A FLOR SILVESTRE
Numa aldeia da montanha habitava
uma velhinha que tinha uma filha a quem o povo chamava Flor Silvestre.
Era uma moça formosa, e tão formosa
era ela que o povo dos arredores ficava sempre suspenso e enlevado ao ver a
formosura daquele rosto.
Aos domingos, quando saía da missa,
toda a gente que a rodeava no adro da igreja dizia:
— Que linda
ela não é! Parece mesmo uma santa fugida dum altar!
Sempre modesta, quando a elogiavam,
respondia:
— Pelo amor
de Deus! não digam que eu sou formosa, porque sou como todas as raparigas.
E, corando como uma romã, quase
fugia.
Trabalhava de dia e de noite, e
todo o dia cantava no campo. E à tardinha, o seu cantar confundia-se com o
canto da cotovia, duma harmonia adorável. Seroava até altas horas da noite, ao
pé da sua mãe, que a enchia de ternura com o seu meigo olhar, entristecendo-se,
vendo-a a trabalhar sem folga.
— São horas
de te deitares, Maria. Olha que, daqui a pouco, batem duas horas no campanário,
e a candeia já tem pouco azeite.
— Pois sim,
minha mãe. Eu já vou. Mas bem sabe que amanhã temos de pagar o nosso pão da
semana, e eu queria ver se, pela manhã, ia levar a obra para receber.
— Sim, filha,
mas este sacrifício é muito grande para as tuas forças.
— Nada me
custa, se não faltar coisa alguma a minha mãe.
No dia seguinte, mal o sol dourava
a montanha, lá saiu ela com uma grande trouxa de roupa debaixo do braço, muito
lépida, para entregar às freguesas.
O coração transbordava de júbilo,
lembrando-se de que o seu trabalho se convertia em pão, para a sua mãe. E tão
alegre ia, que nem reparou que a seu lado a seguia um velhinho, com um lindo
ramo na mão.
E aproximando-se dela disse:
— Flor
Silvestre: aceita estas bonitas rosas, irmãs tuas que colhi no campo para te
ofertar. Ainda que elas murchem, conserva-as junto da imagem que venerares.
À Flor Silvestre surpreendeu-a
semelhante oferenda, mas aceitou-a, reconhecida.
E, seguindo o seu destino, viu
sentada num maciço, rodeada de flores, uma pastora com uma grande haste na mão,
guardando uma manada de patos.
E ouviu:
— Não te
aproximes. Tem cuidado, senão ficarás enredada, sem te poderes mover. Mão
mágica aqui me prendeu.
A Flor Silvestre ficou triste:
— Pois tu, mais linda do que essas
flores, hás de ficar aí presa para sempre?
— Assim
estarei, enquanto uma força sobre-humana não me arrancar daqui.
Contou-lhe então a sua história:
— Eu era
filha do homem mais rico destes arredores. Não era caritativa e não sentia as
lágrimas da miséria, porque o meu coração era duro. Meu pai dava esmolas sem
conta, e para ver se me tornava caridosa, enchia-me uma saca de ouro, e
mandava-me repartir pelos pobres. Um dia, passei, assim, junto dum pobrezinho
que me estendeu a mão com lágrimas na voz. Neguei-lhe a esmola, e este é o
castigo da minha ação.
— Então teu
pai era bom?
— Um santo.
— Morreu?
— Sim, já lá
está na terra da verdade.
— E não tens
mais ninguém na família?
— Todos
morreram.
A Flor Silvestre disse:
— Eu ainda
tenho mãe, e tão boazinha, que parece mais uma santa do que uma pecadora.
Vou-me embora. Não te posso valer, o que me dá muita pena, mas peço a Deus que
o teu cativeiro não seja longo.
Partiu a Flor Silvestre com as suas
flores apertadas contra o peito e com a ternura duma alma angélica. E,
avistando ao lado uma fonte a jorrar numa taça de marfim, exclamou:
— Que linda
fonte! Deixa-me salpicar as minhas flores com algumas gotas desta água tão
cristalina.
E abeirou-se da taça, ficando
encantada, quando no meio lhe apareceu um peixe que tinha meio corpo com forma
de mulher de rosto formoso, e lhe falou assim:
— Escuta-me,
menina. Orvalhei essas flores. Agora são um bálsamo consolador que salvará
muitos desgraçados da miséria. Os pobrezinhos te bendirão.
Cada vez ficava a Flor Silvestre
mais assombrada de tudo quanto os seus olhos fitavam.
Caminhou, encontrando a curta
distância uma criancinha, rota, chupada, com a fome estampada no rosto, a
chorar que nem uma fonte.
— Que tens
tu? — perguntou a Flor Silvestre.
— Oh! meu
Deus! socorrei-me, porque tenho muita fome e muito frio. E minha mãe está a
morrer na miséria.
E a pequenita chorava tanto que
metia dó.
— Espera um
bocadinho, minha menina. Vem comigo, que eu vou comprar pão para a minha
mãezinha, e comeremos todas juntas, porque vou levar-te a casa.
A pequenita começou a chorar de
alegria, porque nunca ouvira palavras tão doces.
A Flor Silvestre comprou o pãozinho
e, chegando a casa, jovial, beijou muito a mãe.
— Olhe, minha
mãe, temos hoje uma hóspeda que compartilhará o nosso jantarzinho.
— Sim, minha
filha. Tudo quanto fazes neste mundo tem a minha bênção, pois tu és um anjo.
As três abençoadas almas jantaram
com uma satisfação divina.
— Agora,
minha mãe, vou levar a nossa hóspeda a casa e conhecer a sua mãezinha que,
coitadita! precisa muito de conforto. É uma infeliz. Mas em primeiro lugar vou
pôr estas florinhas, que um pobre me deu, à Nossa Senhora, e levarei uma
comigo. Elas são tão lindas e cheiram tão bem!
—Pois vai,
filha, vai fazer o bem, porque muitas vezes não é a esmola que conforta, é o
bálsamo das boas palavras.
A Flor Silvestre partiu com a
pequenita, de mãos dadas, e, alegres como Páscoas, lá foram ver a pobrezinha.
Chegaram ao pé de um casebre que
fazia arrepiar de miséria e entraram.
A Flor Silvestre enterneceu-se até
às lágrimas, avistando tamanha pobreza.
— Oh! uma menina tão linda entrar
aqui! — disse a pobrezinha beijando-lhe as mãos. — Abençoada sejas, porque a tua presença enche-me de alegria.
E a bela Flor Silvestre, com uma
ternura evangélica:
— Pois então
não somos nós todos irmãos? Não devemos nós amar o semelhante como a nós
próprios? Olhe, santinha, trago-lhe aqui parte do nosso jantarzinho, que é
também de pobre, mas dado de boa vontade.
Numa mesita carunchosa pousou o
cestinho donde tirou um pão alvo de neve, feijões, couves com um fio de azeite,
e pôs tudo à beira da enxerga que, com uns farrapos, estava a um canto, no
chão.
E a pobrezinha consolou-se com
aquela comida, que lhe pareceu um manjar do céu.
E disse à Flor Silvestre:
— Ó minha
filha, oxalá que recebas tantas bênçãos divinas como de pérolas tem o mar. Deus
te abençoe.
— Eu nada
mais fiz do que cumprir o meu dever — volveu Flor
Silvestre — pois nós todos temos de ser caritativos.
E, ridente como um fio de sol
brilhante, disse para a nova amiga, a quem estava já ligada por vivo afeto:
— Olha sempre
por tua mãe com o maior carinho, pois ela precisa muito de todo o teu amor,
lembrando-te que todo bem tem recompensa, como todo o mal recebe o seu castigo.
A filha da pobrezinha, com lágrimas
no rosto, disse enternecida:
— Nunca me
desampares, minha amiga, e dá-me essa flor, que eu guardá-la-ei sempre, embora
as pétalas estejam murchas. Para mim será um talismã de felicidade e recordação
da tua boa alma.
Deu-lha.
E a caminho da casa, lá foi Flor
Silvestre, inundada duma luz brilhante, como de prata.
No mesmo lugar, encontrou o
velhinho, com outro ramo na mão e um grande colar de pérolas.
E abeirando-se da Flor Silvestre,
deitou-lho ao pescoço, dizendo:
— Toma lá este colar, e faz o bem que
puderes. E pega lá também estas flores, e com elas suaviza as dores dos
infelizes, pois em cada uma delas há bálsamos para as dores. Mas Flor
Silvestre, lembrando-se de que falava com um ser sobre-humano, observou:
— Quem és tu,
que tanto poder me dás?
— Sou o poder
da misericórdia, que infiltra nos bons corações as tendências para o bem. E
agora volta à mansarda donde vens.
E a Flor Silvestre voltou.
Ao chegar ali, viu a pobrezinha de
pé, e a sua casa transformada, cheia de limpeza e conforto.
Mãe e filha estavam ajoelhadas,
dando graças a Deus, pelo anjo que operara tudo isto.
E a Flor Silvestre, por onde
passava e encontrava miséria, arrancava uma pérola do colar, vendia-a, fazendo
compras abundantes que repartia, com mãos largas, pela pobreza.
Cada flor que tirava do seu
ramalhete, suavizava as dores alheias com o seu aroma.
A semear o bem, passou assim a
vida, sentindo-se a criatura mais feliz do mundo.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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