UMA VISITA
O diretor da
revista, o romancista novo e a cantora de rádio saíram do automóvel, atravessaram a cancela, penetraram na quinta, onde bichos invisíveis acordaram
com o rumor dos passos na areia. Chegaram-se à casa. O escritor decadente recebeu-os à entrada, cheio de sorrisos.
Só conhecia o diretor da revista, mas baralhou as apresentações, multiplicou os abraços e bateu castanholas com os dedos para demonstrar que eram todos amigos
velhos.
Entraram. Os visitantes não sabiam
direito que tinham ido fazer. O diretor da revista recebera o convite e levara
no carro dois companheiros disponíveis. Na sala encontraram um velho bicudo
e um rapaz zarolho,
que, logo nas primeiras
palavras, se manifestaram torcedores do escritor decadente.
Iniciou-se uma conversa ambígua,
em que as seis pessoas, desorientadas, cantavam loas umas às outras. O velho
bicudo xingou de poetisa a cantora de rádio e o romancista novo foi considerado jornalista. Sentaram-se.
Uma pretinha de olho vivo trouxe
uma bandeja de café, o escritor decadente distribuiu as xícaras — e pouco a pouco se tornou claro o fim da reunião. A princípio houve frases vagas,
equívocos, depois a ameaça definiu-se e o papel datilografado surgiu
de repente em cima da mesa.
A pretinha
de olho vivo retirou a bandeja. O velho bicudo e o rapaz zarolho aproximaram as cadeiras. O romancista novo, o
diretor da revista e a cantora de rádio, inquietos, consultaram o
relógio, que marcava dez horas por cima da cabeça do dono da casa, e pediram a Deus um trabalho
pequeno ou longo demais, tão longo que não pudesse ler-se numa noite. Avaliaram
o número
de páginas, verificaram se as linhas estavam espaçadas e desanimaram: a
obra inédita não era curta nem comprida. E
a leitura principiou,
fanhosa, encatarroada, com um pigarro
que
findava em assobio
encerrando os períodos
extensos.
— Bonito, exclamou o velho bicudo.
Como o aplauso era inoportuno, o
escritor decadente fez uma pausa e atentou no velho com severidade. A pupila
certa do zarolho aprovou
o dono da casa, a outra fixou-se
na porta e mostrou aborrecimento profundo.
— Isto merece explicação, murmurou
a voz fanhosa adoçando-se.
— Perfeitamente, concordou o diretor
da revista.
Mas não ligou importância à
explicação: examinou os móveis antigos e a cabeça do escritor decadente, uma
cabeça esquisita, com jeito
de
pão de açúcar,
rodeada de cabelos brancos,
pelada no cocuruto,
semelhante a uma coroa de frade.
Que haveria nos papéis? Então
aquele homem não tinha experiência, não compreendia que uma leitura assim era
inútil, ninguém prestava atenção ao
que ele dizia? Calculou o espaço que as folhas poderiam tomar na revista ou no
suplemento semanal de um jornal
grande. Seria melhor que o homem tivesse feito artigos. Claro. Artigos de cem
ou duzentos mil-réis. Talvez menos,
provavelmente menos de cem.
— Ótimo, bradou percebendo um assobio mais forte que rematava capítulo.
E imediatamente pensou na tiragem
da revista, procurou descobrir o motivo da redução que tinha aparecido nos
últimos números. Precisava mudar uns
correspondentes ineptos e ocupar-se mais com a matéria paga. Por que teria sido
aquela diminuição? Lembrou-se de
várias causas e afinal encolheu os ombros. Sabia lá! O público tem caprichos,
não se pode afirmar que isto
ou aquilo vai agradar. Às vezes
gosta de um sujeito e de repente
cansa.
Sentiu as pálpebras pesadas, reprimiu um bocejo,
continuou a dizer no
interior:
— De repente
cansa.
Mas ignorava a quem se referia. Um galo cantou na quinta adormecida, um cachorro
vagabundo uivou longe.
— Cansa, cansa.
Repetindo a
palavra, tentava firmar o pensamento em qualquer coisa e vencer o sono. Endireitou-se na
cadeira, abriu muito os olhos,
esforçou-se por conservá-los escancarados. Não produzindo efeito o exercício a
que se entregava, fez uma tentativa desesperada para alcançar a significação da prosa que vinha dos pulmões cavernosos do homem. Prosa
que vinha dos pulmões cavernosos? Não era isto. Dos pulmões
cavernosos vinham um pouco de ar viciado que passava por vários lugares e se transformava em prosa. Que lugares? Não
sabia. Em todo o caso era fenômeno curioso o ar converter-se em prosa medida, certinha,
gramatical.
Notou que o sono tinha fugido,
convenceu-se de que possuía muita força de vontade e seria capaz de passar a
noite ali, obrigando as ideias disciplinadas a marchar
para entretê-lo. Quis recordar novamente a escassez da matéria paga, os correspondentes e a redução da tiragem,
mas desviou-se deste assunto que lhe havia provocado o entorpecimento. Observou, com simulada
indiferença, os seios e um pedaço
de nádega da cantora de rádio.
— Boa.
Infelizmente estava sentada. Em pé, caminhando, era magnífica.
— Sim senhor, muito boa.
No automóvel, roçara por acaso a
coxa dela. Um sopro nauseabundo transformar-se em prosa artística. Bonita
frase. Resolveu aproveitá-la em conversa,
mas
achou que ficaria melhor escrita.
Desanimou: estava agora quase certo de
a ter lido.
Por acaso, naturalmente.
Lá vinha de novo um bocejo a descerrar-lhe os beiços, afastar-lhe as queixadas.
Por acaso, naturalmente. As ideias
misturavam-se. Que é que tinha acontecido por acaso? Tentou lembrar-se,
enquanto olhava o nariz, a boca funda e a testa proeminente do velho bicudo,
uma cara que, vista de perfil, semelhava uma faca cheia de dentes.
Por acaso. Sim, encostara a perna
por acaso na coxa da cantora. E deixara-se ficar junto dela, sacudido pelos
movimentos do carro, amolecido, como se a perna já
não fosse dele.
— Boa, muito
boa.
Um sorriso largo imobilizou-lhe os
músculos do rosto, um calafrio correu-lhe o corpo. E derreou-se na cadeira,
vencido pelo calor.
A voz fanhosa
tinha baixado, era um zumbido inexpressivo. O cachorro tornou a uivar, o galo cantou
novamente. Um vento morno entrava por uma janela, agitava os
penduricalhos do abajur e os cabelos que enfeitavam o crânio polido e vermelho
do escritor decadente.
Quando a pretinha de olho vivo se
retirou com a bandeja, o romancista novo meteu a mão no bolso para tirar um
cigarro. Depois do café, nunca
deixava de fumar. O escritor decadente empilhava os papéis em cima da mesa e
estendia-se em considerações sobre o
trabalho que ia ler.
— Admirável, balbuciou o romancista novo procurando o cinzeiro.
Mas o
cinzeiro estava no outro lado da mesa, perto do rapaz zarolho. A leitura começou, o velho bicudo
exclamou “Bonito” e recebeu uma censura muda.
— Vou
passar a noite sem fumar, suspirou o romancista novo furioso, sorrindo e
balançando a cabeça num gesto de aprovação.
Teve acanhamento de interromper a
cerimônia indo buscar ou pedindo o cinzeiro: ficou sentado com a mão no bolso, machucando o cigarro, projetando
vinganças. Aperreava-o aquele horrível calor, o vento morno que lhe aquecia as
orelhas. Começava a antipatizar
fortemente com o rapaz zarolho. Tinha conhecido um sujeito como aquele muitos
anos antes. Onde? quando? Uma cara assim pálida, um bugalho zombeteiro. Quem seria? Procurou,
procurou, afinal renunciou
à busca e pensou nas amabilidades pérfidas que um crítico
lhe endereçara na véspera, lisonjas suficientes para arrasar um livro. Teria
sido melhor receber um ataque
feroz, em redação de carta anônima, desses que aparecem às vezes nas folhas da
província. Odiou o crítico. Safadeza: louvara exatamente as coisas mais bestas que
ele havia escrito.
Sentiu a pupila do zarolho
fiscalizando-o, teve a impressão de que o tipo mangava dele. Virou o rosto,
notou que as pálpebras do diretor da revista se cerravam, temeu adormecer
também.
Na sala
quente a voz fanhosa e encatarroada zumbia, o velho bicudo erguia os braços com
entusiasmo, aproximava-os como
se quisesse bater palmas.
— Cretino.
De repente a figura esquecida
surgiu. Era o professor de geografia, um horror que tinha aquele olho vidrado,
parecia não ligar importância às pessoas a
quem se dirigia, examinava os objetos afastados, vigiava sem querer todos os
alunos. Lembrou- se de que esse professor de geografia venerava o
escritor decadente. Fora ele que, nas horas de recreio, lhe impingira a literatura oca e palavrosa que agora ouvia
distraído. Recordou o que experimentara naquele tempo, menino de calças curtas, leitor de romances de capa e espada,
livros de viagens e contos obscenos. O diabo do vesgo lhe pusera nas mãos um
volume cheio de arrumações difíceis. Indignara-se, resistira à influência do mestre, que pregava o dedo amarelo
numa página, tentava
mostrar-lhe com paciência belezas imperceptíveis. Tinha-se habituado às
viagens maravilhosas, aos folhetins, às histórias indecentes. As personagens da ficção iam visitá-lo na cama. E
uma peste lhe afirmava que o que valia era aquilo: palavras incompreensíveis, dispostas cuidadosamente. Chorara,
despedira-se dos seus queridos heróis das aventuras. Estúpido. Julgara-se
estúpido por não descobrir o que
havia de bom na obra recomendada.
O autor agora estava ali, despejando frases da boca mole, gargarejando vogais sonoras no fim dos períodos.
— Estúpido, estúpido.
Alegrou-se dizendo mentalmente que o
homem era estúpido.
E
sorria, balançando a cabeça,
aprovando aquelas misérias.
A necessidade de fumar tornou a
aparecer-lhe. Voltou-se, tentou medir a distância que o separava do cinzeiro,
ainda se remexeu para ir buscá-lo.
Ninguém lhe percebeu a intenção. O diretor da revista cochilava. Os outros
fingiam escutar a leitura. Apenas o zarolho
fixava nele o bugalho.
— Patife.
A
associação que se havia operado
no espírito do romancista novo fez que o insulto
resmungado se aplicasse
indiferentemente ao rapaz zarolho e ao professor de geografia.
O vento morno continuava a entrar
pela janela.
Um cinzeiro à disposição
de um sujeito que não
fumava. Tudo assim, tudo mal distribuído. Machucava cigarros inúteis e sentia-se leve, o vento morno o transportava para longe dali.
—
Patife.
Era o professor de geografia, o
bruto odioso que lhe incutira confusão terrível na pobre cabeça. Um dedo
amarelo sublinhando as expressões
mais vistosas, um olho torto e severo ameaçando autores ausentes, o outro
admirando guloso o livro aberto.
— Canalha.
Evitara o bicho desalmado, mas
assistira à morte dos heróis de capa e espada, ficara muito tempo desgostoso,
sem achar quem os substituísse. E uma
dúvida começara a roê-lo. Teriam as palavras desusadas mais valor que as
ordinárias? Não gostava
delas, adormecia
lendo-as, mas invadira-o um medo supersticioso
do literato incompreensível.
Ainda agora, soprando no calor e
triturando cigarros, conservava aquele receio vago. Talvez na prosa balofa e
antiquada houvesse qualquer coisa que
ele não podia sentir. O escritor decadente, um pobre-diabo, tivera admiradores
sinceros. Seria realmente um
pobre-diabo? Onde andaria àquela hora o professor de geografia? Esforçou-se por
entender alguns períodos. Inutilmente.
Experimentou a mesma aversão que o enchera em criança, quando vira o dedo longo
pregado na página, a unha amarela
indicando mistérios.
O cachorro distante uivou pela
segunda vez. Em que estariam pensando as criaturas ali presentes? O velho bicudo extasiava-se
num sorriso baboso. Uma parte do zarolho escutava a leitura e o resto se
enjoava em excesso. O diretor da revista
escancarava os olhos, resistindo ao sono. A cantora de rádio pregava um
cotovelo na mesa e encostava a testa na palma
da mão. Nem se mexia.
No momento em que a moleca retirou
as xícaras e a bandeja, a cantora viu o monte de folhas, notou o perigo,
estudou as caras dos companheiros. Em seguida encolheu-se e baixou a
cabeça. Pouco a pouco, embalada pela música fanhosa, distraiu- se, brincando com a pulseira. No calor
medonho o vestido apertado incomodava-a demais, as calças molhadas de suor colavam-se-lhe às coxas. Se estivesse em casa,
meter-se-ia no banheiro.
Abriu a bolsa, tirou o lápis miúdo e a caderneta, rabiscou um número de telefone.
O escritor decadente interpretou isso mal, suspendeu a leitura e mandou-lhe um fúnebre sorriso
de
agradecimento.
A cantora de rádio continuou a
bulir na pulseira, pensou com desgosto no marido, de quem mal recordava as
feições. Em três anos de afastamento
esquecera-o. Se o encontrasse na rua, passaria indiferente. No princípio da
separação imaginara que se arriscava:
aquela pessoa antipática se havia grudado a ela, era um órgão necessário.
Receava a amputação. Contudo o pedaço cortado
não lhe fizera nenhuma falta.
O galo cantou, o cachorro uivou,
mas a moça não os ouviu. Lembrava-se da vida de solteira, das praias de banhos
e do carnaval, da liberdade que o casamento suprimira. Licença para sair,
hora certa para entrar, um indivíduo ciumento a arredá-la das janelas, a determinar-lhe o
comprimento dos cabelos e o decote dos vestidos. Chateava-se. Não queria
enganar o tipo a que se tinha
juntado, mas aquela intromissão nos seus gostos dava-lhe fúrias de rebentar pratos.
Nunca rebentara nada. Como era de natureza tranquila, aguentara
um ano de amolação. Afinal se desligara.
O sapato do zarolho encontrou-lhe
o pé por baixo da mesa e logo se desviou. As peças do mecanismo da cantora funcionaram com o fim de levantar os ombros,
estirar o beiço inferior, produzir uma ligeira expiração pelo nariz e pequenas oscilações de cabeça, mas receberam
impulso fraco, e os movimentos esboçados foram quase imperceptíveis. A moça permaneceu com o cotovelo sobre a mesa e a
testa apoiada na palma da mão. Estava cansada, morrinhenta, as coxas num banho de suor. Quando o sapato do vizinho
lhe tocou pela segunda vez o pé, virou com dificuldade a cabeça, ergueu as pálpebras pesadas,
estendeu o braço livre e segurou molemente
o cinzeiro. O zarolho desviou a cadeira com precipitação.
Cansada,
amodorrada, a fisionomia do marido avivando-se e desbotando. A voz antiga reapareceu, fanhosa, ranzinza,
dando leis a respeito do corte dos cabelos e da cor da roupa. Hora para
sair, hora para entrar — e ela andava na
rua como se estivesse amarrada por um cordel.
Olhou os livros das estantes, teve
a impressão de que eles haviam sido pigarreados por vozes fanhosas, ouvidas por pessoas sonolentas, em noites de calor. E todas as vozes ordenavam
que as mulheres fossem marionetes, puxadas a cordões.
Estirou as
pernas entorpecidas, espreguiçou-se na cadeira, moderadamente, percebeu o tique-taque do relógio, a pancada de uma porta,
um
uivo lamentoso a distância. Voltou a cabeça para o
mostrador. Mas levantou-se antes de ver os ponteiros.
Estavam todos de pé. O velho
bicudo dava pulinhos e agitava os braços como se quisesse voar; o rapaz zarolho
tinha um brilho de entusiasmo no olho
certo; o romancista novo murmurava amabilidades que estivera a compor no fim da
leitura; o diretor da revista, arrancado aos cochilos, engasgava-se e apertava
atrapalhado as mãos do dono da
casa.
— Lindo, lindo, exclamou a cantora de rádio.
Não achou coisa melhor para dizer.
Também não desejava mostrar-se. Queria livrar-se depressa, rodar para casa,
tirar a roupa molhada, tomar um banho
e dormir.
— Lindo, muito lindo.
Ajeitou o chapéu, agarrou
a bolsa e as luvas.
Retiraram-se.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...