12/27/2023

Um pobre-diabo (Conto), de Graciliano Ramos



UM POBRE-DIABO

Estendeu a mão ao deputado governista e balbuciou algumas palavras confusas, de que ele mesmo ignorava a significação. O gesto era contrafeito: enquanto o braço avançava timidamente, o resto do corpo se retraía, parecia querer recuar para além da parede. Correu a vista pelos quadros ali pendurados, deteve-se numa paisagem verde e azul, bastante desenxabida. Teve a impressão de que, se continuasse a encolher-se, iria achatar-se como a paisagem —  coqueiros verdes e céu azul. A voz era uma espécie de ronco inexpressivo.

— Homem das cavernas, monologou. Criatura paleolítica. Homem das cavernas, sem dúvida.

Mas, em vez de dizer qualquer coisa que melhorasse a sua triste situação, pensou nos trogloditas e, como se achava perturbado, confundiu-os com a multidão que fervilhava lá embaixo, na rua. Avizinhou-se da janela. As pessoas que rolavam nos automóveis apareceram-lhe armadas e ferozes, cobertas de peles cabeludas. Olhou com desgosto a mão que tinha apertado a mão do político influente. Comprida, fina, inútil.

A chaminé da fábrica elevava-se a distância. Anúncios verdes, vermelhos, acendiam-se e apagavam-se. O letreiro de um jornal reluzia em frente, num quinto andar. Àquela hora o elevador enchia-se, tipos suados, de roupas frouxas, entravam e saíam. Os ônibus e os bondes moviam-se devagar, como formigas, e a carga deles aumentava ou diminuía nos postes, uma parte esgueirava-se na sombra —  linhas insignificantes dentro da noite.

— Criatura paleolítica. Mãos compridas, finas, inúteis.

Esta incoerência irritou-o. Desejou afastar-se, atravessar a porta, entrar no corredor, virar à esquerda, tocar um botão, descer, ziguezaguear à toa pela cidade, traço insignificante.

Chegou-se à mesa. Ouvia desatento a voz sonora do político, sentia nela estranho poder, achava natural que na câmara as galerias se excitassem e batessem palmas escutando-a. Notava apenas que ela o jogava para direções contrárias: a porta meio cerrada e a parede onde se penduravam os coqueiros verdes e o céu azul.

Pensou no jogo de bilhar. Massé? Era, devia ser massé. A bola avançava, mas recuava antes de alcançar a tabela ou outra bola. Jogo difícil. Massé? Tinha ouvido a palavra. Ouvido ou lido, não sabia direito. Bola de bilhar. Isto. Bola de bilhar não tem memória.

Em todo o caso o deputado governista era um bom jogador. Via-lhe a mão curta e gorda, bem tratada, muito branca, e lembrava-se dos artigos e dos livros que ela havia redigido. Imaginou-a mexendo-se no papel com segurança, compondo uma prosa gorda, curta e branca, prosa que lhe dava sempre a ideia de toicinho cru. Detestava aquilo, desprezava o autor, um pedante, homem de frases arrumadas com aparato. Lendo-o, sentia-se duplamente roubado. Em primeiro lugar perdia tempo. E como levava uma vida ruim, gastando solas sem proveito em viagens às repartições, achava injustiça a ascensão do outro. Injustiça, evidentemente. Um roubo.

A amargura e o veneno desapareciam. Apertava as mãos úmidas, tentava dominar a carne bamba, que pesava demais, queria despregar-se dos ossos. Se ao menos tivesse uma cadeira para se sentar, a atrapalhação ficaria reduzida. Recostar-se-ia, cruzaria as pernas, balançaria a cabeça aprovando, naturalmente. Pareceria um sujeito educado. Mas assim de pé não se aguentava: ora caía para um lado, ora caía para outro, escorava-se à mesa, não podia resistir ao desejo de subir nela. As nádegas encostavam-se à tábua, pouco a pouco iam ganhando terreno, firmavam-se, uma perna se levantava, balançava.

O político influente passeava sem se fatigar. Dava três passos, parava, voltava-se, dava três passos novamente, tornava a parar, e assim por diante. Máquina bem construída, nenhuma peça prejudicava a função das outras. E falava. Quando se detinha, a mão curta e gorda movia-se traçando vagamente no ar a figura de um vaso, um vaso bojudo que encerrava o discurso.

Que dizia o deputado? Não podia compreender, mas deviam ser coisas graves e corretas, diferentes daquela prosa escrita, gorda e mole. Encolheu-se cheio de respeito, vencido pelo som e pelo gesto conveniente.

Em casa, de pijama e chinelos, em frente do livro ou do jornal, ser-lhe-ia fácil discutir e indignar-se, catar minudências, concluir que estava sendo roubado. Soltaria o papel, acenderia o cigarro, deitar-se-ia na cama. Depois retomaria com rancor o livro ou o jornal, torceria o nariz a um defeito qualquer, e o defeito se alastraria na página inteira como nódoa. Diria injúrias mentalmente ao deputado, comparar-se-ia a ele, queixar-se-ia da sorte.

Agora estava distraído e incapaz de julgar. As palavras do orador perdiam-se, confusas. O que havia era o gesto, o gesto que desenhava no ar figuras bojudas. Teve a impressão extravagante de que a sala se enchia de panelas. Isto lhe causava sério transtorno, porque, andando com firmeza no soalho bem envernizado, o político havia crescido muito. Sumira-se o escritor medíocre. Um sujeito respeitável movia-se com aprumo e dignidade. Os olhos duros e cinzentos contrastavam com a voz suave; a queixada larga avançava, agressiva, armada de fortes dentes amarelos; os cantos da boca pregueavam-se ligeiramente; o rosto vermelho tomava a aparência de uma cara de gato.

Sentiu medo. Quis afastar-se —  e percebeu que estava sentado na mesa, diante do orador governista, que se conservava de pé. Escorregou para o chão, envergonhado.

Recordou-se da situação difícil em que se tinha achado muitos anos antes, ao descer de um bonde. Correra perigo imenso, e ainda se arrepiava ao passar por aquela amaldiçoada esquina. Desenroscara-se do banco, pisara no estribo, saltara no asfalto, dera dois passos para a calçada de uma drogaria, onde caixões e um poste pintado de branco fechavam o caminho. Um buzinar de automóvel, à direita, esfriara-lhe o sangue. À esquerda uma carroça de leiteiro ia passar em frente ao bonde parado. Os três veículos combinavam-se perfeitamente: o bonde continuaria a viagem depois da passagem da carroça; o automóvel, sem diminuir a marcha, formaria com a parte traseira dela um ângulo reto. Fora meter-se ali, no espaço minguado. Mexia-se desordenadamente e não conseguia orientar-se. Num segundo revolvera na cabeça muitas coisas desencontradas: cenas da infância, a escola, o professor ranzinza, empregos ordinários, dias de fome, o pigarro antipático da mulher da pensão. A morte buzinava, empurrava-o para todos os lados, fazia-o dançar no asfalto como uma barata doida. Se retrocedesse, não alcançaria o estribo do carro. Com um salto poderia chegar à calçada, mas os caixões cresciam, oscilavam, ameaçavam cair, esmagá-lo antes que o automóvel o tocasse. O poste oscilava, as casas em redor oscilavam, os andares altos da drogaria queriam desabar e obstruir a rua. Apenas o bonde se imobilizara. A carroça de leiteiro movia-se no mesmo lugar, o automóvel rodava uma eternidade sem adiantar-se. Fugira-lhe a consciência. Ia tropeçar, tombar, esquecer as casas, os veículos e as pessoas. Acordara abraçado ao poste, achatando-se como uma lagartixa, forcejando por livrar-se de um objeto áspero que lhe roçava as costas. Pisara a calçada, apoiara-se a um caixão, desmaiado e quase idiota.

A angústia que experimentara naquele dia voltava-lhe agora, ao descer desajeitadamente da mesa. Avançou atordoado no soalho, ouviu passos à direita, temeu recuar, pareceu-lhe que o político ia transformá-lo numa pasta vermelha. Não ousou virar-se para a esquerda, onde qualquer coisa devia fechar-lhe o caminho. Ficou ali de pé, sentindo vagamente que, se conseguisse andar dois metros, evitaria um desastre.

Deu algumas pernadas e encostou-se à parede, respirando a custo. Bem. Estava em segurança. Afirmou que estava em segurança, e a ideia do perigo sumiu-se completamente. A presença do orador governista já não lhe inspirava temor: o que lhe causava era admiração, respeito supersticioso. O olho duro e cinzento continuava a fixar-se nele como um olho de cobra.

— Em segurança.

Apesar de se ter dissipado o pavor que o agarrara ao afastar-se da mesa, não se resolveria a abandonar o refúgio conquistado junto à parede, ao pé da janela.

Quis ver a rua novamente. Se voltasse o rosto, avistaria a chaminé da fábrica, o arranha-céu que tinha uma redação no quinto andar. O elevador subia e descia, repórteres apressados entravam e saíam.

Não se voltou: uma grande preguiça amarrava-o, dava-lhe jeito de estátua.

— Estátua muito mal-arranjada, pensou.

E sorriu, descobrindo que não perdera o discernimento. Tentou aparentar desembaraço, falar. A voz rouca, metálica, fanhosa, escapou-lhe como um grunhido.

Aquela voz horrível sempre lhe causara prejuízos. Conhecendo as desvantagens que ela produzia, calava-se diante de pessoas estranhas, manifestava-se por meio de caretas.

Não sabia precisamente o que dizia naquele instante. Repetiu as últimas palavras do deputado e logo se conteve. O som desagradável trouxe-lhe a ideia de serras chiando em madeira dura. Talvez a repetição fosse inconveniente ou viesse retardada, fora de propósito. Fazia com efeito um minuto que o orador andava em silencio, certamente esperando que ele se despedisse. A mão deixara de agitar-se acariciando a frase redonda, as figuras bojudas como panelas tinham desaparecido.

Bem. Achou que a personagem diminuíra um pouco, tomara proporções quase vulgares. A pupila dura espetava-o, mas o discurso findara —  e evidentemente existia redução.

Precisava sair dali, percorrer as avenidas, entrar nos cafés, abalroar os transeuntes, escutar pedaços de conversas, desviar- se dos carros, ver miudinhos os tipos imponentes e dominadores. Aquela entrevista, que lhe havia colado no espírito algumas esperanças, acabava mal. Nem o pedido, laboriosamente preparado, conseguira formular. As esperanças pouco a pouco se desgrudavam  e ele esmorecia, como uma grande ave depenada.

Um arrepio atravessou-lhe a coxa, subiu o tronco e foi morrer nos músculos do pescoço, entortando-lhe o rosto e livrando-o dos olhos maus do orador governista. Examinou com atenção distante a moldura dourada que cercava os coqueiros verdes e o céu azul. Novo arrepio. Uma grande ave depenada e friorenta.

Lembrou-se de outra moldura que lhe havia caído, anos atrás, em cima da cabeça. Escrevia com dificuldade, folheando o dicionário; o quadro pesado se despregara e lhe partira o couro cabeludo.

Desviou-se precipitadamente, levantou o braço para se defender. O político influente interpretou mal o gesto e estendeu-lhe a mão:

— Adeus.

— Muito obrigado, doutor, respondeu sem refletir.

O resto se perdeu num murmúrio. Deu uns passos vacilantes na madeira envernizada e escorregadia, retirou-se tonto, sentindo na cabeça a pancada que lhe tinha rachado o couro cabeludo, anos atrás.

Ao cerrar a porta, respirou com alívio. Meteu-se num corredor escuro, dobrou esquinas, parou, apertou um botão, acendeu um cigarro, pensou nos telegramas estrangeiros lidos pela manhã. Penetrando no elevador, mastigava o cigarro, nervoso. À medida que descia tranquilizava-se. E ao pisar na calçada, criticava livros, mentalmente. A literatura do político era com efeito ridícula.

Remoeu as coisas desparafusadas que ele escrevera. Malucas, absolutamente malucas. Roeu as unhas com fúria e multiplicou o deputado:

— Cretinos.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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