4/05/2025

A guarida de pedra (Conto), de Fagundes Varela

 


A GUARIDA DE PEDRA

Eu tinha chegado a Santos no vapor Josefina, essa pobre Josefina que, já cansada de sua mísera existência e alquebrada pelos fardos imensos que de contínuo suportava, disse adeus à luz do sol e foi dormir nos palácios de coral junto às ossadas do Leviatã e do Mastodonte, arrebatando consigo grande número de exemplares das primeiras obras de um jovem poeta muito meu conhecido. Estávamos no mês de novembro; o calor era insuportável, os mosquitos nos perseguiam atrozmente, a mim e mais dois companheiros, que me olvidei de mencionar, como se fôssemos outros tantos faraós, e o resto desse enjoo tão amaldiçoado por D. Juan nos torturava o estômago horrivelmente. Tínhamo-nos hospedado no Hotel D., onde passamos um dia inteiro a apreciar o novo Batel que representava um inglês discutindo com dois franceses e três alemães; as monótonas tacadas de um bilhar sempre ocupado, e o aroma gastronômico dos camarões e lagostas que não estava muito em harmonia nesses momentos com o estado despótico de nossos buchos doentes.

À tarde, meus dois amigos vestiram-se cuidadosamente, e, acendendo os indispensáveis charutos, cada um tomou para seu lado. Eu, porém, que me achava horrivelmente spleenético, peguei em um volume de J. Sand — As cartas de um viajante, julgo eu — e, dirigindo-me para a praia, aluguei uma canoa e ordenei que me conduzissem a Bertioga, onde tinha um pescador meu conhecido, homem de oitenta anos, agradável ao último ponto, e excelente narrador de legendas.

Era já bastante tarde quando cheguei. Saltei à praia e dirigi-me à casa de meu velho amigo; bati, o octogenário recebeu-me com vivas demonstrações de alegria e puxando um escabelo fez-me sentar.

O calor era intenso, mas, entretanto, um grande fogo de ramos secos ardia no meio da cabana, e alumiava, com seus clarões, vermelhos e trêmulos, as denegridas paredes donde pendiam arpões de ferro, redes de finas malhas, e mais outros arranjos que sói empregar-se nas pescarias.

Como estava inundado de suor, lancei minha sobrecasaca e chapéu a um lado e desapertei a gravata, e, depois de haver conversado algum tempo com o pescador, sobre coisas gerais, pedi-lhe que me contasse alguma história desses lugares. Por alguns minutos concentrou-se o ancião como para folhear o livro das recordações de sua longa existência, depois disse-me:

— Vou vos contar uma triste história sucedida bem perto de nós, na fortaleza da Bertioga. Eu era muito pequenino quando ouvi o barulho que produziu este acontecimento, ouvi-me.

E, unindo os tições da fogueira, deu começo à narração. Eis pouco mais ou menos o que me contou ele:

“Havia, há muitos anos, no fim da muralha principal que protege a fortificação de São João da Bertioga, uma guarida feita de uma só pedra, onde nas noites de chuva e tempestade se abrigavam os soldados que faziam sentinela. Tinha essa guarida duas janelinhas gradeadas de ferro, em forma de cruz, que davam ambas para o mar, e no chão, bem no fundo, uma espécie de respiradouro ou buraco que servia para deixar sair as águas que porventura a invadissem. Por baixo levantavam-se grandes e escarpados rochedos onde as vagas se arrojavam, soltando continuados borrifos de refervente escuma e desprendendo lamentosos rugidos.

No tempo em que o tenente R. era comandante da fortaleza, os habitantes das imediações falavam de visões e espectros medonhos que, justamente quando o brônzeo relógio acabava de soar a última pancada de meia-noite, apareciam junto à guarida de pedra horrorizando e assombrando tudo. Os soldados tinham-se tornado escravos de um terror sem limites; pediam de contínuo ao comandante que tivesse compaixão deles, que os poupasse às cenas diabólicas que soíam acontecer todas as noites, que mandasse enfim benzer por um padre aquela guarida maldita; porém ele sorria-se desdenhosamente, chamava-os de medrosos e covardes, e os obrigava a tomar seu posto.

Uma noite, distribuindo as sentinelas, mandou para a guarida de pedra o soldado André. O pobre homem lançou-se aos pés do seu superior, pediu em nome de quantos santos existem que o dispensasse por aquela vez; porém, severo e inflexível, o comandante disse-lhe duras palavras, fez-lhe ríspidas ameaças, e o mísero soldado não teve remédio senão resignar-se e ir para o posto tremendo, onde lhe era dever velar até que outro o fosse substituir. Quando tinha decorrido o tempo marcado para a vigia de André, e um seu camarada vinha tomar-lhe o lugar, encontrou-o este de bruços, lívido e sem sentidos, a espingarda e o capote lançados a um lado. Recolheram-no à enfermaria e no outro dia ele principiou a contar aos companheiros a visão que tivera durante a noite.

O comandante entrava nesse momento.

— Então, André, como vais? — perguntou ele.

— Melhor, um pouco melhor, meu comandante — respondeu o soldado —, o susto quase me matou.

— Que história de susto estás aí a dizer?

— Meu comandante, eu vi, eu...

— Então o que foi que viste? Conta-me isso, deve ser divertido — disse R. com voz motejadora.

O soldado olhou algum tempo fixamente para o comandante e calou-se.

— Porém tu não dizes o que viste? — perguntou este.

— Se eu contar não o acreditareis, pensareis que é uma mentira, ou que foi o medo que me enganou, entretanto aí está Guilherme que também viu.

— É verdade — disse um soldado corpulento adiantando-se —, foi no sábado quando eu estava de sentinela, por sinal que quando Francisco me veio substituir eu estava trêmulo e branco como um defunto.

— É verdade — atestou Francisco saindo também de seu canto.

Enfim, a guarda toda tinha por experiência própria conhecimento da aparição das almas do outro mundo na fortaleza, exceto o velho Gustavo e o pequeno Joaquim, que só o sabiam por ouvir falar.

— Bem — disse o comandante —, silêncio; agora tu, André, conta-me minuciosamente o que viste.

O soldado levantou-se um pouco sobre o cotovelo, passou a mão pela testa, e falou desta maneira:

— Eu estava encostado à guarida com minha espingarda ao lado e assobiava para distrair-me do medo que se tinha apoderado de mim. Sem uma estrela acordada, o céu era negro como uma furna, o vento corria desesperado, e o mar empolado batia com tal fúria sobre as pedras que até fazia a escuma entrar pelas janelinhas da guarida. De repente o relógio principiou a tocar; contei até onze pancadas; quando chegou às doze, ouvi uma gargalhada tão estridente, tão medonha, que os cabelos se me arrepiaram na cabeça, e a espingarda caiu de minhas mãos trêmulas; a gargalhada tinha soado perto, bem perto, a quatro passos de mim!... Nossa Senhora, agora mesmo parece-me que ainda a tenho nos ouvidos!...

André interrompeu-se, os camaradas benzeram-se, e o comandante disse com interesse:

— Continua, meu rapaz, continua.

O soldado prosseguiu nestes termos:

— Inda bem a gargalhada não tinha acabado de soar, que eu escutei o som lúgubre e funerário de uma sineta, era toque lento e compassado como o que anuncia um enterro. O suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes rangiam com força e minhas pernas tremiam como varas verdes. Voltei o rosto para o lado... Oh, meu Deus! era horrível o que eu vi!...

— Então cala-te!... — gritou o comandante já um pouco impressionado.

— Eu vi — continuou André lentamente —, vi uma figura sombria e medonha: era um frade; o capuz cobria-lhe a cabeça, e lá dentro, à luz amarelenta de um círio que trazia na mão, divisei um rosto lívido e esverdeado como o de um cadáver, e dois olhos que ardentes e inflamados me faziam correr calafrios nas veias. Atrás dele vinham quatro vultos mais alvos do que a neve, e seguravam com uma mão um archote fumarento, enquanto a outra sustinha um caixão mortuário. Eles caminhavam lentos que parecia gastar uma hora para mover um pé; e cantavam com voz tumular e cavernosa a encomendação dos defuntos. Um vento gelado e furioso corria por todos os lados, as aves da morte piavam desoladamente, as ondas exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas contra as outras. Entretanto, a diabólica procissão caminhava sempre. O frade que ia na frente estava já perto, e estendia seu braço de esqueleto para me agarrar.

“‘Valha-me, Nossa Senhora!’, gritei eu, então tudo sumiu-se, frade, espectros, caixão mortuário, e eu caí sem sentidos no chão!”

Os soldados estavam pasmos e horrorizados, o comandante pensava.

— Entretanto eu não sonhava, nem estou agora mentindo — disse André —, vi com estes dois olhos que a terra há de comer, e...

— Qual viste! qual viste!... Não viste coisa alguma — gritou uma voz fora da porta e um soldado corpulento e trigueiro entrou arrebatadamente.

— Perdão, meu comandante, perdão — disse ele surpreendido deparando com seu superior.

— Vem cá — disse este —, então tu não crês no que contou teu companheiro?

— Eu não, senhor — respondeu o soldado —, essas coisas só aparecem aos medrosos e covardes, e eu nada tenho disso.

— Então eu sou medroso, sou covarde, Jorge? — disse André, olhando fixamente para o rosto bronzeado de um seu camarada.

— Tu? tu és mais poltrão do que uma galinha.

— Pois, olha — retorquiu André —, se estivesses no meu lugar, talvez te custasse mais caro.

— Ah! ah! ah! — gargalhou Jorge. — Para te mostrar que tudo isso não passa de asneiras — E voltou-se para o comandante —, eu peço licença, meu comandante, para ficar hoje de sentinela na guarida de pedra.

Os soldados olharam todos espantados para Jorge, julgavam impossível que, depois da narração de André, alguém se lembrasse mais disso. Sabiam, é verdade, que o soldado era valente e destemido, que seu corpo estava coberto de cicatrizes, que nunca recuara ante o número dos inimigos fosse ele qual fosse, porém achavam temeridade, loucura, o tentar ele combater com espíritos.

A licença foi concedida. Quando chegou a hora, Jorge escorvou a espingarda, carregou duas pistolas, e foi-se postar cantarolando na guarida. Seus companheiros viram-no preparar-se espantados de tanto sangue-frio, e foi com uma espécie de terror que o viram descuidosamente meter-se no seu abrigo de pedra, à espera dos tremendos inimigos. Depois retiraram-se todos e puseram-se a conversar junto do fogo, com o ouvido alerta.

A noite era negra e tempestuosa, os ventos rugiam pela floresta, lúgubres e desenfreados como os sombrios demônios de Ramayan, as ondas referventes de ardentias agitavam-se com espantosos rugidos como se defendessem o misterioso tesouro dos Nibelungen, o trovão retumbava pelo espaço como o ronco de uma população de Titãs adormecidos.

Quando o relógio principiou a soar lenta e lugubremente as badaladas de meia-noite, Jorge aprontou suas armas, e pôs-se à espera do que viesse.

Quando, porém, a décima segunda pancada acabou de soar, o soldado sentiu uma ventania tremenda, devastadora como o simum asiático, que parecia derribar tudo em sua passagem, e o dobre longínquo da sineta dos mortos acompanhada de uma salmodia chegou a seus ouvidos. O valente soldado estremeceu um pouco, mas, reavendo depois todo o sangue-frio, riu-se consigo mesmo e murmurou: “É o vento, é a tempestade que ruge”. Entretanto, o toque aproximava-se cada vez mais, e o coro medonhamente solene restrugia abafando o bramido das vagas.

— Dir-se-ia que tenho medo? — falou Jorge. — Porém não, é preciso ver. — E deu um passo fora da guarida.

Lá vinha o medonho frade na frente, com sua face esverdeada e sinistra, seu olhar de Satã debaixo do capuz; atrás dele, à luz macilenta dos círios, seguia-se o caixão conduzido pelos quatro espectros alvos como a neve. Jorge sentiu os cabelos se arrepiarem e o frio do terror correr-lhe pelo corpo, porque a estranha procissão aproximava-se mais e mais, e vinha em sua direção. Avançou mais um passo e gritou com a voz alterada, preparando a espingarda:

— Parai aí!... senão faço fogo!

Os fantasmas, porém, caminhavam sempre, e já estavam a poucos passos. Então Jorge levou a espingarda ao rosto e fez fogo.

Nesse momento, um vento glacial e empestado passou-lhe pela fronte e tomou-lhe a respiração; o soldado caiu como se sentisse o peito despedaçar-se debaixo de garras de bronze.

Os companheiros ouviram o tiro e benzeram-se, mas, possuídos pelo terror, não ousaram ir ver o que era.

No outro dia, a guarida estava deserta. Pelas janelinhas, viam-se fragmentos de roupa ensanguentada e pedaços de carne humana agarrados às grades de ferro. À entrada, no chão, estava um capote militar ensopado de sangue escuro e coalhado pelos frios da noite, e uma espingarda a poucos passos com o cano quebrado e torcido como se fosse de cera!

Não foi possível achar-se os restos do mísero soldado; uma mão terrível e misteriosa cobria de sombras todo este drama de horrores e de sangue.

Algum tempo depois benzeram a guarida, novos soldados vieram à fortaleza, e de Jorge e seu fim trágico só ficou a tradição.”

Aqui o ancião acabou a sua narração e calou-se, eu pus-me a meditar.

No outro dia, pela madrugada, despedi-me do pescador. A aurora era bela e suave, um bando de alvos pássaros rastejava o mar quedo com as asas levianas, uma brisa matinal carregada de eflúvios marinhos batia-me pelo rosto. Entrei na canoa e parti.

Chegando, contei a meus amigos a triste legenda do soldado e, entre uma xícara de café e a prosa, escrevi-a como aí está.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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