12/27/2023

Uma visita (Conto), de Graciliano Ramos


UMA VISITA

O diretor da revista, o romancista novo e a cantora de rádio saíram do automóvel, atravessaram a cancela, penetraram na quinta, onde bichos invisíveis acordaram com o rumor dos passos na areia. Chegaram-se à casa. O escritor decadente recebeu-os à entrada, cheio de sorrisos. Só conhecia o diretor da revista, mas baralhou as apresentações, multiplicou os abraços e bateu castanholas com os dedos para demonstrar que eram todos amigos velhos.

Entraram. Os visitantes não sabiam direito que tinham ido fazer. O diretor da revista recebera o convite e levara no carro dois companheiros disponíveis. Na sala encontraram um velho bicudo e um rapaz zarolho, que, logo nas primeiras palavras, se manifestaram torcedores do escritor decadente.

Iniciou-se uma conversa ambígua, em que as seis pessoas, desorientadas, cantavam loas umas às outras. O velho bicudo xingou de poetisa a cantora de rádio e o romancista novo foi considerado jornalista. Sentaram-se.

Uma pretinha de olho vivo trouxe uma bandeja de café, o escritor decadente distribuiu as xícaras —  e pouco a pouco se tornou claro o fim da reunião. A princípio houve frases vagas, equívocos, depois a ameaça definiu-se e o papel datilografado surgiu de repente em cima da mesa.

A pretinha de olho vivo retirou a bandeja. O velho bicudo e o rapaz zarolho aproximaram as cadeiras. O romancista novo, o diretor da revista e a cantora de rádio, inquietos, consultaram o relógio, que marcava dez horas por cima da cabeça do dono da casa, e pediram a Deus um trabalho pequeno ou longo demais, tão longo que não pudesse ler-se numa noite. Avaliaram o número de páginas, verificaram se as linhas estavam espaçadas e desanimaram: a obra inédita não era curta nem comprida. E a leitura principiou, fanhosa, encatarroada, com um pigarro que findava em assobio encerrando os períodos extensos.

  Bonito, exclamou o velho bicudo.

Como o aplauso era inoportuno, o escritor decadente fez uma pausa e atentou no velho com severidade. A pupila certa do zarolho aprovou o dono da casa, a outra fixou-se na porta e mostrou aborrecimento profundo.

— Isto merece explicação, murmurou a voz fanhosa adoçando-se.

— Perfeitamente, concordou o diretor da revista.

Mas não ligou importância à explicação: examinou os móveis antigos e a cabeça do escritor decadente, uma cabeça esquisita, com jeito de pão de açúcar, rodeada de cabelos brancos, pelada no cocuruto, semelhante a uma coroa de frade.

Que haveria nos papéis? Então aquele homem não tinha experiência, não compreendia que uma leitura assim era inútil, ninguém prestava atenção ao que ele dizia? Calculou o espaço que as folhas poderiam tomar na revista ou no suplemento semanal de um jornal grande. Seria melhor que o homem tivesse feito artigos. Claro. Artigos de cem ou duzentos mil-réis. Talvez menos, provavelmente menos de cem.

— Ótimo, bradou percebendo um assobio mais forte que rematava capítulo.

E imediatamente pensou na tiragem da revista, procurou descobrir o motivo da redução que tinha aparecido nos últimos números. Precisava mudar uns correspondentes ineptos e ocupar-se mais com a matéria paga. Por que teria sido aquela diminuição? Lembrou-se de várias causas e afinal encolheu os ombros. Sabia lá! O público tem caprichos, não se pode afirmar que isto ou aquilo vai agradar. Às vezes gosta de um sujeito e de repente cansa.

Sentiu as pálpebras pesadas, reprimiu um bocejo, continuou a dizer no interior:

— De repente cansa.

Mas ignorava a quem se referia. Um galo cantou na quinta adormecida, um cachorro vagabundo uivou longe.

— Cansa, cansa.

Repetindo a palavra, tentava firmar o pensamento em qualquer coisa e vencer o sono. Endireitou-se na cadeira, abriu muito os olhos, esforçou-se por conservá-los escancarados. Não produzindo efeito o exercício a que se entregava, fez uma tentativa desesperada para alcançar a significação da prosa que vinha dos pulmões cavernosos do homem. Prosa que vinha dos pulmões cavernosos? Não era isto. Dos pulmões cavernosos vinham um pouco de ar viciado que passava por vários lugares e se transformava em prosa. Que lugares? Não sabia. Em todo o caso era fenômeno curioso o ar converter-se em prosa medida, certinha, gramatical.

Notou que o sono tinha fugido, convenceu-se de que possuía muita força de vontade e seria capaz de passar a noite ali, obrigando as ideias disciplinadas a marchar para entretê-lo. Quis recordar novamente a escassez da matéria paga, os correspondentes e a redução da tiragem, mas desviou-se deste assunto que lhe havia provocado o entorpecimento. Observou, com simulada indiferença, os seios e um pedaço de nádega da cantora de rádio.

—  Boa.


Infelizmente estava sentada. Em pé, caminhando, era magnífica.

— Sim senhor, muito boa.

No automóvel, roçara por acaso a coxa dela. Um sopro nauseabundo transformar-se em prosa artística. Bonita frase. Resolveu aproveitá-la em conversa, mas achou que ficaria melhor escrita. Desanimou: estava agora quase certo de a ter lido.

Por acaso, naturalmente.

vinha de novo um bocejo a descerrar-lhe os beiços, afastar-lhe as queixadas.

Por acaso, naturalmente. As ideias misturavam-se. Que é que tinha acontecido por acaso? Tentou lembrar-se, enquanto olhava o nariz, a boca funda e a testa proeminente do velho bicudo, uma cara que, vista de perfil, semelhava uma faca cheia de dentes.

Por acaso. Sim, encostara a perna por acaso na coxa da cantora. E deixara-se ficar junto dela, sacudido pelos movimentos do carro, amolecido, como se a perna já não fosse dele.

— Boa, muito boa.

Um sorriso largo imobilizou-lhe os músculos do rosto, um calafrio correu-lhe o corpo. E derreou-se na cadeira, vencido pelo calor.

A voz fanhosa tinha baixado, era um zumbido inexpressivo. O cachorro tornou a uivar, o galo cantou novamente. Um vento morno entrava por uma janela, agitava os penduricalhos do abajur e os cabelos que enfeitavam o crânio polido e vermelho do escritor decadente.

Quando a pretinha de olho vivo se retirou com a bandeja, o romancista novo meteu a mão no bolso para tirar um cigarro. Depois do café, nunca deixava de fumar. O escritor decadente empilhava os papéis em cima da mesa e estendia-se em considerações sobre o trabalho que ia ler.

— Admirável, balbuciou o romancista novo procurando o cinzeiro.

Mas o cinzeiro estava no outro lado da mesa, perto do rapaz zarolho. A leitura começou, o velho bicudo exclamou “Bonito” e recebeu uma censura muda.

— Vou passar a noite sem fumar, suspirou o romancista novo furioso, sorrindo e balançando a cabeça num gesto de aprovação.

Teve acanhamento de interromper a cerimônia indo buscar ou pedindo o cinzeiro: ficou sentado com a mão no bolso, machucando o cigarro, projetando vinganças. Aperreava-o aquele horrível calor, o vento morno que lhe aquecia as orelhas. Começava a antipatizar fortemente com o rapaz zarolho. Tinha conhecido um sujeito como aquele muitos anos antes. Onde? quando? Uma cara assim pálida, um bugalho zombeteiro. Quem seria? Procurou, procurou, afinal renunciou à busca e pensou nas amabilidades pérfidas que um crítico lhe endereçara na véspera, lisonjas suficientes para arrasar um livro. Teria sido melhor receber um ataque feroz, em redação de carta anônima, desses que aparecem às vezes nas folhas da província. Odiou o crítico. Safadeza: louvara exatamente as coisas mais bestas que ele havia escrito.

Sentiu a pupila do zarolho fiscalizando-o, teve a impressão de que o tipo mangava dele. Virou o rosto, notou que as pálpebras do diretor da revista se cerravam, temeu adormecer também.

Na sala quente a voz fanhosa e encatarroada zumbia, o velho bicudo erguia os braços com entusiasmo, aproximava-os como se quisesse bater palmas.

— Cretino.

De repente a figura esquecida surgiu. Era o professor de geografia, um horror que tinha aquele olho vidrado, parecia não ligar importância às pessoas a quem se dirigia, examinava os objetos afastados, vigiava sem querer todos os alunos. Lembrou- se de que esse professor de geografia venerava o escritor decadente. Fora ele que, nas horas de recreio, lhe impingira a literatura oca e palavrosa que agora ouvia distraído. Recordou o que experimentara naquele tempo, menino de calças curtas, leitor de romances de capa e espada, livros de viagens e contos obscenos. O diabo do vesgo lhe pusera nas mãos um volume cheio de arrumações difíceis. Indignara-se, resistira à influência do mestre, que pregava o dedo amarelo numa página, tentava mostrar-lhe com paciência belezas imperceptíveis. Tinha-se habituado às viagens maravilhosas, aos folhetins, às histórias indecentes. As personagens da ficção iam visitá-lo na cama. E uma peste lhe afirmava que o que valia era aquilo: palavras incompreensíveis, dispostas cuidadosamente. Chorara, despedira-se dos seus queridos heróis das aventuras. Estúpido. Julgara-se estúpido por não descobrir o que havia de bom na obra recomendada.

O autor agora estava ali, despejando frases da boca mole, gargarejando vogais sonoras no fim dos períodos.

— Estúpido, estúpido.

Alegrou-se dizendo mentalmente que o homem era estúpido. E sorria, balançando a cabeça, aprovando aquelas misérias.

A necessidade de fumar tornou a aparecer-lhe. Voltou-se, tentou medir a distância que o separava do cinzeiro, ainda se remexeu para ir buscá-lo. Ninguém lhe percebeu a intenção. O diretor da revista cochilava. Os outros fingiam escutar a leitura. Apenas o zarolho fixava nele o bugalho.

— Patife.

A associação que se havia operado no espírito do romancista novo fez que o insulto resmungado se aplicasse indiferentemente ao rapaz zarolho e ao professor de geografia.

O vento morno continuava a entrar pela janela.

Um cinzeiro à disposição de um sujeito que não fumava. Tudo assim, tudo mal distribuído. Machucava cigarros inúteis e sentia-se leve, o vento morno o transportava para longe dali.

              Patife.

Era o professor de geografia, o bruto odioso que lhe incutira confusão terrível na pobre cabeça. Um dedo amarelo sublinhando as expressões mais vistosas, um olho torto e severo ameaçando autores ausentes, o outro admirando guloso o livro aberto.

— Canalha.

Evitara o bicho desalmado, mas assistira à morte dos heróis de capa e espada, ficara muito tempo desgostoso, sem achar quem os substituísse. E uma dúvida começara a roê-lo. Teriam as palavras desusadas mais valor que as ordinárias? Não gostava delas, adormecia lendo-as, mas invadira-o um medo supersticioso do literato incompreensível.

Ainda agora, soprando no calor e triturando cigarros, conservava aquele receio vago. Talvez na prosa balofa e antiquada houvesse qualquer coisa que ele não podia sentir. O escritor decadente, um pobre-diabo, tivera admiradores sinceros. Seria realmente um pobre-diabo? Onde andaria àquela hora o professor de geografia? Esforçou-se por entender alguns períodos. Inutilmente. Experimentou a mesma aversão que o enchera em criança, quando vira o dedo longo pregado na página, a unha amarela indicando mistérios.

O cachorro distante uivou pela segunda vez. Em que estariam pensando as criaturas ali presentes? O velho bicudo extasiava-se num sorriso baboso. Uma parte do zarolho escutava a leitura e o resto se enjoava em excesso. O diretor da revista escancarava os olhos, resistindo ao sono. A cantora de rádio pregava um cotovelo na mesa e encostava a testa na palma da mão. Nem se mexia.

No momento em que a moleca retirou as xícaras e a bandeja, a cantora viu o monte de folhas, notou o perigo, estudou as caras dos companheiros. Em seguida encolheu-se e baixou a cabeça. Pouco a pouco, embalada pela música fanhosa, distraiu- se, brincando com a pulseira. No calor medonho o vestido apertado incomodava-a demais, as calças molhadas de suor colavam-se-lhe às coxas. Se estivesse em casa, meter-se-ia no banheiro.

Abriu a bolsa, tirou o lápis miúdo e a caderneta, rabiscou um número de telefone.

O escritor decadente interpretou isso mal, suspendeu a leitura e mandou-lhe um fúnebre sorriso de agradecimento.

A cantora de rádio continuou a bulir na pulseira, pensou com desgosto no marido, de quem mal recordava as feições. Em três anos de afastamento esquecera-o. Se o encontrasse na rua, passaria indiferente. No princípio da separação imaginara que se arriscava: aquela pessoa antipática se havia grudado a ela, era um órgão necessário. Receava a amputação. Contudo o pedaço cortado não lhe fizera nenhuma falta.

O galo cantou, o cachorro uivou, mas a moça não os ouviu. Lembrava-se da vida de solteira, das praias de banhos e do carnaval, da liberdade que o casamento suprimira. Licença para sair, hora certa para entrar, um indivíduo ciumento a arredá-la das janelas, a determinar-lhe o comprimento dos cabelos e o decote dos vestidos. Chateava-se. Não queria enganar o tipo a que se tinha juntado, mas aquela intromissão nos seus gostos dava-lhe fúrias de rebentar pratos. Nunca rebentara nada. Como era de natureza tranquila, aguentara um ano de amolação. Afinal se desligara.

O sapato do zarolho encontrou-lhe o pé por baixo da mesa e logo se desviou. As peças do mecanismo da cantora funcionaram com o fim de levantar os ombros, estirar o beiço inferior, produzir uma ligeira expiração pelo nariz e pequenas oscilações de cabeça, mas receberam impulso fraco, e os movimentos esboçados foram quase imperceptíveis. A moça permaneceu com o cotovelo sobre a mesa e a testa apoiada na palma da mão. Estava cansada, morrinhenta, as coxas num banho de suor. Quando o sapato do vizinho lhe tocou pela segunda vez o pé, virou com dificuldade a cabeça, ergueu as pálpebras pesadas, estendeu o braço livre e segurou molemente o cinzeiro. O zarolho desviou a cadeira com precipitação.

Cansada, amodorrada, a fisionomia do marido avivando-se e desbotando. A voz antiga reapareceu, fanhosa, ranzinza, dando leis a respeito do corte dos cabelos e da cor da roupa. Hora para sair, hora para entrar —  e ela andava na rua como se estivesse amarrada por um cordel.

Olhou os livros das estantes, teve a impressão de que eles haviam sido pigarreados por vozes fanhosas, ouvidas por pessoas sonolentas, em noites de calor. E todas as vozes ordenavam que as mulheres fossem marionetes, puxadas a cordões.

Estirou as pernas entorpecidas, espreguiçou-se na cadeira, moderadamente, percebeu o tique-taque do relógio, a pancada de uma porta, um uivo lamentoso a distância. Voltou a cabeça para o mostrador. Mas levantou-se antes de ver os ponteiros.

Estavam todos de pé. O velho bicudo dava pulinhos e agitava os braços como se quisesse voar; o rapaz zarolho tinha um brilho de entusiasmo no olho certo; o romancista novo murmurava amabilidades que estivera a compor no fim da leitura; o diretor da revista, arrancado aos cochilos, engasgava-se e apertava atrapalhado as mãos do dono da casa.

—  Lindo, lindo, exclamou a cantora de rádio.

Não achou coisa melhor para dizer. Também não desejava mostrar-se. Queria livrar-se depressa, rodar para casa, tirar a roupa molhada, tomar um banho e dormir.

— Lindo, muito lindo.

Ajeitou o chapéu, agarrou a bolsa e as luvas.

Retiraram-se.

O escritor decadente acompanhou-os ao portão balbuciando agradecimentos. Quando o automóvel se afastou, recolheu-se, meio trôpego, ficou à porta, esfregando as mãos, levemente comovido. Depois abraçou o rapaz zarolho e o velho bicudo. Supunha que os três lá fora lhe atacavam ferozmente a literatura. Sacudiu a cabeça, tornou a esfregar as mãos: tinha tido um pequeno triunfo e não queria pensar em coisas tristes.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024. 

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