4/12/2025

A Gruna do Emparedado (Lenda), por Sérgio Cardoso

A GRUNA DO EMPAREDADO

Um sítio agreste e belo.

O sopé de uma serrania, molhado por um córrego de águas espumantes, encachoeiradas e rumorosas, cantando dia e noite uma melopeia triste como a vida do sertão, quando não rugem coléricas precipitando-se de sobre alguma pedra mais alta.

Aí o tigre e o maracajá bebem à sombra das grumixamas e das gameleiras e amolam as garras curvilíneas no diorito que as águas molham. Perto, numa garganta da serra, está a boca escura da gruna, arredondada, exígua. Aquela mancha ameaçadora e terrorizante, fixa como o olhar da coruja parece ter alguma coisa de animado; a sua negrura não é o preto inexpressivo da pedra, é o escuro sombrio do firmamento em noites de treva densa.

Às vezes, porém, naquele fundo de céu sem sol, brilham duas estrelas, grandes ou pequenas, fulgurosas ou apenas luzentes, brancas ou de cores várias e lampejantes; são olhos assustados de mocós, ou pupilas sinistras de onças que saem do repouso da caverna à procura inocente dos alimentos ou para a carnificina.

É ali a gruna do Emparedado, a gruna misteriosa e lendária da serra da Chapada.

Correm a seu respeito coisas assombrosas, histórias tétricas de mortes e assassinatos.

Casos de meter medo, de almas penadas e lobisomens, contos fantásticos de mulas sem cabeça e luzes que andam à meia-noite nos ares, soltas, sozinhas.

Coisas horrorosas, estas.

Alguém até vira ali saltar sobre as arestas das penedias um bode preto cheio de chocalhos e cincerros, de olhos de fogo e chavelhos caprichosamente retorcidos.

Lendas e histórias de gelar de medo os ânimos mais fortes.

Quando às Lavras Diamantinas chegou em 1844 o primeiro garimpeiro atraído pela ambição da riqueza fácil de obter que as jazidas diamantíferas da serra da Chapada ofereciam aos aventureiros que a procuravam, já encontraram a lenda assombrosa da gruna.

Ninguém atrevera-se ainda a entrar lá, mas asseguravam muitos que aquela estreita abertura dava para uma vasta caverna, grandiosa como um templo cristão, esplendorosa como um palácio oriental, espécie de moradia encantada, onde todos os adornos alhambrescos haviam-se petrificado, talvez ao mando poderoso de vontade misteriosa e desconhecida.

No seu interior repululava farta a nascente de um rio de ouro, segundo uns, de uma caudal de sangue, diziam outros.

Entretanto, nada de verdade havia em tudo isso que contavam.

O caso era outro.

Em 1840, antes que as minas da Chapada fossem descobertas, havia já ali diversas fazendas, uma das quais pertencente a rico e potentado sertanejo.

Era casado.

Tinha em sua consorte uma confiança que repousava mais no seu desmedido orgulho do que em seu diminuto amor.

Achava impossível, o pobre idiota, que houvesse alguém bastante audacioso para afrontar suas iras e seu poder.

E assim foi por muito tempo, muito tempo mesmo, que outra coisa não se pode chamar a cinco anos de vida monótona e solitária.

Um dia apareceu na fazenda um rapaz sertanejo, chegado sem se saber de onde, aparentando vinte e poucos anos, ar decidido, rosto bronzeado pelos sóis a pino, pelas ardentes canículas suportadas nos destampados gerais do sertão: vaqueiro e domador, tipo enfim do sertanejo que não receia topar o touro, nem o corcovo do poldro nunca montado.

Simpático apesar de um pouco selvagem, era no mais um rapaz vivo e valente.

O rico fazendeiro começou a estimá-lo assim o viu.

Não o deixou sair mais da fazenda.

E Marcos, por sua parte, que não tinha destino certo, folha batida pelo vento, peregrino sem rumo, sempre a vagar sem saber por que, deixou-se ficar, enquanto se dava bem ali e o seu gênio de boêmio não o impelia a outros lugares.

Poucos dias passados viu a ama.

De quem foi a culpa, ninguém pôde jamais afirmar, mas não tardou muito que uma união ilícita e criminosa os ligasse.

Soube-o o fazendeiro. O que não se sabe na roça!

Para alguma coisa há de servir o ócio; é eminentemente bisbilhoteiro, e não é tudo, é mau também.

Tendo conhecimento da traição de que fora vítima, o pretensioso mandão jurou vingar-se.

Seus vaqueiros tiveram ordem de espreitar o primeiro tigre que entrasse na gruna do Emparedado e enjaularem-no lá.

Sua ordem cumprida, uma noite  — noite tristonha e má em que o aguaceiro corria estrepitoso pelas quebradas e o raio ziguezagueava tonto no espaço — o fazendeiro, ajudado por dois jagunços de confiança, levou a consorte infiel e o seu amante e atirou-os ambos na gruta em companhia do cruel felino.

Um requinte de malvadez que o perverso sertanejo sonhara sem ter jamais tido conhecimento dos feitos hediondos de Nero e Heliogábalo.

* * *

Lá dentro, naquela escuridão de abismo, passou-se uma cena terrível que nem o Dante lembrou para o seu Inferno.

Os olhos da fera luziam como dois brilhantes de primeira água batidos por um raio de sol.

Tinham cambiantes bruscas de verde, de amarelo e vermelho.

Um rugido soturno e colérico desprendia-se-lhe do peito, denunciando o lugar onde se agachara para contemplar as vítimas.

O tigre tinha já dois dias de fome e de raiva concentrada e estava disposto ao ataque e à carnificina.

Marcos nunca temera a onça, que sempre atacara de frente; mas as condições especiais em que se achava no momento fizeram-lhe apontar na testa o gelado suor dos grandes medos.

Ainda assim, sua natureza valente e habituada ao perigo fez-lhe afrontar de cabeça erguida o terrível inimigo que tinha em frente.

O sertanejo tem dessas coisas: treme de medo como uma criança diante do desconhecido e desafia calma e heroicamente o perigo a que está acostumado.

Passado ligeiro o primeiro momento de terror, Marcos lembrou-se da faca que lhe haviam deixado à cinta e de que era forte seu braço.

Segurando na mão esquerda o chapéu de couro de veado que lhe cobria a cabeça, transformado agora em escudo, esperou firme o animal, que não demorou-se em atacá-lo.

Luta medonha travou-se entre o homem e a fera, alumiados somente pelo instinto da conservação.

Ouviam-se rugidos a que as abóbadas da caverna repetiam ainda mais medonhos; ouviam-se gritos breves e lancinantes arrancados pela dor.

Contra as garras aduncas e a força do tigre o homem tinha somente uma faca e sua destreza.

Isto fez durar aquele duelo de morte por mais de vinte minutos.

Por fim, o olhar da onça que coruscava nas trevas apagou-se e o animal caiu vencido. Marcos, porém, estava cheio de feridas; tinha nas carnes largos rasgões de onde o sangue corria livremente.

Foi cair também inanimado junto de sua companheira de infortúnio, que jazia sem sentidos no fundo úmido da caverna.

Quando esta, afinal, voltou a si, e seus olhos habituados à escuridão fizeram-lhe ver o horrendo espetáculo, quando a algidez do corpo de seu amante, impressionando o seu tato, fez-lhe conhecer que estava em companhia de um morto, a pobre desgraçada não teve forças para suportar o golpe e acordou do delíquio para entrar na noite da razão.

Durante três dias seus gritos de louca espantaram e gelaram de medo os caçadores que passavam perto da gruna em procura de veados e os vaqueiros que nas águas do córrego iam acalmar a sede e descansar à sua frescura do calor do meio-dia.

E assim formou-se a lenda.

Anos depois, desabusado gruneiro que ousou penetrar na caverna onde tivera lugar o sangrento drama lá encontrou dois esqueletos humanos junto à ossada de uma enorme onça.

O homem não se importou com isso e entregou-se à cata de diamante, que encontrou com fartura.

Estava, porém, escrito que a caverna se tornaria lendária e serviria de sepultura aos que lá penetrassem.

Levado pela ambição, o gruneiro voltou, desta vez com diversos camaradas a quem comunicou sua felicidade, mas todos lá ficaram sob os escombros de um desmoronamento que se deu por ocasião dos trabalhos da mineração.

Daí por diante, ninguém mais atreveu-se a penetrar no funesto subterrâneo da serra da Chapada, apesar da fama que adquiriu de rico em diamantes.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025  

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