4/12/2025

Ahasverus (Lenda), pelo Padre Francisco Bernardino

 

AHASVERUS

— Ahasverus!

Sou eu, o maldito de Deus e dos homens; tendo, como Caim, marcada a fronte com o sinal indelével da vingança eterna; condenado, pela vontade d’Aquele que tudo pode, a viver, a viver indefinidamente na Terra!

Ah! não posso, não me é dado o morrer!

Disse ao Cristo, quando parara por um momento à minha porta: “Caminha”, e condenou-me o Eterno a caminhar sem cessar, a caminhar sempre, até a consumação dos séculos!

Essa palavra que horroriza o homem, porém que eu procuro como o árabe do deserto procura a sombra do oásis ou a fonte em que refrigera as fauces; essa palavra, que quer dizer paralisação de todas as dores, termo de todos os sofrimentos, cessação de todos os males, sono de que se não desperta, descanso da lousa, paz eterna dos túmulos, a morte, a esperança derradeira e querida nas agonias violentas do desespero, nas ânsias do desalento, não a tenho, não a posso ter, porque me não é dado morrer.

Tudo tem desaparecido da Terra; as gerações se têm sucedido às gerações; têm surgido impérios e ao depois desabado para outros surgirem em lugar dos que desapareceram.

Espécies inteiras de animais, milhões de espécies de vermes, aves do céu e peixes do mar, se têm aniquilado, ao passo que outras surgem animadas, para terem também seu dia derradeiro.

Tudo tem desaparecido da Terra, que constantemente se modifica e se transforma; tudo!... Só eu, Ahasverus, eu, o maldito de Deus e dos homens, só eu não posso morrer! O que não tenho visto nesse voltear de tantos séculos; que de transformações, que de espetáculos assombrosos não têm presenciado meus olhos! Vi o império dos Césares crescer e estender-se como imensa serpente abarcando a Terra toda. Vi aquele corpo de gigante, gasto pelos excessos e pelos vícios, ir pouco e pouco perdendo a robustez e o vigor, até cair inanimado e frio na terra que por tantos séculos dominara altivo. Vi hordas de bárbaros agarrarem-se àquele corpo sem vida, como aves de rapina despedaçando a presa, disputarem-se os fragmentos, lutarem, destruírem-se, e novos impérios se irem formando das frações divididas daquele grande império. Vi as conquistas assombrosas da religião do Cristo, e os apóstolos da nova lei levando a luz da fé e da civilização às mais remotas e agrestes regiões do globo.

Tudo hei visto; tenho acompanhado todos os cataclismas por que tem passado a humanidade; tenho assistido às lutas entre os povos; tenho presenciado os horrores, hei sido espectador de todos os grandes dramas representados no imenso cenário do mundo.

Entretanto hei sobrevivido a tudo, embora tenha arrostado todos os perigos, embora tenha procurado a morte sob as mil diversas formas com que se reveste... embalde!

Quando o manto negro da peste se desenrola ameaçador por sobre os campanários das cidades, levando a desolação e o terror a todos os corações; quando o incêndio devora os campos e infrenes as paixões dos homens vão saciar-se no estridor dos combates, no tinir das armas, no fumo da pólvora, na explosão da metralha, aí vou eu... insensato e mísero que sou!! Marcou-me na fronte o dedo da vingança celeste e o fantasma da peste passa carrancudo e soturno por ao pé de mim, sem erguer, sequer, os olhos, e respeita-me o fogo, e por meus ouvidos vão voando as balas, sem ao menos me roçarem as vestes!

Oh! Cristo! Cristo! bem mo disseste tu, quando acurvado ao peso de tua cruz, subindo a ladeira do Gólgota, quiseste ofegante parar por um momento e descansar à porta de minha casa!

Bem mo disseste, quando, repelindo de meu coração todos os sentimentos de homem, apontei-te para a estrada e te gritei: “Caminha!”

Sim, bem me disseste que caminharias, porém que chegarias ao teu destino, ao passo que eu caminharia, caminharia sempre, sem interrupção, sem descanso, até que, como juiz, de novo voltasses à Terra.

Bem me disseste que se fechariam as cidades quando delas me aproximasse e que me deixarias por fardo o peso de tua cruz e por bebida o absinto de teu cálix!

Ah! sou o maldito de Deus e dos homens, sou o judeu errante, o homem que não morre, que caminha sempre e sempre.

Basta... Deve estar satisfeita tua vingança, tu a quem conheci tão humano e misericordioso; suspende de sobre mim essa maldição que me tortura; termina esse desespero que me devora, esse ansiar violento em que vivo; faz emudecer a voz eterna e inexorável que noite e dia me grita aos ouvidos: “Caminha!”

Caminhar! caminhar sempre, sem repousar um momento, sem cerrar um instante só as pálpebras... é horrível, Senhor, é bem horrível!

Perdoa-me, Cristo, perdoa-me a dureza do coração; perdoa-me as expressões saídas dos lábios; perdoa-me pela cruz que me deixaste, pelo cálix de absinto que hei tantas vezes tragado!

E o mísero parou um momento — imperceptível como o pensamento; uma lágrima lhe correu longa pelas faces cavadas; e ao depois, sacudindo a poeira das sandálias e tomando o bordão nodoso, soltou um gemido de desalento e rápido desapareceu na curva da montanha.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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