AMOR CAIGUÁ
Antes
de sua emigração para o vale do Ivaí, nas proximidades da serra dos Dourados,
viviam os pacíficos Caiguás ao ocidente do rio Paraná, onde eram de contínuo molestados
pelos indomáveis Guaicurus, habitantes das duas margens do rio Imbotetiú, afluente
do Paraguai.
Perturbados
assim na sua vida sedentária e laboriosa de agricultores e tecelões, os Caiguás
resolveram mudar-se do sítio onde eram constantemente inquietados pelos seus
vizinhos. Mandando, para isso, investigar a margem oriental do rio Paraná,
pouco acima da foz do Ivaí e ao longo deste, descobriram os Campos de Jacareí,
próximos da serra dos Dourados, propícios às suas efetivas moradias. Aí
mandaram fazer grandes roças de milho, feijão, cana-de-açúcar, abóbora e
algodão, preparatórias da mudança dos seus lares. Quatro luas após a plantação
dessas roças, Papaí, o grande cacique Caiguá, mandou levantar o acampamento e
iniciar a marcha. De todos os ângulos da terra conquistada pelos seus
antepassados e abandonada então, ressoaram, roucas e tristes, as buzinas
avisadoras.
A
primeira leva de emigrados atravessou o Rio Paraná e prosseguiu a marcha
subindo o Ivaí em direção às roças de Jacareí, enquanto Papai providenciava a
travessia do Rio-Mar pelo grosso da coluna. Ainda se achava, porém, o chefe
Caiguá ao ocidente do estuário, por falta de canoas para a sua gente, quando
teve notícia de que os primeiros enviados haviam sido inopinadamente atacados e
dizimados por gente bravia, que falava uma língua para eles estranha, e que assaltava
e dominava as roças.
Ativando
a passagem do grande rio, feita até em cascas de jaracatiá, Papai e seus
guerreiros em breve se acharam no local do morticínio. Enterraram os cadáveres,
recolheram do campo da luta cinquenta cacetes ensanguentados, que serviriam
vindita, e romperam, pela madrugada, ao encontro dos matadores.
Próximo
às roças um índio caingangue tecia um balaio à porta de uma cabana. Era
Xaque-Xondere, filho do cacique inimigo.
Ao
vê-lo destacou-se Papai dos guerreiros, aproximou-se do seu rival e
erguendo-lhe sobre a cabeça formidável oirapên, desfechou-lhe um golpe que o
estendeu desfalecido. Deram, então, apertado sitio à roça onde os caingangues
devastavam o restante das culturas, assando abóboras em extensos braseiros, e a
todos mataram com os próprios cacetes ainda tintos de sangue generoso dos
caiguás. Um, apenas, apanharam vivo e soltaram, para que fosse dizer à sua
gente que a roça fora retomada, e que os guerreiros de Papaí a desafiavam para
nova luta.
* * *
Dias
se passaram sem que os caingangues aparecessem, e durante esse tempo os caiguás
ergueram suas cabanas no local da vindita. Mas, certa vez, ouviu-se, partindo
de um ribeiro próximo, o grito desesperado de Jacitim, a linda esposa de Papai,
que o inimigo raptava. Jacitim, Lua Branca, era o ídolo da tribo. Fora roubada,
em pequenina, aos castelhanos do Paraguai, criada pelos caiguás e se casara com
o cacique. Sua beleza era o encanto da tribo, inteira, sua bondade e sua graça
o maior orgulho da comunidade.
Todos
se precipitaram para a salvar. O choque das duas tribos foi tremendo: as setas
voavam de todos os lados; a oirapên, brandida com ódio, abria feridas de morte;
mas, enquanto rugiam os adversários e no campo do pleito se estorciam os
agonizantes, os raptores conduziam Lua Branca ao toldo de Coí, o chefe supremo
dos caingangues.
Papai,
com seus árdegos guerreiros, lhes correu ao encalço pela selva a dentro. Dias
inteiros investigou os passos dos arroios, os capões, as serras, a mata
espessa. Noites infindáveis, alerta, perscrutou os sons pressagos que partiam
do ululo do vento nas alterosas ramadas da floresta ou do cair das águas nas
corredeiras, neles supondo ouvir os apelos de Lua Branca.
Mas,
um dia, o cacique despediu os seus guerreiros, dizendo que ficaria só com a sua
grande mágoa, ou regressaria com Jacitim, ou morreria onde ela estivesse. E
ficou, na foz do Ivaí, como a estátua de um leão vencido mas arrogante,
estimulado no seu intento pelas próprias feridas que sangravam. Por trás dele
se erguia, luminosa, a aresta mais alta da serra dos Dourados; em linha
oblíqua, para o Norte, avistava-se o outeiro em cuja base superior o Ivinhema
desemboca, escachoante, nas águas oceânicas do Paraná; embaixo surgiam, das
névoas da manhã, o barranco do Itacoatiá e a foz do Maracaí.
* * *
Nunca
mais os caiguás o avistaram.
* * *
Certo
dia, porém, perdidos numa caçada, alguns índios de Culuminguaçu — viram
uma espiral de fumo que saia da mata e se confundia com o azul do céu.
Caminharam nessa direção e deram com uma cabana erguida debaixo de alteroso
ipê, doirado de flores.
Era
a cabana de Xak-Xondere, caingangue caçador que, embora inimigo, os acolheu com
hospitalidade. Mantas de caça grossa, — de antas, de
porcos-do-mato, abasteciam a vivenda do índio solitário, pendentes de traves e
varais, numa grande abundância. Finda a refeição, os caiguás rememoraram os
trágicos acontecimentos que dividiram as duas tribos, até o desaparecimento de
Papai, ouvindo o caingangue em silêncio, a dolorosa e longa narrativa.
* * *
Por
fim falou Xondere, lenta e pausadamente:
— "Tudo foi
assim. Agora eu lhes vou contar o resto: Nesse tempo eu era moço, e meu pai,
Coí era o chefe da tribo. Numa das nossas excursões ao rio Paraná encontramos as
roças e, como elas estivessem maduras, ai acampamos.
Quando
os caiguás chegaram nós os percebemos e os assaltamos. Dominávamos inteiramente
a situação; mas um dia, isolado dos meus, que tinham ido comer os frutos da
roça, fazia sossegadamente um balaio, quando me apareceu Papai que me disse
"Bom dia, cunhado" e me descarregou na cabeça um golpe de oirapên. Ao
dar acordo de mim, a luta se travava na roça entre os guerreiros das duas
tribos. Fugi, e no segundo dia fui alcançado pelo indio que os caiguás soltaram
para noticiar a nossa derrota. Chegamos juntos ao toldo de meu pai, regressando
com os nossos guerreiros, ao terceiro dia, para a desforra. Ocultamo-nos nas
imediações do acampamento, quando vimos chegar Lua Branca que fora buscar água
no rio. Aprisionamo-la e, enquanto os nossos guerreiros sustentavam a luta, levamo-la
para o nosso toldo. Nós soubemos que Papai sempre procurou libertá-la. Sabíamos
de todos os seus passos; vimos que despediu os seus guerreiros e ficou só;
nunca perdemos de vista os seus movimentos em torno do nosso acampamento, para
roubar Jacintim.
"Num
dia de festa, da nossa tribo, quando toda a nossa gente se achava reunida,
dançando e bebendo, Papai sozinho, de oirapên em punho, entrou com arrogância
no nosso acampamento. Sua temeridade a todos nós surpreendeu. Paramos de
dançar, enquanto ele caminhou em direção de Lua Branca, e jogando fora o
oirapên, sentou-se junto dela. "Lembrando-se do golpe que ele me dera na
cabeça, peguei da sua arma, caminhei para ele e ergui a acha formidável para o
matar. Papai cruzou os braços e olhou-me com tal expressão de desprezo, que
deixei cair o oirapên, sem ânimo para desferir o golpe.
Meu
pai, —
o cacique Coí, o mais valente guerreiro caigangue, ergueu-a do chão, dançou à
volta de Papaí, enquanto as buzinas de guerra ecoavam no silêncio da mata, e
desfechou-lhe um golpe que o prostrou sem vida!
"Lua
Branca levantou-se, então, pegou o oirapên e num gesto rápido acometeu meu pai,
que caiu morto! Um dos nossos guerreiros flechou-a no coração! As buzinas silenciaram.
A tribo inteira emudeceu e estatelou de assombro"...
* * *
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