A GUARIDA DE PEDRA
Eu tinha chegado a
Santos no vapor Josefina, essa pobre Josefina que, já cansada de sua mísera
existência e alquebrada pelos fardos imensos que de contínuo suportava, disse
adeus à luz do sol e foi dormir nos palácios de coral junto às ossadas do
Leviatã e do Mastodonte, arrebatando consigo grande número de exemplares das
primeiras obras de um jovem poeta muito meu conhecido. Estávamos no mês de
novembro; o calor era insuportável, os mosquitos nos perseguiam atrozmente, a
mim e mais dois companheiros, que me olvidei de mencionar, como se fôssemos
outros tantos faraós, e o resto desse enjoo tão amaldiçoado por D. Juan nos
torturava o estômago horrivelmente. Tínhamo-nos hospedado no Hotel D., onde
passamos um dia inteiro a apreciar o novo Batel que representava um inglês
discutindo com dois franceses e três alemães; as monótonas tacadas de um bilhar
sempre ocupado, e o aroma gastronômico dos camarões e lagostas que não estava
muito em harmonia nesses momentos com o estado despótico de nossos buchos
doentes.
À tarde, meus dois
amigos vestiram-se cuidadosamente, e, acendendo os indispensáveis charutos,
cada um tomou para seu lado. Eu, porém, que me achava horrivelmente
spleenético, peguei em um volume de J. Sand — As cartas de um viajante, julgo eu — e, dirigindo-me para a praia,
aluguei uma canoa e ordenei que me conduzissem a Bertioga, onde tinha um
pescador meu conhecido, homem de oitenta anos, agradável ao último ponto, e
excelente narrador de legendas.
Era já bastante tarde
quando cheguei. Saltei à praia e dirigi-me à casa de meu velho amigo; bati, o
octogenário recebeu-me com vivas demonstrações de alegria e puxando um escabelo
fez-me sentar.
O calor era intenso,
mas, entretanto, um grande fogo de ramos secos ardia no meio da cabana, e
alumiava, com seus clarões, vermelhos e trêmulos, as denegridas paredes donde
pendiam arpões de ferro, redes de finas malhas, e mais outros arranjos que sói
empregar-se nas pescarias.
Como estava inundado
de suor, lancei minha sobrecasaca e chapéu a um lado e desapertei a gravata, e,
depois de haver conversado algum tempo com o pescador, sobre coisas gerais,
pedi-lhe que me contasse alguma história desses lugares. Por alguns minutos
concentrou-se o ancião como para folhear o livro das recordações de sua longa
existência, depois disse-me:
— Vou vos contar uma
triste história sucedida bem perto de nós, na fortaleza da Bertioga. Eu era
muito pequenino quando ouvi o barulho que produziu este acontecimento, ouvi-me.
E, unindo os tições
da fogueira, deu começo à narração. Eis pouco mais ou menos o que me contou
ele:
“Havia, há muitos
anos, no fim da muralha principal que protege a fortificação de São João da
Bertioga, uma guarida feita de uma só pedra, onde nas noites de chuva e
tempestade se abrigavam os soldados que faziam sentinela. Tinha essa guarida
duas janelinhas gradeadas de ferro, em forma de cruz, que davam ambas para o
mar, e no chão, bem no fundo, uma espécie de respiradouro ou buraco que servia
para deixar sair as águas que porventura a invadissem. Por baixo levantavam-se
grandes e escarpados rochedos onde as vagas se arrojavam, soltando continuados
borrifos de refervente escuma e desprendendo lamentosos rugidos.
No tempo em que o
tenente R. era comandante da fortaleza, os habitantes das imediações falavam de
visões e espectros medonhos que, justamente quando o brônzeo relógio acabava de
soar a última pancada de meia-noite, apareciam junto à guarida de pedra
horrorizando e assombrando tudo. Os soldados tinham-se tornado escravos de um
terror sem limites; pediam de contínuo ao comandante que tivesse compaixão
deles, que os poupasse às cenas diabólicas que soíam acontecer todas as noites,
que mandasse enfim benzer por um padre aquela guarida maldita; porém ele
sorria-se desdenhosamente, chamava-os de medrosos e covardes, e os obrigava a
tomar seu posto.
Uma noite,
distribuindo as sentinelas, mandou para a guarida de pedra o soldado André. O
pobre homem lançou-se aos pés do seu superior, pediu em nome de quantos santos
existem que o dispensasse por aquela vez; porém, severo e inflexível, o
comandante disse-lhe duras palavras, fez-lhe ríspidas ameaças, e o mísero
soldado não teve remédio senão resignar-se e ir para o posto tremendo, onde lhe
era dever velar até que outro o fosse substituir. Quando tinha decorrido o
tempo marcado para a vigia de André, e um seu camarada vinha tomar-lhe o lugar,
encontrou-o este de bruços, lívido e sem sentidos, a espingarda e o capote
lançados a um lado. Recolheram-no à enfermaria e no outro dia ele principiou a
contar aos companheiros a visão que tivera durante a noite.
O comandante entrava
nesse momento.
— Então, André, como
vais? — perguntou ele.
— Melhor, um pouco
melhor, meu comandante — respondeu o soldado —, o susto quase me matou.
— Que história de
susto estás aí a dizer?
— Meu comandante, eu
vi, eu...
— Então o que foi que
viste? Conta-me isso, deve ser divertido — disse R. com voz motejadora.
O soldado olhou algum
tempo fixamente para o comandante e calou-se.
— Porém tu não dizes
o que viste? — perguntou este.
— Se eu contar não o
acreditareis, pensareis que é uma mentira, ou que foi o medo que me enganou,
entretanto aí está Guilherme que também viu.
— É verdade — disse
um soldado corpulento adiantando-se —, foi no sábado quando eu estava de
sentinela, por sinal que quando Francisco me veio substituir eu estava trêmulo
e branco como um defunto.
— É verdade — atestou
Francisco saindo também de seu canto.
Enfim, a guarda toda
tinha por experiência própria conhecimento da aparição das almas do outro mundo
na fortaleza, exceto o velho Gustavo e o pequeno Joaquim, que só o sabiam por
ouvir falar.
— Bem — disse o
comandante —, silêncio; agora tu, André, conta-me minuciosamente o que viste.
O soldado levantou-se
um pouco sobre o cotovelo, passou a mão pela testa, e falou desta maneira:
— Eu estava encostado
à guarida com minha espingarda ao lado e assobiava para distrair-me do medo que
se tinha apoderado de mim. Sem uma estrela acordada, o céu era negro como uma
furna, o vento corria desesperado, e o mar empolado batia com tal fúria sobre
as pedras que até fazia a escuma entrar pelas janelinhas da guarida. De repente
o relógio principiou a tocar; contei até onze pancadas; quando chegou às doze,
ouvi uma gargalhada tão estridente, tão medonha, que os cabelos se me
arrepiaram na cabeça, e a espingarda caiu de minhas mãos trêmulas; a gargalhada
tinha soado perto, bem perto, a quatro passos de mim!... Nossa Senhora, agora
mesmo parece-me que ainda a tenho nos ouvidos!...
André interrompeu-se,
os camaradas benzeram-se, e o comandante disse com interesse:
— Continua, meu
rapaz, continua.
O soldado prosseguiu
nestes termos:
— Inda bem a
gargalhada não tinha acabado de soar, que eu escutei o som lúgubre e funerário
de uma sineta, era toque lento e compassado como o que anuncia um enterro. O
suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes rangiam com força e minhas
pernas tremiam como varas verdes. Voltei o rosto para o lado... Oh, meu Deus!
era horrível o que eu vi!...
— Então cala-te!... —
gritou o comandante já um pouco impressionado.
— Eu vi — continuou
André lentamente —, vi uma figura sombria e medonha: era um frade; o capuz
cobria-lhe a cabeça, e lá dentro, à luz amarelenta de um círio que trazia na
mão, divisei um rosto lívido e esverdeado como o de um cadáver, e dois olhos
que ardentes e inflamados me faziam correr calafrios nas veias. Atrás dele
vinham quatro vultos mais alvos do que a neve, e seguravam com uma mão um
archote fumarento, enquanto a outra sustinha um caixão mortuário. Eles
caminhavam lentos que parecia gastar uma hora para mover um pé; e cantavam com
voz tumular e cavernosa a encomendação dos defuntos. Um vento gelado e furioso
corria por todos os lados, as aves da morte piavam desoladamente, as ondas
exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas contra as outras. Entretanto, a
diabólica procissão caminhava sempre. O frade que ia na frente estava já perto,
e estendia seu braço de esqueleto para me agarrar.
“‘Valha-me, Nossa
Senhora!’, gritei eu, então tudo sumiu-se, frade, espectros, caixão mortuário,
e eu caí sem sentidos no chão!”
Os soldados estavam
pasmos e horrorizados, o comandante pensava.
— Entretanto eu não
sonhava, nem estou agora mentindo — disse André —, vi com estes dois olhos que
a terra há de comer, e...
— Qual viste! qual
viste!... Não viste coisa alguma — gritou uma voz fora da porta e um soldado
corpulento e trigueiro entrou arrebatadamente.
— Perdão, meu
comandante, perdão — disse ele surpreendido deparando com seu superior.
— Vem cá — disse este
—, então tu não crês no que contou teu companheiro?
— Eu não, senhor —
respondeu o soldado —, essas coisas só aparecem aos medrosos e covardes, e eu
nada tenho disso.
— Então eu sou
medroso, sou covarde, Jorge? — disse André, olhando fixamente para o rosto
bronzeado de um seu camarada.
— Tu? tu és mais
poltrão do que uma galinha.
— Pois, olha —
retorquiu André —, se estivesses no meu lugar, talvez te custasse mais caro.
— Ah! ah! ah! —
gargalhou Jorge. — Para te mostrar que tudo isso não passa de asneiras — E
voltou-se para o comandante —, eu peço licença, meu comandante, para ficar hoje
de sentinela na guarida de pedra.
Os soldados olharam
todos espantados para Jorge, julgavam impossível que, depois da narração de André,
alguém se lembrasse mais disso. Sabiam, é verdade, que o soldado era valente e
destemido, que seu corpo estava coberto de cicatrizes, que nunca recuara ante o
número dos inimigos fosse ele qual fosse, porém achavam temeridade, loucura, o
tentar ele combater com espíritos.
A licença foi
concedida. Quando chegou a hora, Jorge escorvou a espingarda, carregou duas
pistolas, e foi-se postar cantarolando na guarida. Seus companheiros viram-no
preparar-se espantados de tanto sangue-frio, e foi com uma espécie de terror
que o viram descuidosamente meter-se no seu abrigo de pedra, à espera dos
tremendos inimigos. Depois retiraram-se todos e puseram-se a conversar junto do
fogo, com o ouvido alerta.
A noite era negra e
tempestuosa, os ventos rugiam pela floresta, lúgubres e desenfreados como os
sombrios demônios de Ramayan, as ondas referventes de ardentias agitavam-se com
espantosos rugidos como se defendessem o misterioso tesouro dos Nibelungen, o
trovão retumbava pelo espaço como o ronco de uma população de Titãs
adormecidos.
Quando o relógio
principiou a soar lenta e lugubremente as badaladas de meia-noite, Jorge
aprontou suas armas, e pôs-se à espera do que viesse.
Quando, porém, a
décima segunda pancada acabou de soar, o soldado sentiu uma ventania tremenda,
devastadora como o simum asiático, que parecia derribar tudo em sua passagem, e
o dobre longínquo da sineta dos mortos acompanhada de uma salmodia chegou a
seus ouvidos. O valente soldado estremeceu um pouco, mas, reavendo depois todo
o sangue-frio, riu-se consigo mesmo e murmurou: “É o vento, é a tempestade que
ruge”. Entretanto, o toque aproximava-se cada vez mais, e o coro medonhamente
solene restrugia abafando o bramido das vagas.
— Dir-se-ia que tenho
medo? — falou Jorge. — Porém não, é preciso ver. — E deu um passo fora da
guarida.
Lá vinha o medonho
frade na frente, com sua face esverdeada e sinistra, seu olhar de Satã debaixo
do capuz; atrás dele, à luz macilenta dos círios, seguia-se o caixão conduzido
pelos quatro espectros alvos como a neve. Jorge sentiu os cabelos se arrepiarem
e o frio do terror correr-lhe pelo corpo, porque a estranha procissão
aproximava-se mais e mais, e vinha em sua direção. Avançou mais um passo e
gritou com a voz alterada, preparando a espingarda:
— Parai aí!... senão
faço fogo!
Os fantasmas, porém,
caminhavam sempre, e já estavam a poucos passos. Então Jorge levou a espingarda
ao rosto e fez fogo.
Nesse momento, um
vento glacial e empestado passou-lhe pela fronte e tomou-lhe a respiração; o
soldado caiu como se sentisse o peito despedaçar-se debaixo de garras de
bronze.
Os companheiros
ouviram o tiro e benzeram-se, mas, possuídos pelo terror, não ousaram ir ver o
que era.
No outro dia, a
guarida estava deserta. Pelas janelinhas, viam-se fragmentos de roupa
ensanguentada e pedaços de carne humana agarrados às grades de ferro. À
entrada, no chão, estava um capote militar ensopado de sangue escuro e coalhado
pelos frios da noite, e uma espingarda a poucos passos com o cano quebrado e
torcido como se fosse de cera!
Não foi possível
achar-se os restos do mísero soldado; uma mão terrível e misteriosa cobria de
sombras todo este drama de horrores e de sangue.
Algum tempo depois
benzeram a guarida, novos soldados vieram à fortaleza, e de Jorge e seu fim
trágico só ficou a tradição.”
Aqui o ancião acabou
a sua narração e calou-se, eu pus-me a meditar.
No outro dia, pela
madrugada, despedi-me do pescador. A aurora era bela e suave, um bando de alvos
pássaros rastejava o mar quedo com as asas levianas, uma brisa matinal
carregada de eflúvios marinhos batia-me pelo rosto. Entrei na canoa e parti.
Chegando, contei a
meus amigos a triste legenda do soldado e, entre uma xícara de café e a prosa,
escrevi-a como aí está.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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