3/23/2025

O cego das bofetadas ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


O CEGO DAS BOFETADAS

Haroun-Al-Raschid, o célebre califa árabe, saiu uma vez do palácio disfarçado em homem do povo, a fim de percorrer a sua capital.

Passando por uma igreja, viu um cego pedindo esmola. Deu-lhe um vintém, e ia continuar o caminho, quando o mendigo lhe disse:

"Já que o senhor é um homem caridoso, rogo-lhe pelo amor de Deus que me dê também um sopapo".

O califa recusou-se, mas foi tamanha a insistência do pobre, que foi obrigado a esbofeteá-lo.

Mais adiante chamou um soldado, deu-se a conhecer, e mandou intimar o cego a comparecer ao palácio.

No dia seguinte o mendigo conhecido pelo Cego das Bofetadas, apresentou-se.

Haroun-Al-Raschid perguntou-lhe que significava aquela extravagância de rogar a toda gente que o socorria, que também lhe desse uma bofetada. O pobre contou a sua história.


I - O MERCADOR

Chamava-se Abdala, e era filho de rico e honrado negociante de Bagdá, que morrendo o deixou herdeiro de elevada fortuna.

Abdala quis seguir a profissão paterna e andava de cidade em cidade, vendendo e comprando as fazendas mais procuradas.

Um dia que regressava de Bássaro, tendo ali vendido todo o carregamento, chegou a um vasto campo coberto de vegetação. Como o lugar era apropriado, soltou os camelos para pastarem.

Estava repousando a sombra de uma árvore quando dele se aproximou um viajante, que se sentou a seu lado.

Era um velho e respeitável dervixe.

Os dois caminhantes entabularam conversa, e o dervixe contou a Abdala que num lugar pouco distante dali existia enterrado um tesouro de inumeráveis riquezas.

O mercador suplicou ao dervixe, que se chamava Giafar, para lhe ensinar o meio de conseguir achá-lo, e terminou prometendo-lhe um camelo carregado.

— "Se eu te ensinar o processo, tu poderás carregar teus oitenta camelos de ouro e pedras preciosas. Como é que só me ofereces um deles? Se prometeres dar-me quarenta, que é a metade, levar-te-ei a esse lugar".

Abdala aceitou a proposta, e ambos partiram.

 

II - O SUBTERRANEO

Chegando a um certo sítio, pararam.

Giafar acendeu uma fogueira, de ramos secos, e pronunciando palavras cabalísticas, abriu-se a terra, deixando aparecer uma larga abertura.

Os dois entraram por aí, guiando os camelos, e bem depressa avistaram um subterrâneo.

O negociante ficou alucinado vendo tantas moedas de ouro e pedrarias.

Voltando a si, ele e o dervixe encheram os cento e sessenta sacos, carregando os camelos, e voltaram a superfície da terra.

Antes disso, porém, Giafar apanhou uma caixinha de madeira que estava a um canto e guardou-a cuidadosamente.

Chegando ao ar livre, a terra fechou-se por si tapando a entrada.

Procederam à distribuição dos camelos, ficando cada um deles com quarenta animais, segundo estava combinado.

Giafar seguiu viagem, enquanto o companheiro permanecia no mesmo lugar.


II - SEDE DE OURO

Abdala não podia resolver-se a continuar na jornada.

Permanecia de pé, na mesma posição, enquanto via o dervixe afastar-se pouco a pouco, tocando os seus quarenta camelos.

A grande quantidade de riquezas acumuladas no subterrâneo, impressionara-o fortemente.

E ele, que até aquele dia, fora um negociante honrado, contentando-se com os lucros que lhe dava a venda das suas mercadorias, tornou-se de súbito ambicioso.

Vendidas as pedras preciosas que carregavam os seus animais, tornar-se-ia rico, arquimilionário, um dos reis do ouro da terra.

Mas o demônio da ambição, a fúria da avareza e o espírito de ciganagem entraram-lhe no coração.

Viu tudo amarelo cor de ouro, e desejou ter mais do que possuía.

De repente deitou a correr com quantas forças tinha, atrás de Giafar, até que o alcançou.

— "Que queres, irmão?" perguntou-lhe este.

— "Bom dervixe, tu és um santo, és um homem virtuoso, que de nada precisa, e que se contenta com o pouco. Assim, venho pedir-te que me dês dez dos teus camelos, pois que, com os restantes, ainda serás rico", disse Abdala.

— "Não tenho dúvida alguma de dar-tos. Leva-os contigo".

O negociante, vendo aquela facilidade, ficou arrependido de haver pedido tão pouco e pediu outros dez.

O respeitável dervixe não protestou e facilmente conseguiu.

E assim, de dez em dez, Abdala conseguiu assenhorar-se de todos os oitenta camelos que representavam tanta riqueza, que nem todos os ricaços reunidos possuíam.


IV - A CAIXA MISTERIOSA

Vendo que Giafar nada mais possuía, nem assim o mercador ficou satisfeito.

Lembrou-se que o dervixe podia ter abandonado sem murmurar as riquezas porque tinha a caixinha misteriosa que apanhara no subterrâneo. Aquilo devia ser algum segredo maravilhoso, algum talismã que talvez tornasse o seu possuidor igual a Deus.

— "A propósito", disse ele, que tencionas fazer daquela caixinha? Onde a guardaste?"

— "Aqui está, respondeu Giafar tirando-a do bolso.

Abdala abriu-a e encontrou dentro uma espécie de unguento amarelado.

— "Para que serve esta pomada?"

— "A sua aplicação é surpreendente e maravilhosa, irmão Abdala, disse o virtuoso homem. "Se puseres uma pequena porção sobre a pálpebra do olho esquerdo, poderás ver todos os tesouros que estão escondidos no seio da terra; mas se, ao contrário, a esfregares no direito, cegarás imediatamente".

O ambicioso quis experimentar. Esfregou o unguento no olho esquerdo, e de fato viu, entranhando o olhar pelo chão a dentro, tudo quanto existe de rico no interior da terra.


V - A PUNIÇÃO

Entretanto, ele não acreditou nas palavras do santo dervixe, que nem uma só vez o tinha enganado.

Pensou de si para si que se empregasse a pomada em ambos os olhos, não só devia ver as riquezas, como também ficar sabendo o modo de possuí-las.

Sem atender às objeções e conselhos de Giafar, untou os dois olhos.

Então o dervixe retirou-se, deixando-o na estrada sem os camelos.

* * *

— "Desde esse dia", falou Abdala para o castigo dos meus crimes e dos meus pecados, prometi suplicar a todos aqueles que me socorressem que em seguida me dessem um sopapo. É por isso que me chamam o "Cego das Bofetadas".

O poderoso califa teve pena do pobre mendigo, e achando que já havia suficientemente expiado as suas culpas, estabeleceu-lhe uma pensão.



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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