perdeste o juízo, meu caro amigo — disse Alberto comovido. — Que
pretendes, Gastão, fazer dessa mulher?
—
Amá-la, meu Alberto, como nunca se amou mulher alguma.
—
O amor, Gastão, é como um meteoro luminoso, é uma aurora boreal dos trópicos,
sua duração é de momento.
—
Não — redarguiu-o triste —, sinto que hei de amá-la enquanto me animar um átomo
de vida, sinto que seu nome será o derradeiro que hei de pronunciar à hora da
morte, sinto que…
—
Cala-te, Gastão, cala-te! — retorquiu-lhe o jovem português. — Teus desvarios
me causam um pungente sofrer.
—
E que me importa isso? — disse friamente o moço francês. — Sabes acaso a
grandeza do meu sofrimento? Sabes, bem conheces, e não te apiedas de mim.
—
Ingrato! — exclamou comovido o jovem oficial português. — Gastão, em nome do
céu, recompõe o teu juízo, não penses mais nessa mulher. Eia, promete-me, e eu…
—
É impossível, Alberto. Impossível, meu amigo. Oh! se soubesses… Alberto, eu a
tenho aqui no coração. É ela a mulher dos meus sonhos da adolescência, é a
visão celeste e arrebatadora da minha infância, é o anjo que presidiu o meu
nascimento. Alberto, quem a poderá resistir? Louco o que a vendo possa deixar
de amá-la; louco o que a conhecendo não lhe render eterna vassalagem. Anjo na
beleza e na inocência, anjo na voz, nas maneiras, é ela superior às filhas
vaporosas da nossa velha Europa. Épica é seu nome. No seu rosto, Alberto, se
revela toda a candura da sua alma e toda a singeleza dos costumes ainda tão
virgens da inculta América. Onde está pois o meu crime em adorá-la? Seus grandes
olhos negros de doçura inexprimível falam à alma com suavíssima poesia: são
arpejos da lira harmoniosa, ou notas d’anjos em torno do Senhor. E esse olhar
seu exprime um quê de indizível pureza que obriga a adorá-la como se adora a
Deus. Alberto, de joelhos suplicarias a essa mulher angélica, se a visses,
perdão de a não teres amado mesmo sem conhecê-la, desde o dia em que começou a
tua existência.
Alberto
suspirou com desalento: sentia-se fraco para lutar com o coração de seu amigo.
Gastão compreendeu o pesar que, malgrado seu, causava ao moço português, e
disse:
—
Perdoa-me, meu caro amigo, perdoa-me se te hei magoado, sofro… tanto.
Alberto
não achava uma palavra para exprimir sua angústia; tomou então as mãos a seu
amigo, apertou-as com efusão, e depois, apertando-as contra o seu coração, a
custo exclamou:
—
Meu amigo, meu irmão, fizeste bem em confiar-me tuas mágoas, eu te ajudarei no
caminho espinhoso e direi do que tens a percorrer de ora em diante. Eia,
coragem, serei o teu cireneu.
Mas
o moço francês não compreendeu uma só das palavras de Alberto e, julgando que
este, mais compadecido, lhe aplainava a senda dos seus amores, ergueu para ele
uns olhos onde havia gratidão e amizade, e disse-lhe:
—
Então é verdade, Alberto, que tens um coração?
—
E não adivinhavas tu nos transportes de nossa amizade?
—
Obrigado! — exclamou com efusão o jovem francês. — Alberto, meu Alberto,
faze-me hoje um favor, um único; prometo-te que será o último que te peço.
—
Fala, mas não peças coisa que se assemelhe a uma loucura.
—
Cruel! Chamas loucura ao sentimento mais santo que Deus implantou no coração do
homem!…
—
Fala; vejamos o que exiges de mim.
—
Bem sabes, Alberto, que devo entrar hoje de quarto… — Queres que entre eu em
teu lugar?
—
Sim, quero que entres em meu lugar.
—
Pois não, meu caro.
Gastão
envolveu o amigo entre seus braços: era a expressão sincera da sua gratidão.
Guardaram um momento de silêncio, só interrompido pelo murmúrio das vagas que
se chocavam e pelo sibilar do vento nas enxárcias.
—
Que pretendes fazer desta noite, Gastão? — interrogou o jovem português.
—
Não o adivinhaste já, meu querido Alberto? Ah! Ela espera-me; eu lho prometi.
—
Compreendo-te! Gastão, o teu delírio, meu caro amigo, te faz ingrato. És surdo
à minha voz, insensível aos extremos da amizade… Vai, Gastão, vê essa mulher
cuja vista te fascinou, como fascinam as cobras do seu país a míseros pássaros.
Tu também és um pássaro, nascido em regiões estranhas, que alevantaste o teu
voo, atravessaste os mares e pousaste amoroso nas franças do pau-d’arco
americano; Gastão, não te deixes atrair da serpente venenosa: goza um momento
disso, a que chamas a tua felicidade; mas desprende novamente o voo. Gastão, eu
te aguardo só antes do romper da alva. Jura-me pela honra.
—
Juro-o — exclamou o moço francês, com acento doloroso, com indefinível
expressão.
O
comandante estava em terra: Alberto acenou para Gastão uma lancha.
Então
os dois mancebos, como se naquela despedida se dissessem um adeus eterno, de
novo em um fraterno amplexo uniram seus jovens corações, onde tão diversos
sentimentos se cruzavam.
E
a lancha, cortando vagarosamente as águas, deixava após si estreito e espumoso
rasteiro. Cinco minutos depois abicou em terra.
Alberto
seguiu-a com o coração; depois um profundo suspiro lhe fugiu do peito, que, mau
grado seu, gotejava sangue.
*
* *
E
àquela bela tarde sucedeu uma noite escura e feia. A atmosfera estava baixa e
carregada, as nuvens ameaçavam tempestade. O mar quebrava-se raivoso nas
praias, e o vento gemia nas solidões das matas. Entanto Gastão, ébrio de
prazer, acabava de transpor o pequeno lençol movediço que o separava da terra,
dessa terra querida, onde ia encontrar em breve a mulher de suas doidas
afeições. As nuvens arqueavam-se negras sobre os outeiros, por entre os quais
insinuava-se, louco de esperanças, o jovem adorador da filha dos palmares.
Corria
o moço afadigado por entre as árvores copadas da velha América: arfava-lhe o
peito, as artérias latejavam-lhe, o sangue afluía-lhe para o rosto, o suor
caía-lhe em bagas, da fronte para o peito. Com que rapidez, com que afã
devorava ele o espaço que o separava ainda do lugar da entrevista… Tardava-lhe
a hora da ventura.
Por
essas sendas tortuosas, por essas brenhas quase virgens de uma habitação do
homem civilizado, por esses lugares que, já não tendo aqui e ali a selvagem
beleza de uma mata virgem, não tinham em parte alguma o caráter duma povoação,
corria loucamente o jovem colega de Alberto, sem outro pensamento mais que o de
rever sua idolatrada Épica. Se havia ainda um mundo, além do lugar dos seus
sonhos, Gastão havia-o inteiramente esquecido: o amor do seu coração
absorvia-lhe todas as faculdades. Aos vinte e um anos o homem não tem o coração
embotado; o excesso de paixões mal sofreadas, ainda nessa idade juvenil, não o
tem aviltado e enegrecido. O amor que abrasa o coração nessa idade, a mais bela
talvez da nossa vida, é um amor puro como os afetos de uma criança, é o amor
sincero como o beijo de um irmão querido, é um amor santo como um hino sacro
entoado pelos anjos do Senhor.
O
amor nessa idade é uma emanação do céu, é um concerto divino, noite e dia a
vibrar no coração do homem; e, ao som desse dulcíssimo concerto, a mente
exalta-se e vai tocar ao infinito, bebe deleites que purificam a alma; sonha
enlevos virtuosos; goza mimos de um sentir indefinível, desses que o mundo só
concede uma vez, desses que só no viver dos anjos se goza eternamente. Ah! se o
homem pudesse em toda a sua vida amar assim tão pura e santamente, com esse
amor que então animava o coração do jovem Gastão, para que havia Deus criar um
outro céu, criar outras delícias para os seus escolhidos?! O céu seria o mundo,
e nós os bem-aventurados. Mas, mesquinhos e míseros filhos de Adão, essa hora
de mágicos enlevos não a tornareis a achar!… Esse oásis que vos deleitou
desapareceu para sempre.
Foi
um bafejo divino na hora da tormenta; foi uma gota de orvalho sobre a erva
emurchecida pela calma. Agora segui o vosso deserto; árida e espinhosa será a
vossa senda. Abrasar-vos-á o simum, e
uma só fonte d’água fresca não encontrareis em vossa peregrinação que vos
suavize o requeimar do sangue. E depois deste afã, deste doloroso caminhar, no
extremo já, vereis por desafogo de tantas dores o antro escuro e úmido de uma
sepultura. Não recueis, oh! não: aí está o esquecimento de uma existência
amargurada, aí o descanso, o repouso, a felicidade.
Ao
cabo de algumas horas o jovem oficial se havia entranhado num bosque solitário
e ermo. À direita, a uns cem passos de distância avultava uma cabana cujo teto
coberto de pindoba era sombreado por palmeiras simultâneas, que lhe davam um
aspecto poético e melancólico; à esquerda erguia-se um pequeno rochedo. À sua
base serpeava uma ligeira corrente, deslizando suas mansas águas por sobre a
areia e pedrinhas; espreguiçando-se como uma criança no seu leito, sumia-se,
murmurando no meio do bosque. Havia aí um quê de indefinível doçura, uma
melancolia meiga e suave, que se assemelhava, se harmonizava, se casava com o
coração de Gastão, onde havia sensações deleitáveis, como os sons longínquos
duma harpa que geme na solidão. O mancebo galgou a eminência com presteza. Dali
seus olhos poderiam descobrir Alberto, ainda pensativo e desgostoso, se nessa
hora ele se lembrasse de alguém que não fosse a mulher por quem esperava, e se
a escuridão da noite o permitisse.
Havia
um negrume espantoso, porém a natureza ainda estava calma; a tempestade que
ameaçava não prometia ser breve.
Gastão
contava os minutos pelas palpitações do seu coração. Era a primeira vez que ia
encontrar-se com Épica face a face na escuridão da noite; era a primeira vez
que ia achar-se com ela só, no cimo dum outeiro, entre o céu e a terra, longe
das vistas indiscretas do homem, longe das admoestações de Alberto, tendo por
conselheiro só seu coração, por testemunha só Deus! Gastão bebia as delícias do
paraíso. Esperou, e esperando cedeu à meditação.
Não
haverá aí um só homem que tenha sentido em seu coração o fogo dum primeiro amor
que não adivinhe o doce meditar desse mancebo de coração ardente e alma apaixonada.
Gastão aspirava os perfumes do céu, embalava-se nas fagueiras esperanças dum
amor sem limites.
Depois
de tudo isso a morte; porque o único gozo que semelha aos dos anjos teria então
passado. Assim pensava o moço francês, e esse pensamento não podia ser um erro.
Errar por muito tempo, entre o amor e a sepultura, é um tormento
inqualificável, é morrer sem esperança da salvação da alma, é a tortura da
Idade Média não adoçada pelo cutelo do algoz. Gastão, pois, pensava bem; e
qualquer outro em idênticas circunstâncias pensaria como ele. Do mundo o moço
só almejava uma coisa, uma somente; do mundo ele só queria aquela mulher, que
ele aguardava com frenesi, aquela mulher, que ele amava com delírio, que
idolatrava loucamente. Por ela Gastão daria toda a sua vida, todo o seu sangue,
sua alma, seu sossego, toda a felicidade de um futuro que se lhe antolhava
risonho.
—
Sim — exclamou ele, acordando do seu sonho mentiroso, respondendo ao seu
próprio pensamento —, viver ou morrer com ela. Que me importa a mim os prejuízos
do mundo? Haverá acaso no mundo mulher mais digna do meu amor?!… Épica! Épica!
eu te adoro, Épica, anjo dos meus sonhos, visão encantadora, que afaga e adoça
o amargor dos meus dias… serás acaso uma ilusão?!…
Um
leve murmúrio, um rumor vago, como a bulha sutil de passos cautelosos,
interrompeu-o: ele julgou esse leve ruído a aproximação da mulher amada;
estremeceu de amor, e correu ao encontro dessa visão angélica.
E encontrou-se face a face com um homem. Gastão recuou um passo e levou a mão à
sua espada.
—
Quem sois? — perguntou-lhe em português, com acento de cólera mal reprimida.
A
noite era tão escura, que Gastão mal poderia reconhecer este homem, ainda que
fosse ele o seu melhor amigo.
—
Quem sois? — repetiu o moço estrangeiro. — Pelo céu ou pelo inferno, dizei-o.
—
Quem sou? — respondeu o recém-chegado, com voz grave, magoada e horripilante. —
Desejais conhecer-me? Breve sabereis quem sou.
—
Depressa, senhor, depressa — tornou-lhe Gastão —, ou livrai-me da vossa
presença.
—
Conheço, mancebo, quanto vos deve ser importuna a minha presença neste lugar;
mais tarde, porém, reconhecereis que não sou aqui o mais importuno.
Gastão
julgou-se em face dum rival, e sua cólera redobrou.
—
E insistes em não dizer quem sois, nem a que vindes?
—
Não insisto, não, senhor, quero responder pontualmente às vossas perguntas, não
obstante ser quem devia interrogar-vos.
—
Vós!... e com que direito?
—
Com o mesmo, mancebo, com que me interrogais.
—
Zombais acaso de mim? — disse Gastão no auge de desesperação. — Ponde-vos em
guarda: não quero ser um assassino.
—
Esperai, senhor, esperai — replicou o desconhecido, com calma. — Escutai-me: eu
sou tupinambá — continuou —, sou o cacique desta tribo; sou, finalmente, o pai
de Épica. Isto espanta-vos?
—
Traição! — exclamou Gastão, desembainhando a espada, que cintilou na escuridão
da noite.
—
Enganai-vos, senhor, ninguém vos traiu. Eu sei tudo: vossas palavras, eu as
tenho escutado.
—
Mentis, maldito tupinambá.
—
Não minto, não: dia por dia hei seguido vossos passos e ouvido vossa
conversação com a minha pobre Épica. Ainda ontem lhe dizias ao pé da cabana de
seu velho pai: “Amanhã, quando a lua estiver em meio giro, eu te aguardarei no
cume do outeiro”.
—
Espião infame! — exclamou o moço desatinado, arremessando-se contra o cacique.
—
Esperai, mancebo, esperai — disse-lhe o índio —, juro-vos por Tupã que hei de
matar-vos ou morrer às vossas mãos, e isto antes do meio giro da lua; porque a
essa hora Épica, a inocente Épica, virá louca correndo ao vosso apelo, e só um
de nós a deve receber. Se fordes vós, ao menos eu não testemunharei semelhante
aviltamento.
—
Calai-vos — disse Gastão, puxando novamente pela espada.
O
índio, porém, como se não reparasse naquele movimento do jovem oficial,
continuou:
—
Vossa entrevista será ao meio giro da lua: mancebo, vos antecipastes; ainda me
resta, pois, uma hora, peço que me escuteis.
Havia
um não sei quê de profundo, de solene, no acento dessas palavras que revelavam
inabalável resolução.
A
seu pesar, Gastão sentiu-se comovido e respondeu:
—
Eu vos escuto.
*
* *
—
Muitas luas se hão passado, mancebo — continuou o cacique, com voz magoada —,
muitas luas já, e tantas que nem vos sei dizer. E era uma tarde, bela como o
foi a de hoje; mais bela talvez, porque era então a lua das flores, e eu dela
me recordo ainda, como se fora hoje…
“Sim,
era uma tarde de enlevadora beleza; nela havia sedução e poesia, nela havia
amor e saudade. Sabeis vós o que nós outros chamamos ‘lua das flores’? É aquela
em que um sol brando e animador, rompendo as nuvens já menos densas, vem beijar
os prados, que se aveludam, enamorar a flor, que se adorna de louçanias,
vivificar os campos, que se revestem de primoroso ornato, afagar o homem, que
se deleita com a beleza da natureza. É a lua em que os pássaros afinam seus
cantos melodiosos, é a lua em que a cecém mimosa embalsama as margens dos
nossos rios, em que as campinas se esmaltam de flores odorosas, em que o
coração ama, em que a vida é mais suave, em que o homem é mais reconhecido ao
seu Criador…” Ele fez uma pequena pausa e continuou:
—
Era pois na lua das flores que, à tarde, um velho cacique e um mancebo índio,
do cume deste mesmo outeiro, lançavam um olhar de saudosa despedida sobre o
navio normando que levava destas praias uma formosa donzela. Era ela filha
desse velho cacique, que com mágoa a via partir para as terras da Europa; mas a
formosa Paraguaçu de há muito a havia distinguido dentre as demais filhas de
caciques; e sua afeição por ela era sincera e imensa. Paraguaçu seguia para a França,
onde devia receber o batismo, tomando por sua madrinha a célebre italiana
Catarina de Médici, cujo nome tomou na pia batismal; e, não podendo separar-se
da amiga querida, levava-a consigo, arrancando-a destarte ao coração de seu pai
e aos sonhos deleitosos do moço índio, que magoado via fugir-lhe a mulher de
suas afeições. Épica, senhor, chama-se essa jovem índia. Épica era o seu nome.
A sua ausência não seria prolongada; o velho e o moço não o ignoravam; mas eles
a amavam tanto, que foi-lhes preciso chorar. Seria um pressentimento a dor que
os afligia? Foi, talvez… choraram ambos: entretanto o velho era um bravo, e o
moço já um valente guerreiro.
“Ela,
entanto, só concebia a dor do velho; as saudades paternas agravavam mais a
mágoa de o deixar; o moço índio era-lhe apenas pouco mais que um estranho. Seu
coração ainda virgem desconhecia as delícias e as torturas do amor. O índio,
pois, era-lhe indiferente, se é que indiferente se pode entender um homem que
estava sempre a seu lado e que tinha em suas veias o sangue de seu pai. Este
mancebo índio era filho de um irmão do velho cacique, e seu íntimo amigo.
Destinado desde a infância para esposo de Paraguaçu, este mancebo nunca a pôde
amar, nem tampouco inspirar-lhe amor. Entretanto Paraguaçu era bela! Ele amava
perdidamente sua jovem parenta: Épica era a mulher de suas doidas afeições,
porém esse amor puro como a luz da estrela da manhã estava todo cuidadosamente
guardado no santuário do seu coração; uma palavra, um gesto, não havia maculado
ainda a pureza desse sentir mágico e deleitoso. Épica era pura e inocente, como
a pomba que geme na floresta: seu coração conservava ainda o descuido enlevador
dos dias da infância. Oh! ela era como a açucena à margem do regato…
“O
velho cacique atentou nas lágrimas do guerreiro jovem; e, num transporte
afetuoso, apertando-o contra o seu coração, apontando para o extremo do
horizonte, onde se perdia já o navio, disse-lhe:
‘Sê
sempre digno de mim e de teu pai; quando ela voltar será tua. Oh! eu o juro.’
“O
moço ajoelhou aos pés do irmão de seu pai e beijou-lhe as mãos com o entusiasmo
do reconhecimento...”
—
França! França!… — exclamou o tupinambá depois de alguns momentos de amargurado
silêncio. — Pudera eu esmagar-te em meus braços!!!
“Passaram
vinte e quatro luas”, continuou, serenando-se um pouco, “o mancebo as contara
por séculos. Ao fim de cada dia vinha ele ao cimo deste outeiro e daqui
perscrutava os mares, nus duma vela, que visse lá das partes do ocidente, e,
quando caía a noite, volvia triste e desconsolado aos lares do velho cacique. O
mísero velho tinha cegado nesse curto espaço e só da boca do mancebo esperava
cada dia a nova feliz que o havia lançar do fundo das suas trevas no gozo da
felicidade. Assim se passaram muitos dias… mas uma vez a lua veio estender seu
lençol de prata sobre a superfície desta imensa baía e confundir suas saudades
às saudades do moço, que a contemplava com melancolia, e ainda assim a
suspirada Épica não voltara às praias do seu país. A desesperança começava a
lavrar no coração do moço guerreiro. O velho sentia maiores saudades; porém,
esperava com mais paciência.
“Um
dia, porém, um navio alvejou ao longe: era ela; seu coração estremeceu de
íntima satisfação; no coração do velho cacique o transporte não foi mais vivo.
Seus olhos a viram ainda assim; ele mal podia acreditar em tanta ventura. Esse
navio tão ansiosamente esperado chegara enfim, e com ele a vida, a felicidade
do mancebo. Ao menos assim o acreditava ele, louco de alegria. O anjo dos seus
sonhos, o encanto dos seus dias, o ídolo do seu coração, esse navio lhe acabava
de restituir. O velho, tateando as trevas de sua noite eterna, correu pela mão
do mancebo ao encontro de sua filha. Era um espetáculo bem tocante ver esse
velho guerreiro chorar e rir de prazer com a ideia de tornar a abraçar aquela
filha mimosa que, tocando-a, jamais a tornaria a ver. Épica, a jovem índia,
trajava ricos vestidos à europeia. Apertava-lhe a cintura delgada e flexível,
como a palmeira do deserto, um cinto negro de veludo, e as amplas dobras do seu
vestido branco envolviam-lhe o corpo mimoso, delgado, como a haste da açucena à
beira-rio. As tranças negras do azeviche, que lhe molduravam as faces
aveludadas, eram aqui e ali entremeadas de flores artificiais. Era todo
artifício aquele trajar até então desconhecido do moço índio; ele sentiu
repugnância em ver aquela que era tão simples no meio da solidão ornar-se agora
de trajes que faziam desmerecer sua beleza e seus encantos…
“Paraguaçu
de volta à sua pátria”, continuou o cacique após breve pausa, “parecia sentir
na alma os efeitos desse inexprimível sentimento de suprema felicidade, que
deleita e enlouquece o infeliz proscrito, no dia em que, ainda que com as
vestes despedaçadas e a fronte cuspida pelas vagas, uma delas, mais benéfica, o
arremessa à praia, onde seus olhos viram a primeira vez a luz. Trazia nos
lábios um sorriso que levava facilmente a compreender o prazer que lhe enchia o
coração. Pela mão dessa bela princesa, seguia, débil e abatida, melancólica e
desconsolada, a jovem donzela brasiliense. Semelhava ela o lírio, crestado pela
ardentia da calma; borboleta, que a luz da vela emurcheceu as asas.
“Contraste
doloroso havia entre a fronte pálida e abatida da moça índia e a fronte altiva
e risonha da jovem esposa de Caramuru.
“Perdoai-me”,
continuou o cacique, “se insisto nestas particularidades; o que me resta a
contar provar-vos-á que elas não são aqui inúteis.
“Um vago, mas doído pensamento magoou o
coração do moço guerreiro à hora em que essa mulher, que há muito ele criara
seu ídolo, lhe aparecia assim melancólica e triste como a estátua do
sofrimento. ‘Que terá ela?’, interrogava ele a si mesmo. ‘Terá saudades desse
país longínquo, que apenas viu, onde não pode contar um amigo, onde tudo lhe é
estranho, linguagem, costumes, rostos e religião?!…’
“Enquanto
ele assim discorria, a moça aproximou-se de seu pai e, sorrindo-se por entre
lágrimas, estreitou-o com ternura filial contra o coração. Foi um prolongado
abraço: um profundo suspiro lhe rasgou o peito; e uma só palavra ela não proferiu.
E tornava a apertar o velho; e as lágrimas lhe corriam pelas faces; e a moça
parecia não se poder separar do pai, que chorava de alegria, sentindo-se
abraçar por sua filha querida.
“Com
indizível ansiedade aguardava o mancebo por uma só palavra da sua querida
Épica; mas embalde. Ela parecia toda abstrata, não na contemplação de seu pai,
mas numa ideia oculta que, dir-se-ia, lhe amargurava a alma. Mas ele, vencendo
o pensamento doloroso que lhe atravessara a mente, aproximando-se dela, em voz
de súplica, disse-lhe:
“‘Épica!
Épica, nem uma palavra para o vosso irmão?…’
“Errou-lhe
então nos lábios um mimoso sorriso, duas lágrimas ressaltaram-lhe dos olhos e
rolaram sobre as faces; e ela estendeu-lhe a mão amiga, que o moço beijou com
reconhecimento. Essa mão, esse beijo, desfizeram o ponto negro que assomara de
improviso na alma do guerreiro brasiliense, como desfaz o vento a nuvem
carregada à hora do meio-dia. Só o extremo do seu amor lhe representara Épica
triste, pálida e desconcertada. Épica era a mesma virgem das florestas, com a
diferença única de uma inteligência cultivada pelo trato europeu. Esses trajes,
que tanto haviam afligido ao mancebo, davam agora maior realce à beleza daquela
que lhe sorria. Sua voz era mais melodiosa, mais doce; pareceu-lhe, ouvindo-a,
melhor que a do sabiá, melhor que as notas da perdiz mimosa, que a própria
pecuapá gemendo à noite. Ele acreditou que Tupã lha havia arrebatado um
instante para lha restituir mais sedutora, mais bela que os próprios anjos que
lhe entoam hinos. O índio escutava com enlevo; e cada uma de suas palavras
causava-lhe suavíssima impressão. Como Paraguaçu, Épica havia recebido o
batismo. Conquanto a jovem princesa do Brasil não poupasse esforços em chamar
os homens do seu país ao grêmio da Igreja; conquanto sua voz fosse persuasiva,
suas palavras insinuantes; todavia foi a voz de Épica que rendeu o moço índio.
Ele abraçou o Cristianismo quando soube que Épica era cristã. Oh! mancebo”,
murmurou o tupinambá, “quanto pode o amor quando é ele santo como o que há no
céu!…
“Raiou
enfim o dia em que a donzela brasiliense devia pertencer pelo matrimônio ao
homem que a idolatrava; e ele a levou pela mão aos pés do altar; e um sacerdote
cristão abençoou os noivos que estavam ajoelhados, à face de grande multidão. À
hora, porém, em que Épica pronunciava os votos, a voz alterou-se-lhe: sua mão
resfriada estremeceu convulsa na mão do esposo. Ele olhou-a surpreso. Épica era
pálida como um cadáver. À última palavra do sacerdote, a moça caiu
desalentada...”
O
tupinambá levantou-se, deu alguns passos rápidos e incertos. Fulguraram-lhe os
olhos na escuridão da noite, e um tremor convulso lhe agitou os beiços. Depois
foi pouco e pouco serenando e reatou o fio de sua narração.
*
* *
—
Era alta noite — prosseguiu ele, com uma voz cavernosa —, o vento ciciava entre
os palmares, e a lua, prateando a superfície das águas, passava melancólica por
cima destas árvores anosas. A sururina desprendia o seu canto harmonioso; na
mata ondulava um vento gemedor, e o mar quebrava-se nas solidões da praia.
Sobre o cume deste mesmo rochedo, mancebo, a essa hora da noite, silenciosa e
erma, um jovem índio e uma donzela americana, que o céu ou o inferno havia
unido em matrimônio naquele mesmo dia, em confidência dolorosa, tragavam até às
fezes o amargor da desonra e da ignomínia. De joelho a mulher fazia a mais
custosa e triste confissão que jamais caiu dos lábios de uma mulher.
“‘Gupeva!
meu Gupeva’, exclamava ela. Assim se chamava, senhor, o jovem esposo. ‘Meu
irmão, meu amigo, poderás perdoar-me?’
“Oh!
ele adivinhava já o que restava a dizer a essa infeliz mulher; mas era-lhe
necessário ouvir de seus lábios aquilo mesmo que ele daria mil vidas para nunca
ouvir.
“‘Fala!’,
disse-lhe Gupeva, tremendo de furor.
“‘Vou
merecer o teu desprezo, o teu abandono; mas ao menos peço que meu pobre pai
ignore tudo. Gupeva, confiei em ti; talvez minha confiança te ofenda; mas tu
conheces a meu pai… ele não poderia sobreviver à minha…’
“‘Cala-te!
cala-te, mulher’, exclamou com desespero assustador o desgraçado esposo.
“‘Não’,
continuou ela, sem se perturbar. ‘Tens sobre mim direito de vida ou morte;
mata-me, Gupeva; mas ouve-me primeiro.’
“‘Épica! Épica, oh! se isto fora um sonho!’
“‘Amei’,
continuou ela, ‘amei com esse amor ardente e apaixonado que só o nosso clima
sabe inspirar, com essa dedicação de que só é capaz a mulher americana, com
essa ternura que o homem nunca soube compreender. E sabes tu que homem era
esse?’
“‘Basta!’
“‘Oh!
é preciso que me escutes até o fim, depois mata-me.
“‘Esquecida’,
prosseguiu Épica, ‘de que o homem de suas afeições chamava-se o conde de...,
Gupeva, eu cometi uma falta, que mais tarde devia cobrir de opróbrio o homem
que me recebesse por esposa. O amor não prendeu o coração do conde, ele
esqueceu os extremos de meus afetos e desposou uma donzela nobre da sua nação,
sem sequer comover-se das minhas lágrimas.
“‘Ah!
bem tarde conheci eu a grandeza do meu sacrifício; bem tarde reconheci a
perfídia e a indignidade no coração daquele que era até então o meu ídolo. A pequenez
da minha origem apagou-lhe o amor no coração. O conde de..., Gupeva, era já
esposo, e eu… eu trazia em meu seio um filho, que há de envergonhar-se do seu
nascimento!…’”
Ao
nome do conde de..., proferido pelo tupinambá, um calafrio mortal percorreu os
membros do jovem Gastão, que, submergido em longas cogitações, ouvia a narração
do índio: no fundo do coração despontava-lhe um tormento inqualificável.
O
índio prosseguiu:
—
Ela estorcia-se convulsa no leito de relva a meus pés; porque, senhor, esse
esposo desventurado, que na primeira noite do seu casamento ouvia semelhante
confissão, esse homem que acabava de receber a mulher impura e maculada pelo
filho da Europa, esse homem enfim que, devorado por um amor louco e apaixonado,
estampava em sua fronte o ferrete da ignomínia, o cunho do opróbrio, era eu.
—
Vós! — exclamou Gastão, com um sentimento indizível.
—
Sim, eu!… eu mesmo — respondeu o cacique, com voz de trovão.
E
prosseguiu:
—
O que se passou porém nessa noite de tão amargurada recordação só Deus e eu
sabemos. O sedutor de Épica, mancebo, era um francês, um francês é um cristão;
bem, desde essa hora eu deixei de o ser. Tupã não abandona seus filhos…
mancebo, eu não amo o Deus dos cristãos. O conde de... era filho da Igreja.
Gastão
tentou interrompê-lo; mas ele continuou:
—
A vergonha, a dor, bem depressa levaram ao sepulcro a desgraçada Épica. Não
segui de perto essa mulher por quem houvera dado todo o meu sangue se disso
dependesse a sua ventura, porque restavam-me penosas missões a cumprir.
Penosas, mancebo, e bem árduas: vivi para cumpri-las; ouvis?
“Restava-me
o dever de velar por essa menina, que tem em suas veias o sangue francês, velar
pela filha do conde de...; velar finalmente por Épica, essa jovem donzela a
quem pretendeis seduzir.”
—
Oh! — exclamou Gastão, pálido como o sudário dum morto. — Meu Deus! meu Deus,
onde estou eu!…
—
Inda uma outra missão me reteve a vida — continuou Gupeva —, a vingança…
“No
momento em que no seio da sepultura se escondiam para sempre os restos daquela
a quem eu tanto amei, de joelhos, senhor, de joelhos jurei que havia vingá-la.
Anhangá escutava os protestos da minha alma. Um guerreiro amanhã desposará a
minha Épica, e hoje, daqui a um minuto, eu terei vingado a mulher que lhe deu a
vida. Agora, mancebo, estás em meu poder; eu podia prender-te; aqui está a
sussurrama, podia apresentar-te a minha tribo e fazer-te morrer como meu
prisioneiro; mas não quero: duas razões me obrigam a proceder ao contrário.
Para dar-te essa morte honrosa era preciso dar a causa dela; minha desonra se
tornaria manifesta; e por outra, tu, covarde europeu, hás de empalidecer em
face da morte: fraco e tímido, não saberás entoar o teu canto de morte. Quero
poupar-me a vergonha de uma confissão, quero poupar a meus irmãos o espetáculo
de um covarde. Prepara-te para morrer; ou mata-me…”
O
que então se passava na alma do infeliz mancebo a quem eram dirigidas tais
palavras não pode a pena descrever. O mais doloroso golpe acabava de
traspassar-lhe o coração; golpe o mais profundo, mais dilacerante, que jamais
feriu o coração de um homem. Gastão não amaldiçoou a hora do seu nascimento;
mas pediu a Deus a morte, o esquecimento. Todas as suas ilusões estavam
dissipadas; desfeitos todos os seus sonhos. Já não era Gupeva que se interpunha
entre ele e o seu amor, era Deus, era a natureza, era a sua própria
consciência. Depois do amor, a morte… ele havia dito… Seria acaso um erro?
—
Da minha vingança serás tu a primeira vítima — continuou o cacique —; mais
tarde o conde de...
—
Eis-me — disse Gastão, interrompendo o Gupeva —, eu sou filho do conde de...,
não me reconheceste então? Oh! eu sou francês, sou o filho do sedutor de vossa
esposa, sou irmão de Épica…
—
Infame! — rugiu o velho tupinambá. — Infame filho do conde de..., não terei compaixão
de ti. — E, brandindo o seu tacape, cravou-o com fúria no peito do jovem
oficial. E batia com os pés na terra; e fazia com gritos um alarido infernal.
Gastão,
levando a mão à ferida, obrigou-o por um instante a calar-se, e disse-lhe:
—
Obrigado, Gupeva, eu queria a morte.
—
Covarde! — exclamou o índio.
—
Não me insultes na hora do passamento — tornou-lhe o moço, empalidecendo. —
Cacique, eu podia matar-te; mas para que quereria eu a vida depois do que me
acabaste de narrar?…
Nessa
hora a lua, rompendo o negrume das nuvens, aclarou com sua face pálida o cimo
do outeiro. Era o meio giro da lua: a hora da entrevista tinha soado.
E
uma visão angélica, uma mulher vaporosa, apareceu no cume do outeiro, como um
anjo mandado pelo Senhor para receber a alma do mancebo cristão que ia partir.
Era Épica.
Ela
soltou um grito de angústia à vista da cena que, mercê da lua, se apresentou a
seus olhos. Esse grito, essa voz tão conhecida, tão amada, atraindo a atenção
do moribundo, fez calar o guerreiro índio, que apupava a sua vítima.
Ela
avançou alguns passos e, olhando fixamente para seu pai, disse-lhe:
—
Gupeva, por que o mataste? Cruel! Sabes acaso que este é o homem a quem adoro?
Gupeva,
esse feroz Gupeva, esse bárbaro que se ufanava da sua vingança até na presença
da morte, à voz da moça, cruzou os braços sobre o peito e, com um olhar que
queria dizer “perdão”, exclamou com aflição:
—
Épica!…
Ela
pareceu não ouvir essa única palavra que em si resumia quanta ternura há no
coração dum homem: seus grandes olhos negros como o azeviche fitavam-se
desvairados no mancebo agonizante. Ondulavam à mercê do vento suas madeixas
acetinadas; e seu corpo flexível e mimoso como o leque da palmeira, cedendo a
um vertiginoso ondular, caiu inerte sobre o jovem Gastão.
Ele
olhou-a com assombro, e disse-lhe:
—
É um crime.
—
Monstro! — tornou ela para Gupeva, que, com os olhos fitos no chão, não se
atrevia a encarar a donzela. — Monstro! foi para me rasgares o coração que me
criaste em teus braços!… — E voltando-se para o jovem francês, disse-lhe: —
Gastão, meu querido Gastão, vive para a tua Épica.
Nesses
olhos em que já se estampava a morte, um átomo de vida reapareceu.
—
Épica — disse ele —, o nosso amor era um crime…
“Épica,
eu sou teu irmão!…”
*
* *
Ao
alvorecer do dia rebentou a tempestade há tanto ameaçada. O mar rugia com
assustadora fúria, o vento raivoso sibilava por entre as enxárcias do Infante
de Portugal, que não obstante as ordens recebidas não podia levantar âncora sem
grande perigo de despedaçar-se todo de encontro a algum arrecife. Abrigado no
ancoradouro, ainda o comandante temia o furor da tempestade. O navio arfava
inquieto: joguete das ondas, ele estalava como se houvera de desjuntar-se todo.
Um sopro mais violento da tempestade, o pobre lenho seria aniquilado. A chuva
desprendia-se em torrentes; o raio sibilava ameaçador; o mar era um lençol
negro e de sinistro aspecto. O mais corajoso tremia; só Alberto parecia
insensível à voz do temporal. Sua fronte ardente, seus olhos requeimados pela
vigília da noite, seu coração opresso pelo pressentimento de terrível sucesso,
inquieto pelo temor de alguma desgraça irremediável, abatido, angustiado pela
não aparição de seu louco e infeliz amigo, parecia não compreender a grandeza
do perigo que os ameaçava. O mar cuspia-lhe, irritando as faces, o vento
insinuava-se, rumorejando, por entre as madeixas de seus negros cabelos, e ele
não atendia nem aos insultos do mar, nem ao raivoso perpassar do vento.
Alberto
pensava em Gastão. Tinha visto amanhecer sem que Gastão voltasse ao navio: era
preciso que já não existisse para assim deixar de cumprir sua promessa!
Alberto
comunicou ao comandante seus receios e o desassossego da sua alma: toda a
oficialidade e toda a marinhagem sentiu interesse pelo jovem francês.
Ao
meio-dia a tempestade serenou: o mar tornou-se calmo e pacífico, o vento
conteve-se nos seus limites. Agora o azul das nuvens refletia-se nas águas da
imensa baía, e as vagas se moviam mansamente, aniladas e risonhas, como um
ligeiro sorriso. Então o comandante deu suas ordens; um escaler bem tripulado
recebeu o oficial português, que um momento depois pesquisava ansioso vestígios
do seu infeliz colega. Incansável, devassava o moço todos os subúrbios da
pequena habitação; incansável, percorria ele todas as sendas, todas as devesas,
todos os recônditos lugares daquele vasto terreno; era embalde. Extenuaram de
cansaço, ele e um velho marinheiro que o seguia; enquanto outros investigavam
outros lugares, Alberto chegou ao alto do outeiro, onde na noite antecedente
deu-se a cena que acabamos de narrar.
Oh!
que doloroso espetáculo!
Sentado
no tronco de uma árvore estava um velho tupinambá; brandia em suas mãos um
tacape ensanguentado: a seus pés estavam dois cadáveres!… Reclinadas as faces
ambas para a terra, Alberto não pôde reconhecer seu amigo senão pelo uniforme
de Marinha, que o sangue tingira e que as águas, que se desprenderam à noite,
haviam ensopado e enxovalhado. O outro cadáver era o de uma mulher… Bela devia
ser ela, porque seus cabelos longos e ondeados, fáceis aos beijos da viração da
tarde, esparsos assim sobre o seu corpo, davam-lhe o aspecto de uma Madalena.
Alberto
exclamou “que horror!” e cobriu o rosto com as mãos; caiu por terra.
Depois
erguendo-se com ímpeto raivoso e aproximando-se do índio, que imóvel parecia
aguardá-lo, disse-lhe apontando para o seu infeliz amigo:
—
Bárbaro!… por que o assassinaste?
Gupeva,
pois era ele, soltou uma gargalhada, estridente e descomposta, que lhe tornou o
aspecto sinistro e medonho, e disse:
—
Ah! minha filha… não a vedes? — E de novo pôs-se a brincar com o tacape.
—
Louco! — murmurou Alberto. — A minha vingança seria um crime.
Os
seus companheiros de pesquisa foram-se pouco e pouco reunindo; ele voltou
pálido e com a mágoa no coração para junto do cadáver do desditoso Gastão.
Ninguém
mais curou do louco.
Quando
iam porém deitar os cadáveres nas sepulturas, que o rosto da mulher adormecida
ao lado do jovem oficial voltaram para cima, todos os circunstantes
agruparam-se, e curiosos procuravam ver tanta formosura.
Alberto,
surpreso, exclamou:
—
Que extraordinária semelhança!…
—
Eles não podiam deixar de ser irmãos — exclamaram unanimemente os companheiros
de Alberto.
Ah!
era Épica, era a virgem das florestas, era o anjo dos sonhos mentirosos de
Gastão, era ela que acabava de conduzi-lo a Deus, e que ia descer com ele à
sepultura. Formosa ainda na palidez da morte, Épica levou Alberto a perdoar os
extremos de seu infeliz amigo.
Alberto
ajoelhou à orla da sepultura e orou; todos o imitaram, e aquelas regiões
selvagens guardaram respeitoso silêncio enquanto durou o ato religioso,
enquanto a oração subiu da terra ao trono do Senhor.
E
quando eles deixaram no sepulcro aqueles que tão extremamente se adoravam, e
quando lembraram-se novamente do velho tupinambá e o olharam, ele tinha a face
em terra, e o tacape lhe havia escapado das mãos.
Então
um velho marinheiro, tocando-o com a ponta do pé e voltando-lhe o corpo para o
lado, disse:
—
Está morto!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025
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