4/12/2025

Foi o coração (Conto), de Mário Sette


FOI O CORAÇÃO

Humberto venceu a ladeira e alcançou o alto da colina. A subida fora áspera àquela hora de sol, e, diante da igreja, ladeando o colégio, parou para respirar melhor, pondo os olhos no ladrilho esverdeado do mar, lá embaixo.

Grande silêncio. Raríssimos transeuntes. Apenas uma devota destinando-se ao Amparo e uns trabalhadores vindo de fazer reparos na Sé. O sino do Carmo dobrava.

Humberto tocou a campainha da portaria. De um postigo que se abriu aflorou rosto moço debruado pela coifa branca.

— A irmã Superiora...

— Está na capela... Porém, o Sr. entre... queira esperar um pouco...

Seguido da filha, o homem atravessou um pátio em arcadas, com palmeiras e crótons, e achou-se numa saleta de mobiliário severo. Porque houvesse uma porta que dava para a nave, aproximou-se dela. Os altares acesos, nos bancos algumas fieis, e diante do altar-mor as monjas. genuflexas, de cabeças baixas, rezavam. Uma serafina derramava acordes tristes, quebrantados, doces... Quase rente ao reposteiro de entrada, num recanto obscuro, uma mulher também orava, ajoelhada, tão curvada para o chão que parecia beijá-lo.

Quando terminou a oração, as freiras, sete ao todo, lembrando as sete notas da escala musical foram saindo da nave, uma atrás da outra, sumindo-se pela arcada da clausura. E a mulher, que rezava perto da entrada, seguiu-as de vista baixa...

Humberto voltou á sala de espera e sentou-se diante da filha, da sua Margarida trazida para o internato. Ela espiava para tudo com essa tímida curiosidade das crianças em frente do desconhecido... Ah! muito lhe custava separar-se dela, mas era o jeito único... Morava no alto sertão e ali não havia educandário capaz onde a menina, depois do curso primário pudesse fazer o secundário. Tudo por causa do mau passo da Adelina... Depois de cinco anos de casados, a vinda da mulher para o Recife, a fim de convalescer de uma febre palustre. Viera para a casa de uma tia complacente e pateta que a criara com mil vontades... Ele não pôde acompanhá-la devido aos seus porfazeres no interior onde viviam. E, na capital, Adelina, sempre retardando o regresso ao lar, embora gorda e forte, deixou-se prender por alguém que lhe podia satisfazer mais as exigências do luxo do que o marido. Caiu pelo luxo, porque por amor poucas caem. Ele teve denúncias. A princípio relutou em desconfiar, porém, a insistência da mulher em demorar no Recife, os pretextos que arranjava... Veio à capital de surpresa. E teve a prova. Separaram-se. Enquanto pôde, educou a menina na cidade longínqua; porém, agora via-se obrigado a interná-la... e ir viver sozinho... sozinho... e longe!... A mulher, nunca mais soubera dela. Quase três anos não a via. Por certo, na sua tendência para as grandezas, para as luxuosidades, para o mundanismo, andaria satisfazendo, por qualquer preço, a sua imensa vaidade...

A Superiora surdira afinal. Afagou a criança, sentou-se-lhe junto, e, depois de dizer Humberto ao que ia:

— Então, trouxe-nos a sua filhinha?

— Sim, volto amanhã para o interior. E embora as aulas não tenham ainda principiado...

— Não faz mal. Ela vai se habituando com o colégio e quando as companheiras chegarem, na próxima semana... será de casa, já. Não é?

Margarida olhava para a freira e no intimo ia se sentindo atraída por aquela mulher que lhe falava tão carinhosamente:

— Pode ir descansado, doutor. Havemos de fazê-la uma moça direita.

— Sobretudo modesta, muito modesta. Vaidosa apenas dos seus deveres.

— E agora, minha filha, vá mudar sua roupa e depois venha se despedir do papai.

A irmã Joaquina, a roupeira, veio buscar a criança e levou-a lá para dentro. A Superiora procurava tranquilizar o pai:

— Ela há de se dar bem conosco. Depois temos uma criada que é doida por crianças. Uma pobre mulher que nos apareceu aqui pedindo agasalho e trabalho. Desconfio até que já tivesse tido alguma coisa... Ninguém lhe sabe a vida... Ativa, zelosa, fiel, e, principalmente, louca pelas meninas. Quando não está na igreja rezando, com uma piedade que causa admiração... E a pobre, além de tudo, é doente... Tem falta de ar, dores no peito, cansa muito... O medico do colégio nos disse, em particular, que ela está com o coração como um vidro... Qualquer coisa...

Humberto desinteressado do assunto olhava absorto para um dos ângulos da saleta. E, de súbito, a frase da Superiora foi cortada. Irmã Joaquina chegara à porta, gritando:

— Madre Superiora! A criada teve um ataque!

Correram a acudir. Humberto seguiu-as. No vestiário das alunas mal alumiado por uma pequena janela, ele viu um vulto de mulher estendido no chão. A menina, assustada, agarrara-se à mão do pai. E a irmã Joaquina explicava:

— Ela estava despindo a menina, fazendo-lhe festas, e, de repente, ao tirar-lhe esta medalhazinha caiu para traz..

E a religiosa entregava à Superiora um fio de ouro de onde pendia, em esmalte, o retrato de Margarida aos seis meses de idade.

Humberto, apreensivo, baixara-se, e, como médico, pôs o ouvido no seio da criada.

Nenhum rumor.

A Superiora opinou:

— Parece que está morta... Com certeza foi o coração.

Fitando o rosto desfigurado da defunta, Humberto reconhecera Adelina. Quis falar... Mas, teve pena da filha. Melhor acerto seria o silêncio. Reerguendo-se, simulando calma, confirmou:

Sim. Foi o coração...


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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