A
GRUNA DO EMPAREDADO
Um sítio
agreste e belo.
O sopé de uma
serrania, molhado por um córrego de águas espumantes, encachoeiradas e
rumorosas, cantando dia e noite uma melopeia triste como a vida do sertão,
quando não rugem coléricas precipitando-se de sobre alguma pedra mais alta.
Aí o tigre e o
maracajá bebem à sombra das grumixamas e das gameleiras e amolam as garras
curvilíneas no diorito que as águas molham. Perto, numa garganta da serra, está
a boca escura da gruna, arredondada, exígua. Aquela mancha ameaçadora e
terrorizante, fixa como o olhar da coruja parece ter alguma coisa de animado; a
sua negrura não é o preto inexpressivo da pedra, é o escuro sombrio do
firmamento em noites de treva densa.
Às vezes,
porém, naquele fundo de céu sem sol, brilham duas estrelas, grandes ou
pequenas, fulgurosas ou apenas luzentes, brancas ou de cores várias e
lampejantes; são olhos assustados de mocós, ou pupilas sinistras de onças que
saem do repouso da caverna à procura inocente dos alimentos ou para a
carnificina.
É ali a gruna
do Emparedado, a gruna misteriosa e lendária da serra da Chapada.
Correm a seu
respeito coisas assombrosas, histórias tétricas de mortes e assassinatos.
Casos de meter
medo, de almas penadas e lobisomens, contos fantásticos de mulas sem cabeça e
luzes que andam à meia-noite nos ares, soltas, sozinhas.
Coisas
horrorosas, estas.
Alguém até
vira ali saltar sobre as arestas das penedias um bode preto cheio de chocalhos
e cincerros, de olhos de fogo e chavelhos caprichosamente retorcidos.
Lendas e
histórias de gelar de medo os ânimos mais fortes.
Quando às
Lavras Diamantinas chegou em 1844 o primeiro garimpeiro atraído pela ambição da
riqueza fácil de obter que as jazidas diamantíferas da serra da Chapada
ofereciam aos aventureiros que a procuravam, já encontraram a lenda assombrosa
da gruna.
Ninguém atrevera-se
ainda a entrar lá, mas asseguravam muitos que aquela estreita abertura dava
para uma vasta caverna, grandiosa como um templo cristão, esplendorosa como um
palácio oriental, espécie de moradia encantada, onde todos os adornos
alhambrescos haviam-se petrificado, talvez ao mando poderoso de vontade
misteriosa e desconhecida.
No seu
interior repululava farta a nascente de um rio de ouro, segundo uns, de uma
caudal de sangue, diziam outros.
Entretanto,
nada de verdade havia em tudo isso que contavam.
O caso era
outro.
Em 1840, antes
que as minas da Chapada fossem descobertas, havia já ali diversas fazendas, uma
das quais pertencente a rico e potentado sertanejo.
Era casado.
Tinha em sua
consorte uma confiança que repousava mais no seu desmedido orgulho do que em
seu diminuto amor.
Achava
impossível, o pobre idiota, que houvesse alguém bastante audacioso para
afrontar suas iras e seu poder.
E assim foi
por muito tempo, muito tempo mesmo, que outra coisa não se pode chamar a cinco
anos de vida monótona e solitária.
Um dia
apareceu na fazenda um rapaz sertanejo, chegado sem se saber de onde,
aparentando vinte e poucos anos, ar decidido, rosto bronzeado pelos sóis a
pino, pelas ardentes canículas suportadas nos destampados gerais do sertão:
vaqueiro e domador, tipo enfim do sertanejo que não receia topar o touro, nem o
corcovo do poldro nunca montado.
Simpático
apesar de um pouco selvagem, era no mais um rapaz vivo e valente.
O rico
fazendeiro começou a estimá-lo assim o viu.
Não o deixou
sair mais da fazenda.
E Marcos, por
sua parte, que não tinha destino certo, folha batida pelo vento, peregrino sem
rumo, sempre a vagar sem saber por que, deixou-se ficar, enquanto se dava bem
ali e o seu gênio de boêmio não o impelia a outros lugares.
Poucos dias
passados viu a ama.
De quem foi a
culpa, ninguém pôde jamais afirmar, mas não tardou muito que uma união ilícita
e criminosa os ligasse.
Soube-o o
fazendeiro. O que não se sabe na roça!
Para alguma
coisa há de servir o ócio; é eminentemente bisbilhoteiro, e não é tudo, é mau
também.
Tendo
conhecimento da traição de que fora vítima, o pretensioso mandão jurou
vingar-se.
Seus vaqueiros
tiveram ordem de espreitar o primeiro tigre que entrasse na gruna do Emparedado
e enjaularem-no lá.
Sua ordem
cumprida, uma noite —
noite tristonha e má em que o aguaceiro corria estrepitoso pelas quebradas e o
raio ziguezagueava tonto no espaço — o fazendeiro,
ajudado por dois jagunços de confiança, levou a consorte infiel e o seu amante
e atirou-os ambos na gruta em companhia do cruel felino.
Um requinte de
malvadez que o perverso sertanejo sonhara sem ter jamais tido conhecimento dos
feitos hediondos de Nero e Heliogábalo.
* * *
Lá dentro,
naquela escuridão de abismo, passou-se uma cena terrível que nem o Dante lembrou
para o seu Inferno.
Os olhos da
fera luziam como dois brilhantes de primeira água batidos por um raio de sol.
Tinham
cambiantes bruscas de verde, de amarelo e vermelho.
Um rugido
soturno e colérico desprendia-se-lhe do peito, denunciando o lugar onde se
agachara para contemplar as vítimas.
O tigre tinha
já dois dias de fome e de raiva concentrada e estava disposto ao ataque e à
carnificina.
Marcos nunca
temera a onça, que sempre atacara de frente; mas as condições especiais em que
se achava no momento fizeram-lhe apontar na testa o gelado suor dos grandes
medos.
Ainda assim,
sua natureza valente e habituada ao perigo fez-lhe afrontar de cabeça erguida o
terrível inimigo que tinha em frente.
O sertanejo
tem dessas coisas: treme de medo como uma criança diante do desconhecido e
desafia calma e heroicamente o perigo a que está acostumado.
Passado
ligeiro o primeiro momento de terror, Marcos lembrou-se da faca que lhe haviam
deixado à cinta e de que era forte seu braço.
Segurando na
mão esquerda o chapéu de couro de veado que lhe cobria a cabeça, transformado
agora em escudo, esperou firme o animal, que não demorou-se em atacá-lo.
Luta medonha
travou-se entre o homem e a fera, alumiados somente pelo instinto da
conservação.
Ouviam-se
rugidos a que as abóbadas da caverna repetiam ainda mais medonhos; ouviam-se
gritos breves e lancinantes arrancados pela dor.
Contra as
garras aduncas e a força do tigre o homem tinha somente uma faca e sua
destreza.
Isto fez durar
aquele duelo de morte por mais de vinte minutos.
Por fim, o
olhar da onça que coruscava nas trevas apagou-se e o animal caiu vencido.
Marcos, porém, estava cheio de feridas; tinha nas carnes largos rasgões de onde
o sangue corria livremente.
Foi cair
também inanimado junto de sua companheira de infortúnio, que jazia sem sentidos
no fundo úmido da caverna.
Quando esta,
afinal, voltou a si, e seus olhos habituados à escuridão fizeram-lhe ver o
horrendo espetáculo, quando a algidez do corpo de seu amante, impressionando o
seu tato, fez-lhe conhecer que estava em companhia de um morto, a pobre
desgraçada não teve forças para suportar o golpe e acordou do delíquio para
entrar na noite da razão.
Durante três
dias seus gritos de louca espantaram e gelaram de medo os caçadores que
passavam perto da gruna em procura de veados e os vaqueiros que nas águas do
córrego iam acalmar a sede e descansar à sua frescura do calor do meio-dia.
E assim
formou-se a lenda.
Anos depois,
desabusado gruneiro que ousou penetrar na caverna onde tivera lugar o sangrento
drama lá encontrou dois esqueletos humanos junto à ossada de uma enorme onça.
O homem não se
importou com isso e entregou-se à cata de diamante, que encontrou com fartura.
Estava, porém,
escrito que a caverna se tornaria lendária e serviria de sepultura aos que lá
penetrassem.
Levado pela
ambição, o gruneiro voltou, desta vez com diversos camaradas a quem comunicou
sua felicidade, mas todos lá ficaram sob os escombros de um desmoronamento que
se deu por ocasião dos trabalhos da mineração.
Daí por diante, ninguém
mais atreveu-se a penetrar no funesto subterrâneo da serra da Chapada, apesar
da fama que adquiriu de rico em diamantes.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025
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