AHASVERUS
— Ahasverus!
Sou eu, o maldito de Deus e dos
homens; tendo, como Caim, marcada a fronte com o sinal indelével da vingança eterna;
condenado, pela vontade d’Aquele que tudo pode, a viver, a viver
indefinidamente na Terra!
Ah! não posso, não me é dado o
morrer!
Disse ao Cristo, quando parara por
um momento à minha porta: “Caminha”, e condenou-me o Eterno a caminhar sem
cessar, a caminhar sempre, até a consumação dos séculos!
Essa palavra que horroriza o homem, porém que eu procuro como o árabe do deserto procura a sombra do oásis ou a fonte em que refrigera as fauces; essa palavra, que quer dizer paralisação de todas as dores, termo de todos os sofrimentos, cessação de todos os males, sono de que se não desperta, descanso da lousa, paz eterna dos túmulos, a morte, a esperança derradeira e querida nas agonias violentas do desespero, nas ânsias do desalento, não a tenho, não a posso ter, porque me não é dado morrer.
Tudo tem desaparecido da Terra; as
gerações se têm sucedido às gerações; têm surgido impérios e ao depois desabado
para outros surgirem em lugar dos que desapareceram.
Espécies inteiras de animais,
milhões de espécies de vermes, aves do céu e peixes do mar, se têm aniquilado,
ao passo que outras surgem animadas, para terem também seu dia derradeiro.
Tudo tem desaparecido da Terra, que
constantemente se modifica e se transforma; tudo!... Só eu, Ahasverus, eu, o
maldito de Deus e dos homens, só eu não posso morrer! O que não tenho visto
nesse voltear de tantos séculos; que de transformações, que de espetáculos
assombrosos não têm presenciado meus olhos! Vi o império dos Césares crescer e
estender-se como imensa serpente abarcando a Terra toda. Vi aquele corpo de
gigante, gasto pelos excessos e pelos vícios, ir pouco e pouco perdendo a
robustez e o vigor, até cair inanimado e frio na terra que por tantos séculos
dominara altivo. Vi hordas de bárbaros agarrarem-se àquele corpo sem vida, como
aves de rapina despedaçando a presa, disputarem-se os fragmentos, lutarem,
destruírem-se, e novos impérios se irem formando das frações divididas daquele
grande império. Vi as conquistas assombrosas da religião do Cristo, e os
apóstolos da nova lei levando a luz da fé e da civilização às mais remotas e
agrestes regiões do globo.
Tudo hei visto; tenho acompanhado
todos os cataclismas por que tem passado a humanidade; tenho assistido às lutas
entre os povos; tenho presenciado os horrores, hei sido espectador de todos os
grandes dramas representados no imenso cenário do mundo.
Entretanto hei sobrevivido a tudo,
embora tenha arrostado todos os perigos, embora tenha procurado a morte sob as
mil diversas formas com que se reveste... embalde!
Quando o manto negro da peste se
desenrola ameaçador por sobre os campanários das cidades, levando a desolação e
o terror a todos os corações; quando o incêndio devora os campos e infrenes as
paixões dos homens vão saciar-se no estridor dos combates, no tinir das armas,
no fumo da pólvora, na explosão da metralha, aí vou eu... insensato e mísero
que sou!! Marcou-me na fronte o dedo da vingança celeste e o fantasma da peste
passa carrancudo e soturno por ao pé de mim, sem erguer, sequer, os olhos, e
respeita-me o fogo, e por meus ouvidos vão voando as balas, sem ao menos me
roçarem as vestes!
Oh! Cristo! Cristo! bem mo disseste
tu, quando acurvado ao peso de tua cruz, subindo a ladeira do Gólgota, quiseste
ofegante parar por um momento e descansar à porta de minha casa!
Bem mo disseste, quando, repelindo
de meu coração todos os sentimentos de homem, apontei-te para a estrada e te
gritei: “Caminha!”
Sim, bem me disseste que
caminharias, porém que chegarias ao teu destino, ao passo que eu caminharia,
caminharia sempre, sem interrupção, sem descanso, até que, como juiz, de novo
voltasses à Terra.
Bem me disseste que se fechariam as
cidades quando delas me aproximasse e que me deixarias por fardo o peso de tua
cruz e por bebida o absinto de teu cálix!
Ah! sou o maldito de Deus e dos
homens, sou o judeu errante, o homem que não morre, que caminha sempre e
sempre.
Basta... Deve estar satisfeita tua
vingança, tu a quem conheci tão humano e misericordioso; suspende de sobre mim
essa maldição que me tortura; termina esse desespero que me devora, esse ansiar
violento em que vivo; faz emudecer a voz eterna e inexorável que noite e dia me
grita aos ouvidos: “Caminha!”
Caminhar! caminhar sempre, sem
repousar um momento, sem cerrar um instante só as pálpebras... é horrível,
Senhor, é bem horrível!
Perdoa-me, Cristo, perdoa-me a
dureza do coração; perdoa-me as expressões saídas dos lábios; perdoa-me pela
cruz que me deixaste, pelo cálix de absinto que hei tantas vezes tragado!
E o mísero parou um momento —
imperceptível como o pensamento; uma lágrima lhe correu longa pelas faces
cavadas; e ao depois, sacudindo a poeira das sandálias e tomando o bordão
nodoso, soltou um gemido de desalento e rápido desapareceu na curva da
montanha.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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