4/15/2025

Amor Caiguá (Conto), de Romário Martins



 AMOR CAIGUÁ

Antes de sua emigração para o vale do Ivaí, nas proximidades da serra dos Dourados, viviam os pacíficos Caiguás ao ocidente do rio Paraná, onde eram de contínuo molestados pelos indomáveis Guaicurus, habitantes das duas margens do rio Imbotetiú, afluente do Paraguai.

Perturbados assim na sua vida sedentária e laboriosa de agricultores e tecelões, os Caiguás resolveram mudar-se do sítio onde eram constantemente inquietados pelos seus vizinhos. Mandando, para isso, investigar a margem oriental do rio Paraná, pouco acima da foz do Ivaí e ao longo deste, descobriram os Campos de Jacareí, próximos da serra dos Dourados, propícios às suas efetivas moradias. Aí mandaram fazer grandes roças de milho, feijão, cana-de-açúcar, abóbora e algodão, preparatórias da mudança dos seus lares. Quatro luas após a plantação dessas roças, Papaí, o grande cacique Caiguá, mandou levantar o acampamento e iniciar a marcha. De todos os ângulos da terra conquistada pelos seus antepassados e abandonada então, ressoaram, roucas e tristes, as buzinas avisadoras.

A primeira leva de emigrados atravessou o Rio Paraná e prosseguiu a marcha subindo o Ivaí em direção às roças de Jacareí, enquanto Papai providenciava a travessia do Rio-Mar pelo grosso da coluna. Ainda se achava, porém, o chefe Caiguá ao ocidente do estuário, por falta de canoas para a sua gente, quando teve notícia de que os primeiros enviados haviam sido inopinadamente atacados e dizimados por gente bravia, que falava uma língua para eles estranha, e que assaltava e dominava as roças.

Ativando a passagem do grande rio, feita até em cascas de jaracatiá, Papai e seus guerreiros em breve se acharam no local do morticínio. Enterraram os cadáveres, recolheram do campo da luta cinquenta cacetes ensanguentados, que serviriam vindita, e romperam, pela madrugada, ao encontro dos matadores.

Próximo às roças um índio caingangue tecia um balaio à porta de uma cabana. Era Xaque-Xondere, filho do cacique inimigo.

Ao vê-lo destacou-se Papai dos guerreiros, aproximou-se do seu rival e erguendo-lhe sobre a cabeça formidável oirapên, desfechou-lhe um golpe que o estendeu desfalecido. Deram, então, apertado sitio à roça onde os caingangues devastavam o restante das culturas, assando abóboras em extensos braseiros, e a todos mataram com os próprios cacetes ainda tintos de sangue generoso dos caiguás. Um, apenas, apanharam vivo e soltaram, para que fosse dizer à sua gente que a roça fora retomada, e que os guerreiros de Papaí a desafiavam para nova luta.

* * *

Dias se passaram sem que os caingangues aparecessem, e durante esse tempo os caiguás ergueram suas cabanas no local da vindita. Mas, certa vez, ouviu-se, partindo de um ribeiro próximo, o grito desesperado de Jacitim, a linda esposa de Papai, que o inimigo raptava. Jacitim, Lua Branca, era o ídolo da tribo. Fora roubada, em pequenina, aos castelhanos do Paraguai, criada pelos caiguás e se casara com o cacique. Sua beleza era o encanto da tribo, inteira, sua bondade e sua graça o maior orgulho da comunidade.

Todos se precipitaram para a salvar. O choque das duas tribos foi tremendo: as setas voavam de todos os lados; a oirapên, brandida com ódio, abria feridas de morte; mas, enquanto rugiam os adversários e no campo do pleito se estorciam os agonizantes, os raptores conduziam Lua Branca ao toldo de Coí, o chefe supremo dos caingangues.

Papai, com seus árdegos guerreiros, lhes correu ao encalço pela selva a dentro. Dias inteiros investigou os passos dos arroios, os capões, as serras, a mata espessa. Noites infindáveis, alerta, perscrutou os sons pressagos que partiam do ululo do vento nas alterosas ramadas da floresta ou do cair das águas nas corredeiras, neles supondo ouvir os apelos de Lua Branca.

Mas, um dia, o cacique despediu os seus guerreiros, dizendo que ficaria só com a sua grande mágoa, ou regressaria com Jacitim, ou morreria onde ela estivesse. E ficou, na foz do Ivaí, como a estátua de um leão vencido mas arrogante, estimulado no seu intento pelas próprias feridas que sangravam. Por trás dele se erguia, luminosa, a aresta mais alta da serra dos Dourados; em linha oblíqua, para o Norte, avistava-se o outeiro em cuja base superior o Ivinhema desemboca, escachoante, nas águas oceânicas do Paraná; embaixo surgiam, das névoas da manhã, o barranco do Itacoatiá e a foz do Maracaí.

* * *

Nunca mais os caiguás o avistaram.

* * *

Certo dia, porém, perdidos numa caçada, alguns índios de Culuminguaçu viram uma espiral de fumo que saia da mata e se confundia com o azul do céu. Caminharam nessa direção e deram com uma cabana erguida debaixo de alteroso ipê, doirado de flores.

Era a cabana de Xak-Xondere, caingangue caçador que, embora inimigo, os acolheu com hospitalidade. Mantas de caça grossa, de antas, de porcos-do-mato, abasteciam a vivenda do índio solitário, pendentes de traves e varais, numa grande abundância. Finda a refeição, os caiguás rememoraram os trágicos acontecimentos que dividiram as duas tribos, até o desaparecimento de Papai, ouvindo o caingangue em silêncio, a dolorosa e longa narrativa.

* * *

Por fim falou Xondere, lenta e pausadamente:

"Tudo foi assim. Agora eu lhes vou contar o resto: Nesse tempo eu era moço, e meu pai, Coí era o chefe da tribo. Numa das nossas excursões ao rio Paraná encontramos as roças e, como elas estivessem maduras, ai acampamos.

Quando os caiguás chegaram nós os percebemos e os assaltamos. Dominávamos inteiramente a situação; mas um dia, isolado dos meus, que tinham ido comer os frutos da roça, fazia sossegadamente um balaio, quando me apareceu Papai que me disse "Bom dia, cunhado" e me descarregou na cabeça um golpe de oirapên. Ao dar acordo de mim, a luta se travava na roça entre os guerreiros das duas tribos. Fugi, e no segundo dia fui alcançado pelo indio que os caiguás soltaram para noticiar a nossa derrota. Chegamos juntos ao toldo de meu pai, regressando com os nossos guerreiros, ao terceiro dia, para a desforra. Ocultamo-nos nas imediações do acampamento, quando vimos chegar Lua Branca que fora buscar água no rio. Aprisionamo-la e, enquanto os nossos guerreiros sustentavam a luta, levamo-la para o nosso toldo. Nós soubemos que Papai sempre procurou libertá-la. Sabíamos de todos os seus passos; vimos que despediu os seus guerreiros e ficou só; nunca perdemos de vista os seus movimentos em torno do nosso acampamento, para roubar Jacintim.

"Num dia de festa, da nossa tribo, quando toda a nossa gente se achava reunida, dançando e bebendo, Papai sozinho, de oirapên em punho, entrou com arrogância no nosso acampamento. Sua temeridade a todos nós surpreendeu. Paramos de dançar, enquanto ele caminhou em direção de Lua Branca, e jogando fora o oirapên, sentou-se junto dela. "Lembrando-se do golpe que ele me dera na cabeça, peguei da sua arma, caminhei para ele e ergui a acha formidável para o matar. Papai cruzou os braços e olhou-me com tal expressão de desprezo, que deixei cair o oirapên, sem ânimo para desferir o golpe.

Meu pai, o cacique Coí, o mais valente guerreiro caigangue, ergueu-a do chão, dançou à volta de Papaí, enquanto as buzinas de guerra ecoavam no silêncio da mata, e desfechou-lhe um golpe que o prostrou sem vida!

"Lua Branca levantou-se, então, pegou o oirapên e num gesto rápido acometeu meu pai, que caiu morto! Um dos nossos guerreiros flechou-a no coração! As buzinas silenciaram. A tribo inteira emudeceu e estatelou de assombro"...

* * *

E Xak-Xondere terminou, lentamente, a narrativa: "Enterramos os três na mesma cova...


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...