4/14/2025

Frederico José de Santana Néri (Conto), de Acauã


O ACAUÃ

Em 1862, eu passava por Serpa, vindo de Manaus. Essa cidade do Alto-Amazonas, situada na margem esquerda do rio colossal, foi fundada mais ou menos nos meados do século XVIII. Na época em que lá estive, a cidade conservava ainda seu nome português de Serpa; hoje retomou seu nome indígena: é chamada Itaquatiara, isto é, Pedra Pintada. Esse nome lhe foi dado por causa de um grupo de rochedos existentes nas suas proximidades, sobre os quais estão inscritos hieróglifos, atribuídos aos primitivos habitantes da região. Todos os navios que sobem o Amazonas com destino a Manaus, mesmo os vapores vindos da Europa, fazem escala, hoje, em Itaquatiara, destinada a se transformar em centro comercial de primeira ordem, graças à sua situação privilegiada: a cidade, com efeito, está situada em frente à embocadura do Rio Negro.

Em 1862, um pequeno vaso de guerra para ali havia transportado o sábio e venerável bispo do Pará, Monsenhor Macedo, o apóstolo bem-amado dessas regiões, que ele procura dotar, atualmente, com uma basílica flutuante, da qual toda a imprensa europeia se ocupou há algum tempo. Eu fazia parte da comitiva do ilustre prelado.

Durante sua visita pastoral, chamaram-lhe a atenção para os feitos de um pajé, que estava, no momento, preparando-se para realizar uma cura.

Fui vê-lo e tenho ainda na memória, como se tivesse ocorrido ontem, a cena que presenciei.

Em local um pouco distante da aldeia, erguia-se uma casa de aspecto pobre, mais pròpriamente uma choupana: As paredes e o teto eram feitos de folhas de palmeira, da mesma forma que a porta. A casa dividia-se em duas construções independentes: na frente uma choupana com duas peças, tendo uma varanda com beiral; atrás, uma cabana inteiramente aberta, que servia de cozinha.

De fora ouviam-se gritos espaçados, repetidos a intervalos regulares: Acauã! Acauã! As três sílabas destacavam-se lentamente: A-cau-ã!

Espiei pela porta levantando as folhas de palmeira entrançadas: o único mobiliário eram, na peça principal, três redes grosseiras de tucum, algumas esteiras sobre o solo negro, de terra batida, e cerca de meia dúzia de banquinhos côncavos, bancos típicos do país, aos quais se dá o nome de bancos do uaupés, e que imitam a forma de um jabuti deitado sobre a carapaça. Possuo, em Paris, numerosos desses banquinhos.

Duas das redes estavam ocupadas por jovens índias. Eram elas que gritavam: Acauã! eram elas, as pobrezinhas! que tinham visto o Acauã!

O Acauã (Falco cachinans) é um pássaro do tamanho de uma galinha comum. Os índios afirmam que ele se alimenta exclusivamente de serpentes e de insetos venenosos. Ele gosta, sobretudo, de serpentes. Quando vê uma, lança o seu grito sonoro e prolongado: Acauã! (É daí que lhe vem o seu nome). Logo surge outro acauã, respondendo ao seu chamado. Os dois lançam-se sobre a serpente: um ataca de um lado; o outro do outro lado. A serpente ergue-se sobre a cauda para mordê-los. Tempo perdido! Os acauãs servem-se de suas asas como de um escudo para aparar os botes da serpente. A luta prolonga-se por muito tempo. Ao fim, a serpente tomba esgotada, por maior que seja, e os acauãs a devoram.

Mas não fica ai o papel do acauã. Seu grito prolongado aterroriza a imaginação dos tapuias. Infeliz daquele que o ouve! Pouco a pouco enlanguesce e definha. terrível convulsões. A vítima cai por terra, rasgando com Vêm depois as unhas o próprio peito e repetindo, de tempo em tempos, a palavra fatídica: acauã! acauã!

O mais estranho, no entanto, é que a doença passa de uma mulher a outra. Basta que uma tapuia tenha ouvido o acauã para contagiar todas as suas vizinhas.

Eu tinha diante dos olhos um exemplo do inexplicável contágio.

Uma das jovens fora atingida pelo mal misterioso. Logo depois, sua irmã começou a sofrer do mesmo mal, e conta-se que, na vizinhança, outras índias, vindas para visitá-las, começaram a apresentar sintomas do mal.

Eu continuava a olhar as duas redes. As índias agitavam-se dentro delas como se arrepios percorressem os seus corpos e, de quando em quando, uma delas lançava o agudo grito: acauã! acauã!

A escuridão era completa. Nem um só lampião: a aldeia não os possuía. Quando saiam à noite, as pessoas transportavam tochas feitas de gravetos.

De repente, percebi uma sombra que se aproximava. Escondi-me. A sombra estava mais próxima. Deu a volta à casa entoando um canto lúgubre e monótono, com voz rouca e de falsete. Eu não podia entender as palavras, mas esse canto parecia embalar as duas doentes, cujos gritos tornavam-se menos estridentes.

Era o pajé!

Ele penetrou na choupana entoando, com voz mais acalentadora, o mesmo canto. As jovens não se levantaram; pareciam mesmo não se terem apercebido da presença de um estranho, não terem ouvido o seu canto.

O pajé dirigiu-se, sucessivamente, às duas redes. Já não cantava. Murmurava alguma oração misteriosa, enquanto fumava um enorme charuto, cuja fumaça lhe servia para incensar as duas tapuias, uma de cada vez.

Elas, também, já não gritavam: de quando em quando um tremor agitava os seus membros, e, como em agonia, elas murmuravam: acauã! acauã!

Muitos anos se passaram desde então. O acauã continua a causar danos entre as jovens índias. Todos os dias ouve-se falar de qualquer tapuia atingida pelo mal terrível e, por vezes, o contágio se estende a toda uma aldeiazinha: frescas jovens são transformadas em horríveis megeras, macilentas, olhos fundos, presa de convulsões, repetindo o grito: acauã! acauã!

Estou persuadido de que se trata de uma nova manifestação de histeria.

Os pajés, dos quais uma das principais ocupações é a devassidão, lançam o primeiro germe da superstição na alma inocente das jovens tapuias. Torturadas ao mesmo tempo por sensações carnais prolongadas e pelos terrores do "fetiche" invisível, e isso exatamente na idade em que estão em pleno desenvolvimento, as pobres moças são impotentes para resistir por muito tempo a essa existência dupla. Seu corpo sofre o ataque das paixões senis de que elas são o objeto, enquanto seu espírito se debilita, dia a dia, sob o terror do mal que as ameaça.

Talvez mesmo, os pajés, que conhecem as propriedades de certas plantas, recorram a algum emenagogo (medicamento que faz surgir a menstruação), para esconder as consequência do seu crime e conservar seus prestigio junto às ingênuas jovens.

É possível, também, que pouco a pouco as jovens tapuias sintam-se enfraquecidas, os nervos superexcitados, cérebro em ebulição. Surge então o acauã, e a farsa está feita. A histeria causa os seus habituais danos nos corpos debilitados.

O contágio do mal também tem explicação para todos aqueles que têm qualquer conhecimento desses fenômenos. As endemoninhadas do Lundum, teriam sido outra coisa que não histéricas?



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...