FOI
O CORAÇÃO
Humberto venceu a ladeira e alcançou o alto da
colina. A subida fora áspera àquela hora de sol, e, diante da igreja, ladeando
o colégio, parou para respirar melhor, pondo os olhos no ladrilho esverdeado do
mar, lá embaixo.
Grande silêncio. Raríssimos transeuntes. Apenas
uma devota destinando-se ao Amparo e uns trabalhadores vindo de fazer reparos
na Sé. O sino do Carmo dobrava.
Humberto tocou a campainha da portaria. De um
postigo que se abriu aflorou rosto moço debruado pela coifa branca.
—
A irmã Superiora...
—
Está na capela... Porém, o Sr. entre... queira
esperar um pouco...
Seguido da filha, o homem atravessou um pátio em
arcadas, com palmeiras e crótons, e achou-se numa saleta de mobiliário severo.
Porque houvesse uma porta que dava para a nave, aproximou-se dela. Os altares
acesos, nos bancos algumas fieis, e diante do altar-mor as monjas. genuflexas,
de cabeças baixas, rezavam. Uma serafina derramava acordes tristes,
quebrantados, doces... Quase rente ao reposteiro de entrada, num recanto
obscuro, uma mulher também orava, ajoelhada, tão curvada para o chão que
parecia beijá-lo.
Quando terminou a oração, as freiras, sete ao
todo, lembrando as sete notas da escala musical foram saindo da nave, uma atrás
da outra, sumindo-se pela arcada da clausura. E a mulher, que rezava perto da
entrada, seguiu-as de vista baixa...
Humberto voltou á sala de espera e sentou-se
diante da filha, da sua Margarida trazida para o internato. Ela espiava para
tudo com essa tímida curiosidade das crianças em frente do desconhecido... Ah!
muito lhe custava separar-se dela, mas era o jeito único... Morava no alto
sertão e ali não havia educandário capaz onde a menina, depois do curso
primário pudesse fazer o secundário. Tudo por causa do mau passo da Adelina...
Depois de cinco anos de casados, a vinda da mulher para o Recife, a fim de
convalescer de uma febre palustre. Viera para a casa de uma tia complacente e
pateta que a criara com mil vontades... Ele não pôde acompanhá-la devido aos
seus porfazeres no interior onde viviam. E, na capital, Adelina, sempre
retardando o regresso ao lar, embora gorda e forte, deixou-se prender por
alguém que lhe podia satisfazer mais as exigências do luxo do que o marido.
Caiu pelo luxo, porque por amor poucas caem. Ele teve denúncias. A princípio
relutou em desconfiar, porém, a insistência da mulher em demorar no Recife, os
pretextos que arranjava... Veio à capital de surpresa. E teve a prova.
Separaram-se. Enquanto pôde, educou a menina na cidade longínqua; porém, agora
via-se obrigado a interná-la... e ir viver sozinho... sozinho... e longe!... A
mulher, nunca mais soubera dela. Quase três anos não a via. Por certo, na sua
tendência para as grandezas, para as luxuosidades, para o mundanismo, andaria
satisfazendo, por qualquer preço, a sua imensa vaidade...
A Superiora surdira afinal. Afagou a criança,
sentou-se-lhe junto, e, depois de dizer Humberto ao que ia:
—
Então, trouxe-nos a sua filhinha?
—
Sim, volto amanhã para o interior. E embora as
aulas não tenham ainda principiado...
—
Não faz mal. Ela vai se habituando com o colégio e
quando as companheiras chegarem, na próxima semana... será de casa, já. Não é?
Margarida olhava para a freira e no intimo ia se
sentindo atraída por aquela mulher que lhe falava tão carinhosamente:
—
Pode ir descansado, doutor. Havemos de fazê-la uma
moça direita.
—
Sobretudo modesta, muito modesta. Vaidosa apenas
dos seus deveres.
—
E agora, minha filha, vá mudar sua roupa e depois
venha se despedir do papai.
A irmã Joaquina, a roupeira, veio buscar a criança
e levou-a lá para dentro. A Superiora procurava tranquilizar o pai:
—
Ela há de se dar bem conosco. Depois temos uma
criada que é doida por crianças. Uma pobre mulher que nos apareceu aqui pedindo
agasalho e trabalho. Desconfio até que já tivesse tido alguma coisa... Ninguém
lhe sabe a vida... Ativa, zelosa, fiel, e, principalmente, louca pelas meninas.
Quando não está na igreja rezando, com uma piedade que causa admiração... E a
pobre, além de tudo, é doente... Tem falta de ar, dores no peito, cansa
muito... O medico do colégio nos disse, em particular, que ela está com o
coração como um vidro... Qualquer coisa...
Humberto desinteressado do assunto olhava absorto
para um dos ângulos da saleta. E, de súbito, a frase da Superiora foi cortada.
Irmã Joaquina chegara à porta, gritando:
—
Madre Superiora! A criada teve um ataque!
Correram a acudir. Humberto seguiu-as. No
vestiário das alunas mal alumiado por uma pequena janela, ele viu um vulto de
mulher estendido no chão. A menina, assustada, agarrara-se à mão do pai. E a
irmã Joaquina explicava:
—
Ela estava despindo a menina, fazendo-lhe festas,
e, de repente, ao tirar-lhe esta medalhazinha caiu para traz..
E a religiosa entregava à Superiora um fio de ouro
de onde pendia, em esmalte, o retrato de Margarida aos seis meses de idade.
Humberto, apreensivo, baixara-se, e, como médico,
pôs o ouvido no seio da criada.
Nenhum rumor.
A Superiora opinou:
—
Parece que está morta... Com certeza foi o
coração.
Fitando o rosto desfigurado da defunta, Humberto
reconhecera Adelina. Quis falar... Mas, teve pena da filha. Melhor acerto seria
o silêncio. Reerguendo-se, simulando calma, confirmou:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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