4/19/2025

A águia encantada (Conto), de Maria Pinto Figueirinhas

A ÁGUIA ENCANTADA

Uma manhã de outono, em que toda a natureza desperta, franjada de orvalho, atravessava os ares uma águia, levando no bico uma linda criança. O rufar estridente das suas asas tudo despertava, e bandos de avezinhas a seguiam. E toda a gente olhava com pasmo para a interessante águia.

Viram-na desaparecer para o lado dum vale, chamado o Caminho do Bom Viver.

Naquele caminho se encontrava uma aldeia, formosa como um anjo, sentada à porta, a tecer uma renda. A grande águia, revoando, desceu e colocou a criancinha sobre o tear que se tornou de marfim, e a renda de ouro fino.

Depois, fugiu veloz, espalhando nos ares letras de prata, que lhe caíam no regaço e diziam:

“Tu serás sempre o símbolo do bom viver. Essa criancinha fica sob a tua proteção, e a renda que teces será para ela. Há de levar-te vinte anos a fazer e, no dia em que a terminares, colocá-la-ás na orla do vestido dessa criança, que será um dia rainha. Mas, até lá, terás muitas surpresas e farás muitos sacrifícios”.

A tecedeira chorou copiosamente e tremeu sob o peso da grande responsabilidade.

Em seguida, olhou para a criancinha, beijou-a e disse-lhe:

Ó pobrezinha! que será de mim sem ter pão para te dar! Contigo irei mendigar nas horas em que deixar o meu trabalho.

E assim fez. Deixava o trabalho, pegava na criancinha e punha-se a caminho com uma sacola às costas.

Num dia de Estio, de calor sufocante, atravessava ela uma linda ponte, coberta de relva, parecendo recamada de esmeraldas. A meio dela, a tecedeira ficou suspensa, como se sonhasse.

A ponte transformara-se em doze serpentes de ouro, e cada uma lançava água para o rio, fazendo assim uma frescura tão agradável que a boa tecedeira pousou a menina, e sentaram-se tomando alento, e assim adormeceu num sonho encantador, com o mágico deslumbramento das doze serpentes. E, quando acordou, pareceu-lhe que apenas dormira um momento, tendo desaparecido a menina e as serpentes mágicas.

Começou a chorar.

E assim, isolada e solitária, resolveu não seguir caminho, pois, só para si, a vida não era tão pesada, e mendigaria menos, porque os anos que ela empregava a acabar a renda de ouro não lhe permitiam ganhar o pão para ela.

Muito triste pelo desaparecimento da menina, ia desalentada seguindo o caminho para casa. E, ao virar um atalho, aproximou-se dela uma velhinha muito esfarrapada, que a saudou, dizendo-lhe:

Enxuga essas lágrimas, minha filha, e não te amofines, que a vida não se leva a soluçar penas; temos de a levar com paciência.

E a tecedeira enxugou os belos olhos à ponta do avental, e este encheu-se de moedas de ouro.

Que é isto? disse admirada e olhando para o lado e já não vendo a velhinha. Oh! mais esta surpresa! Mas para que é tanto ouro? Não o quero todo para mim. Vou procurar pobrezinhos e dividirei por eles o que me é supérfluo.

E assim foi.

Ao outro dia, acordou a pensar num sonho que teve, encontrando-o tão cheio de sedução que bem desejava realizá-lo.

O sonho era formoso: que poderia dispensar também os cuidados a mendigos, como ela vira prestar a uns enfermos que enchiam uma casa de caridade, por uma menina linda como um amor.

Essa menina lembrava-lhe pelos traços a inocentinha que as serpentes mágicas lhe arrancaram dos seus braços.

Finda a tarefa da bela renda, pôs-se a caminho por aqueles vales, matizados de flores.

Floria a Primavera. Cantavam os ninhos. Sentia-se ir pelos ares, presa de braços e, quando pôs o pé em terreno firme, é que viu que fora a mesma águia que a colocou ali.

Que viu ela então que a fez estremecer de dor? Muitas criancinhas, sentadas à porta duma grande casa, cobertas de andrajos e chagas.

Oh, meu Deus! que miséria! exclamou.

As portas da casa abriram-se-lhe de par em par, e ela, com muita caridade e radiante de praticar o bem, acolheu as criancinhas, mas sempre assombrada por tantos mistérios.

Fatigada, adormeceu, depois de ter alimentado e curado os inocentinhos.

Mal rompeu a aurora, lá foi ela pelas cercanias comprar leite para os alimentar.

E um dia, quando regressava dessa santa peregrinação, viu um lindo carro, puxado por sete serpentes, parar junto da bela casa de caridade.

De dentro saiu a sua bela menina.

Quase desmaiou, surpreendida.

Correu a abraçá-la e beijá-la, mas logo uma das serpentes observou:

Cautela! enquanto não acabares a renda, não lhe dirás uma só palavra, porque senão a deusa do mal quebra o encanto ao rei que casar com ela, e ela perde todo o direito a ser rainha dum grande reino, que governará com todos os exemplos de caridade que lhe tens dado, e ele ficará mudo, sem acabar o prazo de vinte anos.

E a linda tecedeira entrou na grande casa de caridade com os olhos marejados de lágrimas, pelo grande sacrifício que lhe faziam de não poder falar para a sua menina, que cada vez mais lhe parecia um anjo.

Trabalhavam sempre juntas.

Um dia, em que ela estava sentada ao pé da janela a curar um inocentinho, e a menina a ajudá-la, enxergou a mesma águia a atravessar o espaço com um bastidor de marfim no bico, poisando-o junto delas, e as mesmas letras de prata caíram-lhe nas mãos, dizendo:

Trabalha, que só tens um ano para acabar a tua tarefa.

A boa tecedeira não tinha um momento de repouso, no seu trabalho, mas achava-se sempre muito atormentada por não poder trocar uma palavra com a menina.

E a menina olhava para ela com tanta veneração, como se ela fosse uma santa.

Imitava-a nos desvelos e cuidados para com os inocentinhos, e estes beijavam-lhe as mãos, em sinal de reconhecimento, o que encantava a formosa tecedeira.

No momento em que estava a findar o último retoque da renda, ouviu distintamente argentinas badaladas, e todas aquelas criancinhas se transformaram em muitas fadas, dançando à volta da menina, aclamando-a:

Bendita sejas, rainha da caridade!

E a tecedeira ficou encantada a olhar para a beleza da menina e para a transformação das criancinhas, que exclamaram:

Nós quisemos experimentar os vossos corações, para mostrar à deusa do mal que tu és a eleita do grande rei que ela encantou, transformando-o em águia, por ele ser bom, quando procurava a felicidade para o seu povo.

E, mal estas palavras foram proferidas, abriu-se a porta, e apareceu a mesma águia com um riquíssimo vestido, recamado de pedras finas.

As fadas vestiram-no, e a menina converteu-se numa deusa; a tecedeira ajoelhou-se e colocou-lhe a renda de ouro, que mais brilho lhe deu.

Depois, todas as fadas a conduziram à porta, onde estava uma grande concha de marfim.

Fizeram entrar nela a menina, e todas a levaram em triunfo junto da gruta onde a água caía como jactos de prata.

E em cima da gruta lá estava a águia com toda a sua majestade.

Uma das fadas disse à tecedeira:

Sobe à gruta, vai junto da águia e venda-lhe os olhos. Vê se tens a coragem de lhe quebrar o encanto, enquanto a deusa do mal não chega.

A tecedeira, corajosa mas hesitante, subiu à gruta e vendou os olhos à águia, que se transformou num formoso rei; e toda a gruta se desmoronou, convertendo-se num encantador palácio.

A menina entrou rodeada de damas e de pajens.

E logo a aclamaram rainha, abençoada por todos.

E as fadas, desaparecendo, disseram:

Fadar-te-emos, para que sejas a rainha mais caridosa do mundo.

E a menina, rodeada de todo o esplendor, mas sempre humilde, beijou a tecedeira com toda a ternura, agradecendo-lhe os bons exemplos que ela lhe dera, e nomeando-a sua dama de companhia.

E assim viveram sempre santamente.

O próprio povo a chamava rainha santa, porque ela espalhava com o seu esposo o bem por toda a parte.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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