12/29/2023

Um profeta (Crônica), por Graciliano Ramos


UM PROFETA

Em Sant’Ana do Ipanema, no estado de Alagoas, há um ser extraordinário. É um homem trigueiro, baixo, forte, de olhos e cabelos pretos, nariz levemente recurvado. Parece ter algumas gotas de sangue judeu. Conversei com ele meia hora. Tomei-o a princípio por um indivíduo comum, mas compreendi logo o meu erro e agucei, com atenção, os ouvidos e os olhos. Como ele me confessou, pouca gente o entende.

— Dizem que sou maluco, declarou-me, mas é engano. O que eu sou é profeta.

Sim, senhores, profeta, raridade nestes tempos que atravessamos. Um cidadão de vaidade imensa, que pretende, como outros, antigos e modernos, consertar tudo, porque tudo está errado, na opinião dele. E na minha também. Ignoro os meios que ele tenciona empregar para corrigir todas as iniquidades que pululam neste mundo imperfeito. O que sei é que se entende com personagens celestes de alta categoria: fala com a Virgem diariamente e uma vez por semana com Deus Padre Todo-Poderoso. Esses encontros, porém, não se realizam de maneira uniforme. Nossa Senhora exterioriza-se, como costumava fazer há séculos, de roupa azul e nimbo; o Padre Eterno aparece, invariavelmente, por via subjetiva. A Mãe de Deus palestra humanizada e familiar; da presença do Ente Supremo o nosso profeta recebe apenas intuições luminosas, que o induzem a rebelar-se contra as religiões oficiais, a afirmar que longe dele não há salvação possível, a pregar o reino do Céu, a declamar enfim uma série considerável de novidades.

Compreendi que o vidente notava no meu físico alguma coisa que denunciava em mim um possível adepto da nova doutrina. Lisonjeado, fiz-lhe várias perguntas, e ele, paternal e solícito, ministrou-me ensinamentos preciosos. Não se considera filho de Deus: sabe perfeitamente que a sua origem é ordinária. Mas, por graça especial do Além, recebeu o dom de profetizar e os atributos de um Salvador de segunda classe. Possui toda a ciência, não a ciência humana, que é lacunosa e contingente, mas a ciência divina, que... não é lacunosa nem contingente, penso eu. Desconheço as duas, infelizmente, e limito-me a registrar as ideias do homem.

Diz ele que o papa é um ignorante, que todos nós somos ignorantes, que quem desejar aprender qualquer coisa deve ir a Sant’Ana do Ipanema. Eu realmente aprendi pouco, pois a minha compreensão é fraca e o automóvel estava à porta, mas aqui deixo a advertência, útil àqueles que pretenderem salvar a alma e instruir-se.

Presentemente o profeta nutre duas ambições: derrubar a igreja local, ou aproveitá-la depois de expurgada, caso lhe seja possível iluminar o vigário, que está nas trevas, e converter o chefe do Estado, grande pecador também. 

Infelizmente, em vinte anos de cavação espiritual o nosso profeta não conseguiu fazer um prosélito, e isto porque entre as massas existe uma criminosa indiferença para os assuntos celestes. Vivemos, efetivamente, muito afastados do bom caminho.

O resultado de semelhante procedimento foi o Ente Supremo encolher-se, ressentido, e negar aos homens alguns fenômenos interessantes que antigamente lhes fornecia a granel e de graça. Vejam. Os milagres tornaram-se raríssimos. As almas do outro mundo vivem bisonhas, escondidas, parece que têm medo de gente. Até os lobisomens, vulgares outrora, ficaram inteiramente invisíveis.

Ora num planeta sem milagres, sem almas do outro mundo e sem lobisomens, um profeta, por muito que trabalhe, não alcança grande coisa. É em vão que ele busca o martírio e odeia os que não acreditam nele. Ninguém hoje é capaz de odiá-lo, e as autoridades que o deveriam condenar, se a tradição se não tivesse partido, riem-se quando o veem. O meu profeta nasceu tarde. Não chegará, provavelmente, a fundador de religião.

Mas se chegar... Ah! Se chegar, creio que ninguém, com justiça, me negará o título de evangelista. Tenham paciência. Isto é uma espécie de evangelho. Não está feito de acordo com os clássicos, é certo, mas se eu fosse imitar os outros, os senhores me chamariam caturra e me atacariam a sintaxe. É um evangelho. Um evangelho vagabundo, um evangelho de jornal, um evangelho para ser lido em botequins. Mas evangelho.

Julgo que não há perigo. Eu e o meu profeta desapareceremos logo. Mas se por acaso em 3930 ele tivesse estátuas nos altares, toda a gente acharia o meu evangelho muito direito.
 

27 de abril de 1930.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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