4/19/2025

Anjo (Conto), de Maria Pinto Figueirinhas

ANJO
(DOS CONTOS DE ANDERSEN)

— “Sempre que morre uma criança bondosa, um anjo de Deus desce à terra, toma a criança morta nos braços, abre as suas grandes asas, percorre todos os lugares de que a criança muito gostava, e colhe um punhado de flores. Ambos levam as flores ao bom Deus, para que as faça reflorir no céu mais belas do que o eram na terra. O bom Deus aperta as flores de encontro ao coração e depõe um beijo na que prefere. Este beijo dá-lhe uma voz que se mistura com os coros dos bem-aventurados”.

Era isto o que um anjo de Deus contava, ao levar ao céu uma criança morta, e a criança escutava-o, como se estivesse a sonhar. E ambos voavam por cima dos lugares em que o pequenito tinha brincado, por cima dos jardins cheios de flores admiráveis.

Quais são as que havemos de levar para plantar no céu?  perguntou o anjo.

Perto deles havia uma roseira magnífica; todavia uma mão ruim tinha-lhe quebrado o caule, de forma que os ramos carregados de botões semiabertos estavam caídos e secavam todos.

Pobrezinha da roseira! disse a criança pega nela, para que refloresça lá em cima, ao pé de Deus.

E o anjo pegou na roseira. Depois beijou a criança, e o pequeno entreabriu os olhos.

Por toda a parte colheram flores belas, sem mesmo se esquecerem do dente-de-leão nem do amor-perfeito selvagem.

—  Agora já temos bastantes flores disse a criança.

O anjo fez um gesto de aprovação, mas ainda não voaram para Deus.

Já era noite. Reinava por toda a parte um silêncio profundo. Passavam por cima duma rua estreita e escura, cheia de palha, cinzas e varreduras. Era o dia das mudas todos aqueles pratos quebrados, todos aqueles pedaços de estátuas de gesso, todos aqueles farrapos tinham um aspecto pouco agradável. E o anjo mostrou à criança, no meio daqueles restos, uns bocados dum vaso de flores, ainda com um torrão a desprender-se, mas tendo as raízes duma flor grande dos campos, murcha e deitada ao entulho.

Vamos levá-la  disse o anjo quando já formos a voar, eu te direi porquê.

Subiram, e o anjo contou então:

Lá em baixo, naquela rua escura, numa espécie de subterrâneo, vivia um pobre rapazito doente. Era obrigado a estar de cama, desde muito novo. Às vezes, quando se sentia melhor, dava a volta ao quarto com o auxílio das muletas e ficava por aí. No Verão, os raios do sol iluminavam, de vez em quando, essa habitação miserável, e então o rapazito punha-se a aquecer ao sol e passava o tempo a ver o sangue vermelho circular nos seus deditos delicados e transparentes, dizendo: “Hoje, graças a Deus, pude sair”. Apenas conhecia a verdura magnífica da floresta por um ramo de faia que lhe trouxe o filho do vizinho. Tinha posto este ramo por cima da sua cabeça, e, assim tinha a ilusão de descansar à sombra das grandes árvores, com o sol de longe e com a música deliciosa formada pelo canto de mil avezinhas.

Num dia de Primavera, o filho do vizinho trouxe-lhe também flores campestres, e uma delas, por acaso, ainda tinha raízes.

Plantaram-na num vaso e puseram-na na janela perto da cama. Como tinha sido plantada por mão feliz, encheu-se de rebentos e todos os anos dava flores novas.

Era este o único jardim do rapazito doente, o seu único tesouro na terra; regava-o, tratava-o com todo o cuidado, e colocava-o sempre de maneira que não perdesse um dos raios de sol que entravam na trapeira.

Por isso, a flor se desenvolvia e se enchia de beleza com os seus sonhos; era para ele que ela florescia, era para ele que ela derramava o seu perfume e tomava um aspecto garrido.

Um dia o bom Deus chamou a si o pequeno que, antes de morrer, se inclinou para a flor. Faz agora um ano que a criança já está na casa de Deus e há também um ano que a flor ficou esquecida na janela e por isso secou. No dia da muda, lançaram-na à rua misturada com as imundícies, e é esta pobre flor murcha que levamos no nosso ramo e que há de dar mais alegria que a flor mais rica do jardim duma rainha.”

Mas como é que tu sabes isso?  perguntou a criança.

Sei respondeu o anjo porque era eu mesmo esse rapaz doente que andava de muletas. Bem conheço a minha flor.

E o pequenito abrindo muito os olhos, cravou-os no rosto brilhante e soberbo do anjo. No mesmo instante, entravam no céu do Senhor, onde a alegria e a felicidade são eternas.

Quando o bom Deus apertou contra o coração a criança morta, a esta nasceram-lhe asas como já tinha acontecido ao outro anjo, e, dando-se os dois anjos as mãos, ambos desprenderam o voo.

O bom Deus apertou assim de encontro ao seu coração todas as flores; mas, assim que deu um beijo à pobre flor campestre já murcha, logo esta foi dotada de voz e se pôs a cantar com os anjos que volitam em torno do Senhor, formando círculos em número infinito, e todos igualmente felizes. Sim, cantavam todos, grandes e pequenos, o bom menino abençoado e a pobre flor dos campos, que, já murcha, tinha ido cair, de mistura com as imundícies, à viela estreita e escura.

 
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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