UM PROFETA
Em Sant’Ana do
Ipanema, no estado de Alagoas, há um ser extraordinário. É um homem trigueiro,
baixo, forte, de olhos e cabelos pretos, nariz levemente recurvado. Parece ter
algumas gotas de sangue judeu. Conversei com ele meia hora. Tomei-o a princípio
por um indivíduo comum, mas compreendi logo o meu erro e agucei, com atenção,
os ouvidos e os olhos. Como ele me confessou, pouca gente o entende.
— Dizem que
sou maluco, declarou-me, mas é engano. O que eu sou é profeta.
Sim, senhores,
profeta, raridade nestes tempos que atravessamos. Um cidadão de vaidade imensa,
que pretende, como outros, antigos e modernos, consertar tudo, porque tudo está
errado, na opinião dele. E na minha também. Ignoro os meios que ele tenciona
empregar para corrigir todas as iniquidades que pululam neste mundo imperfeito.
O que sei é que se entende com personagens celestes de alta categoria: fala com
a Virgem diariamente e uma vez por semana com Deus Padre Todo-Poderoso. Esses
encontros, porém, não se realizam de maneira uniforme. Nossa Senhora
exterioriza-se, como costumava fazer há séculos, de roupa azul e nimbo; o Padre
Eterno aparece, invariavelmente, por via subjetiva. A Mãe de Deus palestra
humanizada e familiar; da presença do Ente Supremo o nosso profeta recebe
apenas intuições luminosas, que o induzem a rebelar-se contra as religiões
oficiais, a afirmar que longe dele não há salvação possível, a pregar o reino
do Céu, a declamar enfim uma série considerável de novidades.
Compreendi que
o vidente notava no meu físico alguma coisa que denunciava em mim um possível
adepto da nova doutrina. Lisonjeado, fiz-lhe várias perguntas, e ele, paternal
e solícito, ministrou-me ensinamentos preciosos. Não se considera filho de
Deus: sabe perfeitamente que a sua origem é ordinária. Mas, por graça especial
do Além, recebeu o dom de profetizar e os atributos de um Salvador de segunda
classe. Possui toda a ciência, não a ciência humana, que é lacunosa e
contingente, mas a ciência divina, que... não é lacunosa nem contingente, penso
eu. Desconheço as duas, infelizmente, e limito-me a registrar as ideias do
homem.
Diz ele que o
papa é um ignorante, que todos nós somos ignorantes, que quem desejar aprender
qualquer coisa deve ir a Sant’Ana do Ipanema. Eu realmente aprendi pouco, pois
a minha compreensão é fraca e o automóvel estava à porta, mas aqui deixo a
advertência, útil àqueles que pretenderem salvar a alma e instruir-se.
Presentemente o profeta nutre duas ambições: derrubar a igreja local, ou aproveitá-la depois de expurgada, caso lhe seja possível iluminar o vigário, que está nas trevas, e converter o chefe do Estado, grande pecador também.
Infelizmente,
em vinte anos de cavação espiritual o nosso profeta não conseguiu fazer um
prosélito, e isto porque entre as massas existe uma criminosa indiferença para
os assuntos celestes. Vivemos, efetivamente, muito afastados do bom caminho.
O resultado de
semelhante procedimento foi o Ente Supremo encolher-se, ressentido, e negar aos
homens alguns fenômenos interessantes que antigamente lhes fornecia a granel e
de graça. Vejam. Os milagres tornaram-se raríssimos. As almas do outro mundo
vivem bisonhas, escondidas, parece que têm medo de gente. Até os lobisomens,
vulgares outrora, ficaram inteiramente invisíveis.
Ora num
planeta sem milagres, sem almas do outro mundo e sem lobisomens, um profeta,
por muito que trabalhe, não alcança grande coisa. É em vão que ele busca o
martírio e odeia os que não acreditam nele. Ninguém hoje é capaz de odiá-lo, e
as autoridades que o deveriam condenar, se a tradição se não tivesse partido,
riem-se quando o veem. O meu profeta nasceu tarde. Não chegará, provavelmente,
a fundador de religião.
Mas se
chegar... Ah! Se chegar, creio que ninguém, com justiça, me negará o título de
evangelista. Tenham paciência. Isto é uma espécie de evangelho. Não está feito
de acordo com os clássicos, é certo, mas se eu fosse imitar os outros, os
senhores me chamariam caturra e me atacariam a sintaxe. É um evangelho. Um
evangelho vagabundo, um evangelho de jornal, um evangelho para ser lido em
botequins. Mas evangelho.
Julgo que não
há perigo. Eu e o meu profeta desapareceremos logo. Mas se por acaso em 3930
ele tivesse estátuas nos altares, toda a gente acharia o meu evangelho muito
direito.
27 de abril de 1930.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...