Um soído rouquenho me passou pelos ouvidos, como o baque de um rolo de espuma que se esfarelasse nas pedras — era a tempestade que corria, revolvendo o plaino undoso do oceano, estalando os troncos das montanhas, assoviando pelas paredes rotas de castelos caídos. Um fuzil lampejando instantâneo alumiou a cena, aonde os elementos em furor iam representar o drama da devastação — era a lâmpada do coveiro a bruxulear no cemitério entre túmulos arruinados, caveiras enegrecidas e sudários rotos; e vi... à luz do fuzil — esse farol da tempestade...
Era uma
figura hedionda, incutiria mais pavor do que o fantasma que falou a Bruto na
véspera do combate; um rochedo solitário e fragoso lhe servia de trono, de
pedestal cardos e espinheiros que lhe cresciam na base, tinha o rosto macerado
e ósseo, talhado por longas e aprofundadas rugas, e por coberta uma túnica
negra a engastar-se no sombrio da noite, tremulando ao açoite do tufão, como as
franjas da mortalha do morto, ao passar da viração que se enfia pelas naves
escuras.
A ventania que voava compelindo as nuvens levava longe o eco estrugido de sua voz:
— Tenho o meu domínio na terra, sou rainha! Impero e mando! Assento-me nos tronos acoitada na púrpura; farto-me no banquete do cortesão, deito-me em seu leito dourado, no damasco dos salões e moro eterna no seu lábio falsário; inspiro o lance impetuoso do tribuno quando se precipita arrojado, o estandarte sangrento da revolta em punho, concitando as massas a se agruparem em torno. Quando brame a tuba da matança, eu tenho um eco, quando as filas rareiam e os pelejadores tombam — é que eu manejo um ferro, quando a avidez atiça os vencedores à rapina, manchando de ignomínia os louros do triunfo — é que meu braço se volve! Da virgem colorida de pudores, sou eu que lhe passo na voz trêmula e alquebrada a desfalecer no lábio acalorado de desejos, que lhe falo pelo lânguido olhar umedecido de pejo, que lhe escrevo as juras bem depressa apagadas como as tintas de um quadro antigo desbotado pelo pó; da prostituta vou-me apoiar à cabeceira, passeio-lhe nos risos corrompidos, estalo-lhe nos beijos, acendo-lhe os olhos impudicos, estreito-lhe os abraços, ásperos e duros como o metal que os compra; entranho-me pelas ruas lamacentas, revolvo a lia das cidades e encosto-me à ombreira da granja do pobre, cresto-lhe os sentimentos até o extremo da raiz e lanço-o a esmo pelo mundo a esmolar pela porta dos ricos o resíduo das mesas, como esmolava o judeu a caridade dos crentes.
“Sou rainha — tenho um sólio que os furacões do tempo não abalam, tenho vestes que os povos nas convulsões de seus cataclismos não romperão, tenho um nome que a mão do esquecimento não apagou do livro das gerações! Sou tão velha como o mundo — na língua da serpente que falou aos desterrados do Éden eu passei; na primeira palavra do homem existi: digam-no os magos das planícies do Nilo, quando iludiam o povo correndo-lhe o véu da ignorância nos olhos, para que nunca visse a luz da ciência, para que fosse sempre instrumento fácil à ambição da teocracia entronizada; falem os caldeus que, da cimeira de suas torres, liam à multidão pasmada a sina que eles soletravam à noite no brilho das estrelas; contem-no os oráculos dessa terra malfadada da Grécia, quando os guerreiros na hora da partida iam ouvir da boca desses ídolos mentidos a decisão das pelejas; digam-no os augúrios da Roma pagã que desvendavam o futuro nas entranhas das vítimas, que escreviam os dias faustos e calamitosos da República com o sangue dos sacrifícios; digam-no se não era eu que lhes dourava os lábios quando falavam às gentes.
“Sou rainha! Tenho uma coroa nas borrascas que me topetam a fronte, um trono no rochedo em que os raios estalam, uma alcatifa no mundo que hei grafilado com meus pés, corteja-me o mar no embate embravecido, os tufões me saúdam quando passam!”
Calou-se.
Ainda reboou por muito tempo a sua voz, até que por último se foi adormecer no fragor dos elementos, que lá iam de vencida varrendo a terra com a cauda balançada pelo bulcão.
De repente, uma nuvem branca circundada por uma auréola de luz, que a fazia fulgir na escuridão, como um santelmo no meio da noite, baixou serena como se fosse por uma bela tarde de estio, quando a ave se despede do sol em melancólico hino. Trazia ela uma virgem, era o perfume da flor, que passava na brisa da alvorada, era um destes seres que nunca pisam a terra, que só habitam o céu, que se sonha a derramar nas cordas da lira, e que nunca se encontram no tumultuar das festas, ou no bulício dos bailes! A inocência brilhava-lhe nos olhos, como o orvalho ao beijo da madrugada, tinham mais lustre suas tintas que as nuvens cor de rosa, que no crepúsculo cortejam o sol quando se deita; era uma flor transplantada do Éden — a filha dileta de Deus!
O fantasma estremeceu, e a virgem falou. Era a corda da virgindade que tangia pela primeira vez à pressão do cantor?
— Sou rainha! Foi Deus que me enviou; tenho o meu assento no céu, e inspiro na terra a criatura; falo nos sorrisos da infância, que não sabem se esconder nos refolhos da mentira; falo no canto da virgem onde traduz-se a castidade em uma nota suave; falo nos conselhos do ancião, com sua fronte branqueada de cãs, selada pelos anos a cativar respeitos; corro nos lábios murchos do moribundo, quando balbucia a prece de agonia, com os olhos firmados no crucifixo; velo à banca do filósofo, alento-lhe a luz do candeeiro, guio-lhe a mão no pergaminho; banho-me nas harmonias do vate quando sua lira é sagrada e a inspiração lhe vem do alto!
“Tenho um poder que não há outro: do dossel da realeza eu desço a visitar a tenda do operário; da mesa dos grandes que têm honra, eu corro à enxerga dos pobres que têm timbre; dos salões onde folga a virtude, girando ao excitamento da música, me passo ao leito das agonias onde a probidade se míngua aos apertos da morte! No painel do tempo tenho meu nome estampado — que o revelem os séculos; nos monumentos do povo tenho encravado meus faustos — que as gerações os venerem; no templo da ciência tenho uma luz fulgurante — que os sábios o digam; nos altares do cristianismo eu coloro as imagens — que os adoradores se prostrem!
“És tão velha como o mundo, eu sou mais antiga ainda do que ele, porque vivo no seio do Senhor; o Decálogo da raça de Jeová, recebido no Sinai entre mil raios, fui eu quem o ditei; na Grécia, Aristides e Epaminondas me adoraram; em Roma, os Fábios e os Fabrícios me falaram. Eu represento a ideia que alevantou o lenho no Gólgota, foi por mim que o Redentor vestiu o cilício do martírio, e purpureou com seu sangue abençoado o trilho do calvário; enquanto tu representas o beijo traiçoeiro de Judas!
“Sou rainha! Tenho o meu trono nas nuvens; nas estrelas uma coroa fulgente; nas flores da terra um tapete embalsamado; as aves me traduzem as harmonias do mundo, as auras contam-me os segredos do céu, beija-me o sol quando descamba, embalam-me as brisas quando durmo!”
A voz esvaiu-se lentamente, como o som de uma tecla de piano que se partisse.
O fantasma se levantou medonho. Ia falar; e nisto a tempestade arrebentou as últimas cadeias que a continham e o monstro tremeu, vacilou e caiu rodando com horríssono fragor, pelo ínvio dorso da montanha, rasgando-se nas farpas agudas do granito!
A virgem, como amparada da tormenta por uma barreira de bronze, alçou-se ao céu em sua nuvem diáfana, como a pena branca do cisne que o vento passeia nas alturas!
O fantasma negro — era a mentira.
A virgem cândida — a verdade.
A tempestade
— era o sopro de Deus!
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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