4/19/2025

A Flor Silvestre (Conto), de Maria Pinto Figueirinhas

A FLOR SILVESTRE

Numa aldeia da montanha habitava uma velhinha que tinha uma filha a quem o povo chamava Flor Silvestre.

Era uma moça formosa, e tão formosa era ela que o povo dos arredores ficava sempre suspenso e enlevado ao ver a formosura daquele rosto.

Aos domingos, quando saía da missa, toda a gente que a rodeava no adro da igreja dizia:

Que linda ela não é! Parece mesmo uma santa fugida dum altar!

Sempre modesta, quando a elogiavam, respondia:

Pelo amor de Deus! não digam que eu sou formosa, porque sou como todas as raparigas.

E, corando como uma romã, quase fugia.

Trabalhava de dia e de noite, e todo o dia cantava no campo. E à tardinha, o seu cantar confundia-se com o canto da cotovia, duma harmonia adorável. Seroava até altas horas da noite, ao pé da sua mãe, que a enchia de ternura com o seu meigo olhar, entristecendo-se, vendo-a a trabalhar sem folga.

São horas de te deitares, Maria. Olha que, daqui a pouco, batem duas horas no campanário, e a candeia já tem pouco azeite.

Pois sim, minha mãe. Eu já vou. Mas bem sabe que amanhã temos de pagar o nosso pão da semana, e eu queria ver se, pela manhã, ia levar a obra para receber.

Sim, filha, mas este sacrifício é muito grande para as tuas forças.

Nada me custa, se não faltar coisa alguma a minha mãe.

No dia seguinte, mal o sol dourava a montanha, lá saiu ela com uma grande trouxa de roupa debaixo do braço, muito lépida, para entregar às freguesas.

O coração transbordava de júbilo, lembrando-se de que o seu trabalho se convertia em pão, para a sua mãe. E tão alegre ia, que nem reparou que a seu lado a seguia um velhinho, com um lindo ramo na mão.

E aproximando-se dela disse:

Flor Silvestre: aceita estas bonitas rosas, irmãs tuas que colhi no campo para te ofertar. Ainda que elas murchem, conserva-as junto da imagem que venerares.

À Flor Silvestre surpreendeu-a semelhante oferenda, mas aceitou-a, reconhecida.

E, seguindo o seu destino, viu sentada num maciço, rodeada de flores, uma pastora com uma grande haste na mão, guardando uma manada de patos.

E ouviu:

Não te aproximes. Tem cuidado, senão ficarás enredada, sem te poderes mover. Mão mágica aqui me prendeu.

A Flor Silvestre ficou triste:

—  Pois tu, mais linda do que essas flores, hás de ficar aí presa para sempre?

Assim estarei, enquanto uma força sobre-humana não me arrancar daqui.

Contou-lhe então a sua história:

Eu era filha do homem mais rico destes arredores. Não era caritativa e não sentia as lágrimas da miséria, porque o meu coração era duro. Meu pai dava esmolas sem conta, e para ver se me tornava caridosa, enchia-me uma saca de ouro, e mandava-me repartir pelos pobres. Um dia, passei, assim, junto dum pobrezinho que me estendeu a mão com lágrimas na voz. Neguei-lhe a esmola, e este é o castigo da minha ação.

Então teu pai era bom?

Um santo.

Morreu?

Sim, já lá está na terra da verdade.

E não tens mais ninguém na família?

Todos morreram.

A Flor Silvestre disse:

Eu ainda tenho mãe, e tão boazinha, que parece mais uma santa do que uma pecadora. Vou-me embora. Não te posso valer, o que me dá muita pena, mas peço a Deus que o teu cativeiro não seja longo.

Partiu a Flor Silvestre com as suas flores apertadas contra o peito e com a ternura duma alma angélica. E, avistando ao lado uma fonte a jorrar numa taça de marfim, exclamou:

Que linda fonte! Deixa-me salpicar as minhas flores com algumas gotas desta água tão cristalina.

E abeirou-se da taça, ficando encantada, quando no meio lhe apareceu um peixe que tinha meio corpo com forma de mulher de rosto formoso, e lhe falou assim:

Escuta-me, menina. Orvalhei essas flores. Agora são um bálsamo consolador que salvará muitos desgraçados da miséria. Os pobrezinhos te bendirão.

Cada vez ficava a Flor Silvestre mais assombrada de tudo quanto os seus olhos fitavam.

Caminhou, encontrando a curta distância uma criancinha, rota, chupada, com a fome estampada no rosto, a chorar que nem uma fonte.

Que tens tu? perguntou a Flor Silvestre.

Oh! meu Deus! socorrei-me, porque tenho muita fome e muito frio. E minha mãe está a morrer na miséria.

E a pequenita chorava tanto que metia dó.

Espera um bocadinho, minha menina. Vem comigo, que eu vou comprar pão para a minha mãezinha, e comeremos todas juntas, porque vou levar-te a casa.

A pequenita começou a chorar de alegria, porque nunca ouvira palavras tão doces.

A Flor Silvestre comprou o pãozinho e, chegando a casa, jovial, beijou muito a mãe.

Olhe, minha mãe, temos hoje uma hóspeda que compartilhará o nosso jantarzinho.

Sim, minha filha. Tudo quanto fazes neste mundo tem a minha bênção, pois tu és um anjo.

As três abençoadas almas jantaram com uma satisfação divina.

Agora, minha mãe, vou levar a nossa hóspeda a casa e conhecer a sua mãezinha que, coitadita! precisa muito de conforto. É uma infeliz. Mas em primeiro lugar vou pôr estas florinhas, que um pobre me deu, à Nossa Senhora, e levarei uma comigo. Elas são tão lindas e cheiram tão bem!

Pois vai, filha, vai fazer o bem, porque muitas vezes não é a esmola que conforta, é o bálsamo das boas palavras.

A Flor Silvestre partiu com a pequenita, de mãos dadas, e, alegres como Páscoas, lá foram ver a pobrezinha.

Chegaram ao pé de um casebre que fazia arrepiar de miséria e entraram.

A Flor Silvestre enterneceu-se até às lágrimas, avistando tamanha pobreza.

—  Oh! uma menina tão linda entrar aqui! disse a pobrezinha beijando-lhe as mãos. Abençoada sejas, porque a tua presença enche-me de alegria.

E a bela Flor Silvestre, com uma ternura evangélica:

Pois então não somos nós todos irmãos? Não devemos nós amar o semelhante como a nós próprios? Olhe, santinha, trago-lhe aqui parte do nosso jantarzinho, que é também de pobre, mas dado de boa vontade.

Numa mesita carunchosa pousou o cestinho donde tirou um pão alvo de neve, feijões, couves com um fio de azeite, e pôs tudo à beira da enxerga que, com uns farrapos, estava a um canto, no chão.

E a pobrezinha consolou-se com aquela comida, que lhe pareceu um manjar do céu.

E disse à Flor Silvestre:

Ó minha filha, oxalá que recebas tantas bênçãos divinas como de pérolas tem o mar. Deus te abençoe.

Eu nada mais fiz do que cumprir o meu dever volveu Flor Silvestre pois nós todos temos de ser caritativos.

E, ridente como um fio de sol brilhante, disse para a nova amiga, a quem estava já ligada por vivo afeto:

Olha sempre por tua mãe com o maior carinho, pois ela precisa muito de todo o teu amor, lembrando-te que todo bem tem recompensa, como todo o mal recebe o seu castigo.

A filha da pobrezinha, com lágrimas no rosto, disse enternecida:

Nunca me desampares, minha amiga, e dá-me essa flor, que eu guardá-la-ei sempre, embora as pétalas estejam murchas. Para mim será um talismã de felicidade e recordação da tua boa alma.

Deu-lha.

E a caminho da casa, lá foi Flor Silvestre, inundada duma luz brilhante, como de prata.

No mesmo lugar, encontrou o velhinho, com outro ramo na mão e um grande colar de pérolas.

E abeirando-se da Flor Silvestre, deitou-lho ao pescoço, dizendo:

—  Toma lá este colar, e faz o bem que puderes. E pega lá também estas flores, e com elas suaviza as dores dos infelizes, pois em cada uma delas há bálsamos para as dores. Mas Flor Silvestre, lembrando-se de que falava com um ser sobre-humano, observou:

Quem és tu, que tanto poder me dás?

Sou o poder da misericórdia, que infiltra nos bons corações as tendências para o bem. E agora volta à mansarda donde vens.

E a Flor Silvestre voltou.

Ao chegar ali, viu a pobrezinha de pé, e a sua casa transformada, cheia de limpeza e conforto.

Mãe e filha estavam ajoelhadas, dando graças a Deus, pelo anjo que operara tudo isto.

E a Flor Silvestre, por onde passava e encontrava miséria, arrancava uma pérola do colar, vendia-a, fazendo compras abundantes que repartia, com mãos largas, pela pobreza.

Cada flor que tirava do seu ramalhete, suavizava as dores alheias com o seu aroma.

A semear o bem, passou assim a vida, sentindo-se a criatura mais feliz do mundo.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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