4/13/2025

Dalzo (Conto), de Zoroastro Pamplona



 DALZO

Era uma noite de inverno.

O céu estava escuro, e velado por nuvens negras e imóveis, que derramavam rios de uma água pesada e fria.

A cerração de um pardacento sombrio cobria as florestas da serrania.

O vento dormia nas grutas, e as folhas nas árvores dormiam também.

A noite repousava em seu leito de sombras, e apenas se ouvia o bater da chuva no chão escavacado dos precipícios.

Contudo, lá pelo pendor de um despenhadeiro vai um vulto ligeiro.

Quem és tu, que te embuças com esse céu sombrio, como um manto de inverno?

Dalzo.

Ele cavalga como sobre o dorso desses jorros despenhados dos fraguedos que o cercam.

A treva dessas desoras enrija-se-lhe à vista como uma cortina negra; mas seu olhar penetrante alonga-se, como um raio de luz, pelas matas escuras da serra.

Lá bem longe, talvez na aba de algum monte carcomido pelas águas, tremula débil flama, que morre e revive a espaços, como os ais do moribundo ao arrebentar da vida.

A noite é medonha; mas esse cavaleiro ousado atira-se por veredas estreitas, escorregadias como o bojo da serpente; vence, passa como um meteoro sinistro, e com seu cavalo rijo e valente para debaixo de um telheiro escuro. Empurra uma porta pesada e firme, e entra.

Queres vê-lo?

O clarão baço de uma lâmpada quebrada cobre esse chão descalço com um manto esgazeado de luz.

Dalzo está em pé. A água da chuva goteja de suas roupas molhadas. Ele tira seu chapéu, enxuga sua fronte suada e sacode seu capote comprido.

Vê-lo? É um mancebo. Aí no semblante sereno, no olhar calmo e seguro, reverbera-se-lhe nua uma alma de valente; aí nessa fronte ousada e bela ressumam-lhe a eito mil eflúvios de um ser de poeta. Como na linfa da fonte se estampa a sombra das árvores que a bordam; assim nessa fisionomia de jovem ainda está asselada a brandura de um coração angélico e a força de um espírito magnânimo, atributos que se fundem no sublime da alma, como o ouro no rico adereço da donzela. Seus cabelos pretos e revoltos lhe caem sobre a fronte morena, como uma nuvem negra que pousa sobre o cabeço escuro da montanha.

Dalzo, que ideia ocupa esse cérebro palpitante, que faz assim tremer os áditos de teu peito?

Pensamento feliz.

Sim, vens depois de um ano de ausência ao encontro de teu amigo Églio, mancebo como tu, que te ama como amaste teu pai já morto, tua mãe já de outra vida, que tu amas como teu único bem na terra, com esse amor santo de poeta ao ideal, talvez mais puro do mundo — um amigo. Ele está talvez aí; talvez durma em um sonho em teu regaço, e amanhã te virá abraçar ainda uma vez em sua vida. Tu o crês.

O mancebo ergue a lâmpada amortecida, e atravessa um corredor longo e escuro; disseras, ao vê-lo assim, ser alguma sombra perdida, que procura seu leito em um jazigo de mortos.

Esta antiga hospedaria está talvez abandonada. Nem um passo! Nem uma voz!

Dalzo a percorre. Está deserta. Mas... não... ele para... ele espreita.

O que vês, temerário noturno?

Lá dentro é um terreno de barro preto. Está um negro sentado em um cepo. Junto dele está uma luz, e ao clarão dessa luz, semelhante a uma mortalha ensanguentada, vê-se-lhe o semblante horrendo. À sua frente está um cadáver sem cabeça, nu, e tirado sobre o chão; ele o parte com sua faca imensa, e amontoa as carnes em um vaso ao fogo junto a si.

Dalzo recuou um instante daquele painel satânico, e sentiu vacilar-se-lhe o coração.

— Monstro!... Antropófago!... balbuciou apenas no estupor, que lhe causara o assombro.

— Aqui alimenta-se o viajante com carne humana!... Deus!...   

Disse. E ele teve um pensamento sinistro: ergueu seu capote umedecido da chuva e desembainhou uma lâmina luzente. Depois a pesada e velha porta cedeu ao vigor de seus braços, e se deslocou dos gonzos.

Ele entrou.

A árvore velha da montanha uiva-lhe o vendaval em torno, e ela resmunga desprezo no sussurrar da folhagem: o assassino enraizado no crime é como a árvore velha da montanha, ri-se à face do patíbulo. Essa fera humana riu-se, mas não da morte; foi o escárnio de Golias que lhe espraiou os lábios.

O negro ergueu-se, hediondo, como o aspecto do crime manchado de sangue. Escancarou a boca tigrina, e riu com um rir sepulcral, que se assemelhava ao gargalhar do Satanás ao aparecer-lhe a vítima do fogo eterno. Depois brandiu a faca mortífera, e precipitou-se sobre o mancebo de um salto como a onça da serra, ou como a pantera faminta do deserto.

Dalzo o recebe, e brada com uma voz terrível, como a da torrente ao devorar assassinos que lhe passassem o dorso.

— Morre, monstro! Some-te nas fauces negras do inferno!

E o bruto caiu imundo de seu sangue pestífero.

O baque de seu corpo fez tremer o chão, como horrorizado de suportar em seu seio tal monstro.

O semblante contraiu-se-lhe torvo. Os olhos incharam-se-lhe trêmulos e avermelhados nas órbitas. E a boca abria-se-lhe funda e negra como uma cratera infernal. E partiu-se-lhe do peito um gemido como o rugir da fera, ou como o arranco extremo de Satã ao cair de seu orgulho.

Estava morto.

Dalzo permaneceu mudo e em pé no estado de entorpecimento do espírito. Era um silêncio pavoroso, e só se ouvia o cair da chuva lá fora como uma toada fúnebre àquele espetáculo de morte. O mancebo quis desaparecer desse sítio sanguento, deu dois passos, mas o som de uma voz sufocada e lúgubre, como se partida de um túmulo fechado, balbuciou duas vezes seu nome:

“Dalzo!... Dalzo!...”

Um arrepio horrível correu-lhe por todo o corpo. Os cabelos eriçaram-se-lhe na cabeça, como um ervaçal hirsuto. A face contraiu-se-lhe súbito. Os olhos dilataram-se afogueados.

— Deus!!... Églio!...

Proferiu apenas, como se lhe fugisse a vida, e arrojou-se por um declive escavado e tenebroso.

Um fétido mefítico saía dali, como o ambiente de corpos apodrecidos.

Ele foi palpando na escuridão, e suas mãos resvalavam em paredes de barro, que porejavam um líquido lodoso.

Era um subterrâneo.

Seus pés tropeçavam em montões que estalavam como ossos humanos.

É aí o matadouro execrando.

Dalzo não trepida. Ele está como louco. A fronte sua-lhe, e o coração estremece; mas ele sente-se com um ânimo rijo e valente. Avança, e um som como o respirar opresso de uma pessoa sufocada vem a seus ouvidos. Ele avança e abalroa com um homem. Agarra-o com ímpeto e sente cair-lhe das mãos um objeto pesado, como um corpo humano.

O mancebo horrorizou-se.

— Ímpio!... Églio!...

Bradou como desvairado. E com uma força de gigante e um frenesi insano, suspendeu o assassino no seu punhal, e esmigalhou-lhe o crânio contra o muro da caverna, e seu cadáver caiu com estrondo.

Então, convulso e perplexo, Dalzo arrastou suas mãos pelo chão e levantou em seus braços seu amigo morto. Subiu a boca do subterrâneo, e foi depositá-lo em um salão quase nu sobre o soalhado. Aí estava uma lâmpada amortecida, ele a colocou junto à cabeça do defunto, e foi cair sobre uma cadeira velha a seus pés.

Ei-lo aí! É um cadáver de mancebo. Esse clarão fusco embacia-lhe o aspecto. Sua face está arroxeada, a língua um palmo fora, os olhos esbugalhados como os do enforcado, e a boca e os ouvidos escorrem sangue, em que se envolvem seus cabelos esparsos.

Vês? Era o renovo da planta, e veio o furacão sem freio e o abateu no chão. Era o pássaro errante que buscava seu ninho, e veio o drago sedento e o estrangulou nas garras. Ah! era um inocente sozinho, e veio o sopro do crime e o precipitou do mundo.

Ele está morto, mas a seu lado Dalzo está vivo ainda.

Cai-lhe a fronte pesada sobre o seio, os cabelos derramados lhe cobrem a face triste, e os braços lhe pendem ao longo das pernas como dois ramos quebrados.

Ah! É como o filho da desgraça que fraqueia ao peso das maldições de sua mãe.

Ele ergue a custo sua cabeça doída e levanta-se.

Vê. É a estátua da dor, e a angústia está no desalinho da face. Ele estende os braços para esse cadáver querido como para dizer-lhe uma só palavra, que ele compreendeu, e muito — amigo. Balbucia sons inarticulados. Não pode falar, porque mão de ferro lhe comprime o coração. Dá um passo, mas nada vê, porque uma nuvem densa lhe cobre os olhos macerados: é a dor, é a desesperação que se funde em uma torrente amarga. Cai sobre a cadeira, esmorecido, sem forças, e chora um rio de lágrimas, como a criança que ficou órfã na terra.

Dalzo, por que desesperas assim?

Ah! Sabes sua história? É a história do que é desposado, e vê sua noiva dormir em uma tumba na cova. É a história do que perde sua pátria, e lá vai desterrado sobre as ondas. É a história do que só tem seu pai no mundo, e enterra seu pai.

Era assim, porque ele amava um homem, era seu amigo como aquele que tem muita vida n’alma, muito afeto que transborda: ia vê-lo, entrou e o achou morto às mãos de um amaldiçoado de Deus. Sim, e por isso ele chorava. E não era fraqueza, porque esse golpe viera-lhe súbito como o cair do raio, e cavara-lhe o âmago, fundo e bastante, como o esbarrar dos caixões da enxurrada o dorso da montanha. E por isso ele chorava no delírio da dor, dessa dor que agita as fibras, como o vento, a face das águas.

Mas ele não permanecerá muito tempo imerso nesse luto, não; porque seu sentir é muito grande para que se prolongue mais, que isso fora roer-lhe a vida, lento como o parejar do líquido na rocha.

A tempestade amaina lá fora. Assim como ela assombrou o céu, a desgraça turbou o coração de Dalzo; assim como ela, esta passará breve.

Os ventos d’aurora impelem essa coorte de nuvens errantes. Elas fogem medrosas do sol, como um bando de malfazejos da noite.

Amanhece.

A luz aclara essa habitação que fora covil de lobos humanos. Há aí lugares onde jazem mortos insepultos.

Eis um salão calado como um deserto; nele repousa o cadáver de Églio. Ele ainda está sobre esse chão, que talvez seja para sempre seu leito. Sua cabeça ainda está imóvel, e sua boca entreaberta ainda conserva esse sangue coalhado nos cantos, e seus olhos ainda têm a vermelhidão baça dos do enforcado, e ainda a seu lado está essa lâmpada apagada. Ele é um defunto sem tumba, sem círio, que não sejam o chão da terra, e a luz do astro de Deus.

Mas quem vela junto desse morto?

Um mancebo: Dalzo, seu amigo.

Ele aí está, mudo e imóvel como uma múmia do Egito. Chorou muito, mas agora parou-lhe o curso desse pranto desabrido, gelou-se-lhe a fonte dessas lágrimas; porque uma ideia sinistra pousou-lhe na fronte e petrificou-lhe o aspecto. Contudo, lá dentro, se estorce sua alma como nas vascas da morte: é uma ânsia acerba; é o confranger-se em angústias, como o vulcão antes de arremessar a lava.

E por que tudo isso?

Porque seu coração estava opresso como sob a terra de uma sepultura:

era a dor. E sua razão perdida vacilava pelo desânimo do espírito, e ele só via um vácuo na terra: era a desesperança.

Sim, porque esse amigo era a luz de sua vida, e porque ele morreu Dalzo também morre.

Vê.

Ele aí está mudo, estático ante o corpo inanimado de Églio.

Que lhe aparecessem agora as cenas mais horríveis do mundo, que a natureza se espedaçasse lá fora, ele não ergueria a cabeça.

Há um espaço imenso ante seus olhos, sem movimento, sem forma, como a amplidão dos céus; e esse espaço rouba-lhe todos os sentidos, exceto a vista. Ele só vê uma mancha de sangue: é um cadáver; e olha para ela como se toda sua força, toda sua existência se concentrasse nisso.

Depois dessa explosão de dor em lágrimas, Dalzo está assim, e ele morrerá talvez como o cataléptico nesse estado de inanimação do mármor. Mas... não... ele estremece como o sonâmbulo quando se lhe agitam as fibras: é que o pesadelo da dor se acorda em sua alma.

Levanta-se. Volta a cabeça em torno de si com um olhar débil. Fixa um instante os objetos, e ri com um rir de escárnio ensopado de todo o fel do amargor d’alma. Disseras ver o despertado do seio da desgraça, sua mãe, erguer-se-lhe do colo, e cuspir-lhe à face a irrisão ervada de desprezo, em troco desse sono, que lhe faz trevazar angustiado coração.

Dalzo arranca um punhal. Vai-lhe talvez na ponta a vida.

— Mas quem és tu, desconhecido, que lhe suspendes o braço?

— Viajante nestas serras.

— Desgraçado! que pensamento horrível te desvaira em face de um cadáver?!

O estranho disse.

O mancebo recuou o ferro, apontou o chão ao desconhecido e falou:

— Vês? Está aí, morto, banhado em seu sangue! Matou-o um ímpio que cevava os homens com carne humana. Esse monstro? Sufoquei-lhe a goela sedenta nestas mãos homicidas. Outro malvado seu irmão no crime? Matei-o também. Vês esta lâmina? Ainda está poluta de seu sangue pútrido.

Eles dormem lá com os espíritos infernais em seus antros hediondos, cobertos de crânios humanos.

“Vai, e os verás sobre o chão imundo da podridão de suas vítimas. Sabe que esse, que vês aí morto, era como se fosse meu pai, minha mãe, minha família, meu tudo na terra, porque eu só o tinha só; e porque o perdi, e porque meu peito está lacerado de dor até as entranhas, não quero mais viver. Que a luz de Deus se me apague aqui neste mundo, nu para mim como um deserto ensanguentado. Foge, se não queres ver o resto da minha desgraça. Nem peço que enterres o meu corpo; mas se o fizeres, seja longe deste sítio amaldiçoado, lá no âmago de algum abismo na serra, que nenhum homem saiba, quero dormir só com ele, e que Deus nos veja.

“Afasta-te. Muito te hei dito.” 

Dalzo disse, e suas palavras soaram aos ouvidos do estranho como o tinir dos gládios de uma briga de morte.

Em vão quis detê-lo esse homem, porque já o punhal dormia no seio do suicida, e seu corpo dormia também ao lado de seu amigo.

— Deus!

Balbuciou apenas esse espectador de uma cena sinistra, e, com um gemido, como o de quem tem a alma presa à horrível ideia, abandonou esse sítio sanguento.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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