Haroun-Al-Raschid, o célebre califa árabe,
saiu uma vez do palácio disfarçado em homem do povo, a fim de percorrer a sua
capital.
Passando por uma igreja, viu um cego pedindo
esmola. Deu-lhe um vintém, e ia continuar o caminho, quando o mendigo lhe
disse:
"Já que o senhor é um homem caridoso, rogo-lhe
pelo amor de Deus que me dê também um sopapo".
O califa recusou-se, mas foi tamanha a insistência
do pobre, que foi obrigado a esbofeteá-lo.
Mais adiante chamou um soldado, deu-se a conhecer,
e mandou intimar o cego a comparecer ao palácio.
No dia seguinte o mendigo conhecido pelo Cego
das Bofetadas, apresentou-se.
Haroun-Al-Raschid perguntou-lhe que significava
aquela extravagância de rogar a toda gente que o socorria, que também lhe desse
uma bofetada. O pobre contou a sua história.
I - O MERCADOR
Chamava-se Abdala, e era filho de rico e honrado
negociante de Bagdá, que morrendo o deixou herdeiro de elevada fortuna.
Abdala quis seguir a profissão paterna e andava
de cidade em cidade, vendendo e comprando as fazendas mais procuradas.
Um dia que regressava de Bássaro, tendo ali
vendido todo o carregamento, chegou a um vasto campo coberto de vegetação. Como
o lugar era apropriado, soltou os camelos para pastarem.
Estava repousando a sombra de uma árvore
quando dele se aproximou um viajante, que se sentou a seu lado.
Era um velho e respeitável dervixe.
Os dois caminhantes entabularam conversa, e o dervixe
contou a Abdala que num lugar pouco distante dali existia enterrado um tesouro
de inumeráveis riquezas.
O mercador suplicou ao dervixe, que se chamava
Giafar, para lhe ensinar o meio de conseguir achá-lo, e terminou prometendo-lhe
um camelo carregado.
— "Se eu te ensinar o processo, tu
poderás carregar teus oitenta camelos de ouro e pedras preciosas. Como é que só
me ofereces um deles? Se prometeres dar-me quarenta, que é a metade, levar-te-ei
a esse lugar".
Abdala aceitou a proposta, e ambos partiram.
II - O SUBTERRANEO
Chegando a um certo sítio, pararam.
Giafar acendeu uma fogueira, de ramos secos, e
pronunciando palavras cabalísticas, abriu-se a terra, deixando aparecer uma
larga abertura.
Os dois entraram por aí, guiando os camelos, e
bem depressa avistaram um subterrâneo.
O negociante ficou alucinado vendo tantas moedas
de ouro e pedrarias.
Voltando a si, ele e o dervixe encheram os
cento e sessenta sacos, carregando os camelos, e voltaram a superfície da
terra.
Antes disso, porém, Giafar apanhou uma caixinha
de madeira que estava a um canto e guardou-a cuidadosamente.
Chegando ao ar livre, a terra fechou-se por si
tapando a entrada.
Procederam à distribuição dos camelos, ficando
cada um deles com quarenta animais, segundo estava combinado.
Giafar seguiu viagem, enquanto o companheiro
permanecia no mesmo lugar.
II - SEDE DE OURO
Abdala não podia resolver-se a continuar na
jornada.
Permanecia de pé, na mesma posição, enquanto
via o dervixe afastar-se pouco a pouco, tocando os seus quarenta camelos.
A grande quantidade de riquezas acumuladas no
subterrâneo, impressionara-o fortemente.
E ele, que até aquele dia, fora um negociante
honrado, contentando-se com os lucros que lhe dava a venda das suas
mercadorias, tornou-se de súbito ambicioso.
Vendidas as pedras preciosas que carregavam os
seus animais, tornar-se-ia rico, arquimilionário, um dos reis do ouro da terra.
Mas o demônio da ambição, a fúria da avareza e
o espírito de ciganagem entraram-lhe no coração.
Viu tudo amarelo cor de ouro, e desejou ter
mais do que possuía.
De repente deitou a correr com quantas forças
tinha, atrás de Giafar, até que o alcançou.
— "Que queres, irmão?" perguntou-lhe
este.
— "Bom dervixe, tu és um santo, és um homem
virtuoso, que de nada precisa, e que se contenta com o pouco. Assim, venho
pedir-te que me dês dez dos teus camelos, pois que, com os restantes, ainda
serás rico", disse Abdala.
— "Não tenho dúvida alguma de dar-tos. Leva-os
contigo".
O negociante, vendo aquela facilidade, ficou
arrependido de haver pedido tão pouco e pediu outros dez.
O respeitável dervixe não protestou e facilmente
conseguiu.
E assim, de dez em dez, Abdala conseguiu assenhorar-se
de todos os oitenta camelos que representavam tanta riqueza, que nem todos os
ricaços reunidos possuíam.
IV - A CAIXA MISTERIOSA
Vendo que Giafar nada mais possuía, nem assim
o mercador ficou satisfeito.
Lembrou-se que o dervixe podia ter abandonado
sem murmurar as riquezas porque tinha a caixinha misteriosa que apanhara no
subterrâneo. Aquilo devia ser algum segredo maravilhoso, algum talismã que
talvez tornasse o seu possuidor igual a Deus.
— "A propósito", disse ele, que
tencionas fazer daquela caixinha? Onde a guardaste?"
— "Aqui está, respondeu Giafar tirando-a
do bolso.
Abdala abriu-a e encontrou dentro uma espécie
de unguento amarelado.
— "Para que serve esta pomada?"
— "A sua aplicação é surpreendente e
maravilhosa, irmão Abdala, disse o virtuoso homem. "Se puseres uma pequena
porção sobre a pálpebra do olho esquerdo, poderás ver todos os tesouros que estão
escondidos no seio da terra; mas se, ao contrário, a esfregares no direito,
cegarás imediatamente".
O ambicioso quis experimentar. Esfregou o unguento
no olho esquerdo, e de fato viu, entranhando o olhar pelo chão a dentro, tudo
quanto existe de rico no interior da terra.
V - A PUNIÇÃO
Entretanto, ele não acreditou nas palavras do
santo dervixe, que nem uma só vez o tinha enganado.
Pensou de si para si que se empregasse a pomada
em ambos os olhos, não só devia ver as riquezas, como também ficar sabendo o
modo de possuí-las.
Sem atender às objeções e conselhos de Giafar,
untou os dois olhos.
Então o dervixe retirou-se, deixando-o na estrada
sem os camelos.
* * *
— "Desde esse dia", falou Abdala
para o castigo dos meus crimes e dos meus pecados, prometi suplicar a todos aqueles
que me socorressem que em seguida me dessem um sopapo. É por isso que me chamam
o "Cego das Bofetadas".
O poderoso califa teve pena do pobre mendigo,
e achando que já havia suficientemente expiado as suas culpas, estabeleceu-lhe
uma pensão.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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