O ACAUÃ
Em 1862, eu passava por Serpa,
vindo de Manaus. Essa cidade do Alto-Amazonas, situada na margem esquerda do
rio colossal, foi fundada mais ou menos nos meados do século XVIII. Na época em
que lá estive, a cidade conservava ainda seu nome português de Serpa; hoje
retomou seu nome indígena: é chamada Itaquatiara, isto é, Pedra Pintada. Esse
nome lhe foi dado por causa de um grupo de rochedos existentes nas suas
proximidades, sobre os quais estão inscritos hieróglifos, atribuídos aos
primitivos habitantes da região. Todos os navios que sobem o Amazonas com
destino a Manaus, mesmo os vapores vindos da Europa, fazem escala, hoje, em
Itaquatiara, destinada a se transformar em centro comercial de primeira ordem,
graças à sua situação privilegiada: a cidade, com efeito, está situada em
frente à embocadura do Rio Negro.
Em 1862, um pequeno vaso de guerra
para ali havia transportado o sábio e venerável bispo do Pará, Monsenhor
Macedo, o apóstolo bem-amado dessas regiões, que ele procura dotar, atualmente,
com uma basílica flutuante, da qual toda a imprensa europeia se ocupou há algum
tempo. Eu fazia parte da comitiva do ilustre prelado.
Durante sua visita pastoral,
chamaram-lhe a atenção para os feitos de um pajé, que estava, no momento,
preparando-se para realizar uma cura.
Fui vê-lo e tenho ainda na memória,
como se tivesse ocorrido ontem, a cena que presenciei.
Em local um pouco distante da
aldeia, erguia-se uma casa de aspecto pobre, mais pròpriamente uma choupana: As
paredes e o teto eram feitos de folhas de palmeira, da mesma forma que a porta.
A casa dividia-se em duas construções independentes: na frente uma choupana com
duas peças, tendo uma varanda com beiral; atrás, uma cabana inteiramente
aberta, que servia de cozinha.
De fora ouviam-se gritos espaçados,
repetidos a intervalos regulares: Acauã! Acauã! As três sílabas destacavam-se
lentamente: A-cau-ã!
Espiei pela porta levantando as
folhas de palmeira entrançadas: o único mobiliário eram, na peça principal,
três redes grosseiras de tucum, algumas esteiras sobre o solo negro, de terra
batida, e cerca de meia dúzia de banquinhos côncavos, bancos típicos do país,
aos quais se dá o nome de bancos do uaupés, e que imitam a forma de um jabuti
deitado sobre a carapaça. Possuo, em Paris, numerosos desses banquinhos.
Duas das redes estavam ocupadas por
jovens índias. Eram elas que gritavam: Acauã! eram elas, as pobrezinhas! que
tinham visto o Acauã!
O Acauã (Falco cachinans) é um pássaro do tamanho de uma galinha comum. Os
índios afirmam que ele se alimenta exclusivamente de serpentes e de insetos
venenosos. Ele gosta, sobretudo, de serpentes. Quando vê uma, lança o seu grito
sonoro e prolongado: Acauã! (É daí que lhe vem o seu nome). Logo surge outro acauã,
respondendo ao seu chamado. Os dois lançam-se sobre a serpente: um ataca de um
lado; o outro do outro lado. A serpente ergue-se sobre a cauda para mordê-los.
Tempo perdido! Os acauãs servem-se de suas asas como de um escudo para aparar
os botes da serpente. A luta prolonga-se por muito tempo. Ao fim, a serpente
tomba esgotada, por maior que seja, e os acauãs a devoram.
Mas não fica ai o papel do acauã.
Seu grito prolongado aterroriza a imaginação dos tapuias. Infeliz daquele que o
ouve! Pouco a pouco enlanguesce e definha. terrível convulsões. A vítima cai
por terra, rasgando com Vêm depois as unhas o próprio peito e repetindo, de
tempo em tempos, a palavra fatídica: acauã! acauã!
O mais estranho, no entanto, é que
a doença passa de uma mulher a outra. Basta que uma tapuia tenha ouvido o acauã
para contagiar todas as suas vizinhas.
Eu tinha diante dos olhos um
exemplo do inexplicável contágio.
Uma das jovens fora atingida pelo
mal misterioso. Logo depois, sua irmã começou a sofrer do mesmo mal, e conta-se
que, na vizinhança, outras índias, vindas para visitá-las, começaram a
apresentar sintomas do mal.
Eu continuava a olhar as duas
redes. As índias agitavam-se dentro delas como se arrepios percorressem os seus
corpos e, de quando em quando, uma delas lançava o agudo grito: acauã! acauã!
A escuridão era completa. Nem um só
lampião: a aldeia não os possuía. Quando saiam à noite, as pessoas
transportavam tochas feitas de gravetos.
De repente, percebi uma sombra que
se aproximava. Escondi-me. A sombra estava mais próxima. Deu a volta à casa
entoando um canto lúgubre e monótono, com voz rouca e de falsete. Eu não podia
entender as palavras, mas esse canto parecia embalar as duas doentes, cujos
gritos tornavam-se menos estridentes.
Era o pajé!
Ele penetrou na choupana entoando,
com voz mais acalentadora, o mesmo canto. As jovens não se levantaram; pareciam
mesmo não se terem apercebido da presença de um estranho, não terem ouvido o
seu canto.
O pajé dirigiu-se, sucessivamente,
às duas redes. Já não cantava. Murmurava alguma oração misteriosa, enquanto
fumava um enorme charuto, cuja fumaça lhe servia para incensar as duas tapuias,
uma de cada vez.
Elas, também, já não gritavam: de
quando em quando um tremor agitava os seus membros, e, como em agonia, elas
murmuravam: acauã! acauã!
Muitos anos se passaram desde
então. O acauã continua a causar danos entre as jovens índias. Todos os dias
ouve-se falar de qualquer tapuia atingida pelo mal terrível e, por vezes, o
contágio se estende a toda uma aldeiazinha: frescas jovens são transformadas em
horríveis megeras, macilentas, olhos fundos, presa de convulsões, repetindo o
grito: acauã! acauã!
Estou persuadido de que se trata de
uma nova manifestação de histeria.
Os pajés, dos quais uma das
principais ocupações é a devassidão, lançam o primeiro germe da superstição na
alma inocente das jovens tapuias. Torturadas ao mesmo tempo por sensações
carnais prolongadas e pelos terrores do "fetiche" invisível, e isso
exatamente na idade em que estão em pleno desenvolvimento, as pobres moças são
impotentes para resistir por muito tempo a essa existência dupla. Seu corpo
sofre o ataque das paixões senis de que elas são o objeto, enquanto seu
espírito se debilita, dia a dia, sob o terror do mal que as ameaça.
Talvez mesmo, os pajés, que
conhecem as propriedades de certas plantas, recorram a algum emenagogo
(medicamento que faz surgir a menstruação), para esconder as consequência do
seu crime e conservar seus prestigio junto às ingênuas jovens.
É possível, também, que pouco a
pouco as jovens tapuias sintam-se enfraquecidas, os nervos superexcitados,
cérebro em ebulição. Surge então o acauã, e a farsa está feita. A histeria
causa os seus habituais danos nos corpos debilitados.
O contágio do mal também tem
explicação para todos aqueles que têm qualquer conhecimento desses fenômenos.
As endemoninhadas do Lundum, teriam sido outra coisa que não histéricas?
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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