O que o
desgraçou por toda a vida foi a felicidade que o acompanhou durante um mês ou
dois. Coisa estranha: sem nenhuma preparação,
um tipo se aventura, anda para bem dizer de olhos fechados, comete erros, entra
nas casas sem examinar os arredores,
pisa como se estivesse na rua — e tudo corre bem. Pisa como se estivesse na
rua. É aí que principia a dificuldade. Convém saber mexer-se rapidamente e sem rumor, como um gato: o corpo não pesa, ondula, parece
querer voar, mal se firma nas
pernas, que adquirem elasticidade de borracha. Se não fosse assim, as juntas
estalariam a cada instante, o homem gastaria uma eternidade para deslocar-se, o trabalho se tornaria
impossível. Mas ninguém caminha desse jeito sem aprendizagem, e a aprendizagem não se realizaria se as primeiras
tentativas fossem descobertas. Deve haver uma divindade protetora para as criaturas estouvadas e de articulações
perras. No começo usam sapatos de corda — e ninguém desconfia delas: conseguem não dar nas vistas, porque são como toda a
gente. Nenhum polícia iria acompanhá-las. Se não batessem nos móveis e não dirigissem a luz para os olhos das pessoas
adormecidas, não cairiam na prisão, onde ganham os modos necessários ao ofício. Aí apuram o ouvido e habituam-se a
deslizar. Cá fora não precisarão sapatos de banho ou de tênis: mover-se-ão como
se fossem máquinas de molas bem azeitadas rolando
sobre pneumáticos silenciosos.
O indivíduo a que me refiro ainda
não tinha alcançado essa andadura indispensável e prejudicial: indispensável no
interior das casas, à noite;
prejudicial na rua, porque denuncia de longe o transeunte. Sem dúvida o homem
suspeito não tem só isso para marcá-lo ao olho do tira: certamente possui
outras pintas, mas é esse modo furtivo
de esquivar-se como quem não toca no chão que logo o caracteriza. O
sujeito não sabia, pois, andar assim, e passaria despercebido na multidão. Por
enquanto nenhuma esperança de se acomodar
àquele ingrato meio de vida. E Gaúcho,
o amigo que o iniciara, havia sido franco:
era bom que ele escolhesse ocupação
menos arriscada. Mas o rapaz tinha cabeça
dura: animado por três
ou quatro experiências felizes, estava
ali, rondando o portão, como um técnico.
Entrara na casa, fingindo-se
consertador de fogões, e atentara na disposição das peças do andar térreo.
Arrependeu-se de não ter estudado
melhor o local: devia ter-se empregado lá como criado uma semana. Era o
conselho de Gaúcho, que tinha prática. Não
o escutara,
procedera mal. Nem sabia já de que lado
da sala de jantar ficava a porta da copa.
Afastou-se, receoso de que alguém
o observasse. Desceu a rua, entrou no café da esquina, espiou as horas e teve
desejo de tomar uma bebida. Não tinha dinheiro.
Doidice beber álcool em
semelhante situação. Procurou um níquel no bolso, estremeceu. As mãos estavam
frias e molhadas.
—
Tem de ser.
Tornou a olhar o relógio. Não é que se havia
esquecido das horas?
Passava de meia-noite. Felizmente a rua topava o morro e só tinha uma entrada. À exceção dos moradores, pouca gente devia ir ali.
Afinal aquilo não tinha
importância. Agora temia encontrar um conhecido. O que mais o aperreava era o
diabo da tremura nas mãos. Estava quase certo de que o garçom lhe
estranhava a palidez. Saiu para a calçada e ficou indeciso, olhando o morro, enxugando no lenço os dedos molhados, dizendo pela segunda vez que aquilo não tinha importância. Como? Sacudiu a cabeça, aflito.
Que é que não tinha importância?
Seria bom recolher-se. Sorriu com
uma careta e subiu a ladeira, colando-se às paredes. Como recolher-se? Vivia na
rua. À medida que avançava a frase repetida
voltou e logo surgiu o sentido dela. Bem. A perturbação diminuía. O que não
tinha importância era saber se a
porta da copa ficava à direita ou à esquerda da sala de jantar. Ia levar
talheres? Hem? Ia correr perigo por causa de talheres? Mas pensou num queijo
visto sobre a geladeira
e sentiu água na boca.
Aproximou-se do morro, as pernas
bambas, tremendo como uma criança. Provavelmente a copa era à direita de quem entrava na sala de jantar, perto da escada.
—
Tem de ser.
Foi até o fim da calçada e, margeando
a casa do fundo, passou para o outro lado. Parou junto ao portão, encostou-se a
ele, receando que o vissem. Se
estirasse o pescoço, talvez o guarda, lá embaixo, lhe percebesse os manejos. O
coração bateu com desespero, a vista se turvou. Não conseguiria
enxergar a esquina e o guarda.
Encolheu-se
mais, olhou a janela do prédio fronteiro,
imaginou que por detrás da janela alguém o espreitava, talvez o dono da loja de fazenda que o examinara com
ferocidade, através dos óculos, quando ele estacionara junto do balcão. Tentou libertar-se do pensamento importuno. Por
que haveriam de estar ali, àquela hora, os mesmos olhos que o tinham
imobilizado na véspera?
De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora do jardim, a rua encheu-se
de emboscadas. A janela escureceu,
os óculos do homem da loja sumiram-se. Pôs-se a
tremer, as ideias confundiram-se, o projeto que armara surgiu-lhe como fato realizado. Encostou-se mais ao portão.
Durante minutos lembrou-se da
escola do subúrbio e viu-se menino, triste, enfezado. A professora
interrogava-o pouco, indiferente. O
vizinho mal-encarado, que o espetava com pontas de alfinetes, mais tarde virara
soldado. A menina de tranças era
linda, falava apertando as pálpebras, escondendo os olhos verdes.
Um
estremecimento dispersou essas recordações meio apagadas. Quis fumar, temeu
acender um cigarro.
Levantou a cabeça, distraiu-se vendo um bonde rodar longe, na boca da rua.
Sim, não, sim, não. Duas ideias
voltaram: o homem que se ocultava por detrás da janela estava aquecido e
tranquilo, a menina das tranças
escondia os olhos verdes e tinha um sorriso tranquilo. Os dentes bateram
castanholas, e isto alarmou-o: talvez alguém ouvisse aquele barulho esquisito
de
porco zangado. Mordeu a manga do
paletó, o som esmoreceu.
Sim, não, sim, não. Havia um
relógio na sala de jantar, estava quase certo de que escutava as pancadas do
pêndulo. Os dentes calaram-se, felizmente já não havia
precisão de mastigar o tecido.
Mudou de
posição, espreguiçou-se, os receios esfriaram. Agora se mexia como se não
houvesse nenhum perigo. Segurou-se
aos ferros da grade, uma energia súbita lançou-o no jardim. Pisando os
canteiros, subiu a calçada, arriou no sofá do alpendre. Se o descobrissem ali, diria que tinha entrado antes de se
fechar o portão e pegara no sono. Era o que diria, embora isto não lhe servisse.
Para que pensar em desgraças?
Levantou-se, chegou-se à porta, meteu a caneta na fechadura. O tremor das mãos
havia desaparecido. A lingueta correu
macia, uma folha da porta se descerrou. Estacou surpreendido: como nunca havia
trabalhado só, imaginara que a
fechadura emperrasse, que fosse preciso trepar no sofá e cortar com diamante um
pedaço de vidraça. Deitaria por baixo
da porta um jornal aberto, enrolaria a mão no lenço e daria um murro no vidro,
que iria cair sem ruído em cima do
papel. Agarrar-se-ia ao caixilho com as pontas dos dedos, suspender-se-ia,
entraria na casa, a cabeça para baixo, as mãos
procurando o chão. Ficaria pendurado algum tempo, feito um macaco, os dedos dos
pés curvos à borda da abertura, como ganchos.
Era
quase certo não se sair bem nesse pulo
arriscado. Falharia, sempre falhava.
Procurou a vidraça, inutilmente: não existia vidraça. Nem existia jornal.
Estupidez fantasiar dificuldades.
Entreabriu a porta, mergulhou na
faixa de luz que passou pela fresta, correu o trinco devagarinho. Avançou,
temendo esbarrar nos móveis.
Acostumando a vista, começou a distinguir manchas: cadeiras baixas e enormes
que atravancavam a saleta. Escorregou
para uma delas, o coração aos baques, o fôlego curto. Afundou no assento gasto.
As rótulas estalaram, as molas do
traste rangeram levemente. Ergueu-se precipitado, encostou-se à parede, com
receio de vergar os joelhos. Se as juntas
continuassem a fazer barulho, os moradores iriam acordar, prendê-lo. Achou-se
fraco, sem coragem para fugir ou defender-se.
Acendeu a lâmpada e logo se arrependeu. O círculo de luz passeou no soalho,
subiu uma cadeira e sumiu-se. A escuridão voltou. Temeridade acender a lâmpada.
Penetrou na sala de jantar,
escancarando muito os olhos. Agora os objetos estavam quase visíveis. Uma
sombra alvacenta descia pela escada, havia luz no andar de cima.
Bem. A porta
da copa, um buraco
negro, ficava à direita, como ele tinha suposto. Vira um queijo sobre a
geladeira dois dias antes.
Chegou-se à escada, apoiou-se ao corrimão, voltado para a copa. Realmente não
tinha fome. Sentia uma ferida no estômago, mas a boca estava seca.
Encolheu os ombros.
Estupidez arriscar-se tanto
por
um pedaço de queijo.
Subiu um
degrau, parou arfando, subiu outros, experimentando uma sensação de enjoo. A
casa mexia-se, a
escada mexia-se. A secura da boca desapareceu.
Dilatou as bochechas para conter a saliva e pensou no queijo, nauseado.
Adiantou-se uns passos, engoliu
o cuspo, repugnado,
entortando o pescoço.
—
Tem de ser.
Repetiu a frase para não recuar.
Apesar de ter alcançado o meio da escada, achava difícil continuar a viagem. E
se alguém estivesse a observá-lo no
escuro? Lembrou-se do sujeito da loja de fazenda. Talvez ele fosse o dono da
casa, estivesse ali perto, vigiando como um gato. Pensou de novo na
menina da escola primária, no
sorriso dela, nas pálpebras que se baixavam, escondendo olhos verdes,
de
gato. Desgostou-se por estar vacilando, perdendo tempo com miudezas.
Chegou ao fim
da escada, parou escutando, enfiou por um corredor onde vários quartos desembocavam. Fugiu de uma porta iluminada e encaminhou-se à sala, com a esperança de encontrá-la
deserta. O medo foi contrabalançado por um sentimento infantil de orgulho.
Realizara uma proeza, sim senhor, só queria ouvir a opinião de Gaúcho. Se não
acontecesse uma desgraça,
procuraria Gaúcho no dia seguinte. Se não acontecesse uma desgraça. Benzeu-se
arrepiado. Deus não havia de permitir infelicidade.
Tolice pensar em coisas ruins. Contaria a história no dia seguinte, sem falar
no medo, e Gaúcho aprovaria tudo, sem dúvida.
Torceu a
maçaneta, devagarinho: felizmente a porta não estava fechada com chave. Aterrorizou-se novamente, mas
surgiu- lhe de supetão a ideia
singular de que o perigo estava nos quartos, e na sala poderia esconder-se.
Entrou, cerrou a porta, fez um gesto cansado, respirou profundamente, afirmou que estava em segurança. A
tontura devia ser por causa da fome. Também um desgraçado como ele meter-se em semelhante empresa! Tinha
capacidade para aquilo? Não tinha. Um ventanista. Que é que sabia fazer? Saltar
janelas. Um ventanista, apenas. A
vaidade infantil murchou de repente. Se o descobrissem, nem saberia
fugir, nem acertaria com a saída. O que o preocupava naquele momento, porém,
era menos o receio de ser preso que a convicção da própria insuficiência, a certeza de que ia falhar. As mãos tremeriam, as juntas estalariam, movimentos irrefletidos derrubariam móveis.
Apertou as mãos, subitamente
resolvido a acabar depressa com aquilo, fixou a atenção na cama enorme, onde um
casal de velhos dormia. Baixou-se,
alarmado: se uma das pessoas acordasse, vê-lo-ia parado, como estátua. Avançou,
de cócoras, foi esconder-se por detrás da cabeceira da cama, permaneceu
encolhido, até sentir cãibras nas
pernas. As janelas estavam abertas, a luz da rua banhava
a sala.
Virando o
rosto, viu-se no espelho do guarda-vestidos e achou-se ridículo, agachado, em
posição torcida. Voltou-se, livrou- se
da visão desagradável, avistou um braço caído fora da cama. Braço de
velha, braço de velha rica, de uma gordura nojenta. A mão era papuda e curta, anéis enfeitavam os dedos grossos.
Pensou em tirar os anéis com agulhas, mas afastou a ideia. Trazia
no bolso as agulhas, só porque Gaúcho
lhe ensinara o uso delas.
Não se arriscaria a utilizá-las. Gaúcho tinha nervos de ferro. Tirar anéis da mão de uma pessoa adormecida! Que homem! Anos de prática,
diversas entradas na casa de detenção.
Engatinhando, aproximou-se do guarda-vestidos, abriu-o
e começou a revistar
a roupa. Descobriu uma carteira
e guardou-a sem reparar no que havia dentro dela.
Interrompeu a busca, afastou-se, mergulhou no corredor, parou à porta do quarto iluminado. Examinou a carteira,
achou várias notas.
Tentou calcular o ganho mas a luz do corredor era insuficiente. Escondeu
o dinheiro, soltou um longo suspiro.
Devia retirar-se. Deu alguns
passos, recuou vexado, receoso das pilhérias que Gaúcho iria jogar-lhe quando
soubesse que ele tinha deixado uma casa sem percorrê-la. O terror desaparecera: estava
cheio de espanto por haver escapado àquele imenso perigo. Realmente
não tinha escapado, mas julgava-se
quase livre.
Abriu uma porta a ferro, acendeu a
lâmpada, viu um oratório. Desejou apoderar-se dos resplendores das imagens e do bordão
de
S. José, de ouro,
pesado. Afastou-se, com medo
da
tentação. Não cometeria semelhante sacrilégio.
Andou noutras peças, arrecadou
objetos miúdos. Queria penetrar no quarto iluminado, mas não conseguia saber o
que o empurrava para lá. Boiavam-lhe
no espírito dois esboços de projetos: contar o dinheiro, coisa que não poderia
fazer no corredor, e descrever a Gaúcho
a aventura.
Destrancou a porta, entrou,
esquivou-se para trás de um armário. Havia no quarto uma cama estreita, mas nem
reparou na pessoa que estava deitada
nela. Tirou do bolso a carteira, ficou algum tempo olhando, como um idiota,
papéis e dinheiro. Principiou uma
soma, que se interrompeu muitas vezes: os dedos tremiam, os números
atrapalhavam-se. Impossível saber quanto havia ali. Machucou as notas na algibeira
da calça. Bem, contaria depois a grana, quando estivesse
calmo. Abandonaria o morro e iria
viver num subúrbio distante, onde ninguém o conhe-cesse, largaria aquela
profissão, para que não tinha jeito.
Nenhum jeito. Não diria nada a Gaúcho, evitaria indivíduos assim
comprometedores. Ia endireitar, criar vergonha, virar pessoa decente,
arranjar um negócio qualquer longe de Gaúcho. Sim senhor. Apalpou o rolo de
notas através do pano, meteu o botão
na
casa da algibeira.
Criar vergonha, sim senhor, o
que
tinha ali dava para criar vergonha.
Olhou a cama, julgou a princípio que estava lá uma criança, mas viu um seio e estremeceu. Voltou-se, não devia arriscar-se à
toa. Deu uns passos em direção à porta, deteve-se, curvou-se, observou a moça.
Achou nela traços da menina de olhos verdes. O coração bateu-lhe demais no peito magro, pareceu
querer sair pela boca.
—
Estupidez.
Aprumou-se e desviou a cara.
Estupidez. Tentou pensar em coisas corriqueiras, encheu os pulmões, contou até
dez. A tatuagem da perna de Gaúcho era medonha, uma tatuagem indecente; àquela hora o café da esquina devia estar
fechado. Tornou a contar até
dez, esvaziando os pulmões. Um acesso de tosse
interrompeu-lhe o exercício.
Retirou-se precipitado,
fazendo esforço enorme para se
conservar em silêncio. Faltou-lhe o ar, as lágrimas saltaram-lhe, as veias do pescoço endureceram como cordas
esticadas. Atravessou o corredor desembestadamente, desceu a escada, meio doido, sacudindo-se desengonçado, a mão na
boca. Sentou-se no último degrau e esteve minutos agitado por pequenas contrações, um som abafado morrendo-lhe na
garganta, asmático e penoso, resfolegar de cachorro novo. Pôs-se a arquejar baixinho,
extenuado, procurando livrar-se de
um pigarro teimoso que lhe arranhava a goela. Enxugou um fio de baba, pouco a
pouco se recompôs. Certamente as pessoas do
andar de cima tinham despertado
quando ele fugira correndo.
Virou a
cabeça, puxou a orelha, agoniado. Tinha a ilusão de perceber o trabalho das traças que roíam pano lá em cima, nos armários.
Devia ter trazido alguma
roupa para vender
ao intrujão.
Um apito na rua deu-lhe suores frios, um galo cantou perto. Depois tudo sossegou, avultaram no silêncio
rumores indeterminados: provavelmente pés de baratas se moviam
na parede.
Ergueu-se, com fome, libertou-se
de terrores, procurou orientar-se. As cócegas na garganta desapareceram. Tolice
prestar atenção à marcha das baratas
na parede e ao apito do guarda, na rua. Nada daquilo era com ele, estava livre
de perigo. Livre de perigo. Se a
tosse voltasse, abafá-la-ia mordendo a manga. Temperou a garganta, baixinho.
Tranquilo. Tranquilo e com fome. Voltou-se
para um lado e para outro, hesitou entre a saleta e a copa. O
pigarro sumiu-se completamente, a boca encheu- se de saliva. Aguçou ainda o ouvido: nem
apito nem canto de galo, as pernas das baratas se tinham imobilizado. Desejava entrar na copa, comer um bocado. Agora que
a sufocação e a secura da boca haviam desaparecido, bem que precisava mastigar
qualquer coisa.
Apertou o botão da lâmpada, a luz
fraca lambeu a cristaleira, subiu a mesa, dividiu-a pelo meio. Descansou
a lâmpada na toalha. Bambeando, amolecido, retirou
da algibeira as notas machucadas, tentou novamente contá-las, aproximando-as
muito do pequeno foco elétrico.
Recomeçou a contagem várias vezes, afinal julgou acertar, convenceu-se de que
havia ali dinheiro suficiente para um
botequim no subúrbio. Alisou as cédulas, dobrou-as, guardou-as, abotoou-se. Um
capital. Sentia frio e fome. O guarda devia estar cochilando lá
embaixo, à esquina do café. Levantou a gola. Um capital. Estabelecer-se-ia com
um café no subúrbio, longe de
Gaúcho e daqueles perigos. Café modesto, com rádio, os fregueses, pessoas de
ordem, discutindo futebol. Tinha jeito para isso. Ouviria
as conversas sem tomar
partido, não descontentaria ninguém e fiscalizaria os empregados
rigorosamente. Um patrão, sim senhor, fiscalizaria os empregados rigorosamente.
E Gaúcho nem o reconheceria se o
visse, gordo, sério, bulindo na caixa registradora. Naturalmente. Apalpou a
carteira, sentiu-se forte. Bem. Contanto que
não fossem fuxicar política no café. Esportes, coisas inofensivas,
perfeitamente; mas cochichos, papéis escondidos, isso não. Tudo na lei, nada
de complicações com a polícia.
Aprumou-se, esqueceu o lugar onde
estava. Uma dorzinha fina picou-lhe o estômago. Tomou a lâmpada, encaminhou-se
à copa,
firme como um proprietário. O medo se havia sumido.
Para bem dizer,
era
quase um dono
de
botequim no
subúrbio.
De repente assaltou-o um desejo besta de rir, riu baixo, temendo engasgar-se e tossir de novo. Sacolejou-se muito tempo, e a sombra dele dançava na luz que se
espalhava no soalho. Tinha chegado fazendo tolices, nem acertava com as portas,
um doido. Largara-se pela escada
abaixo, aos saltos. E ninguém acordara, parecia que os moradores da casa
estavam mortos. Então para que todos
os cuidados, todas as precauções? Gaúcho fazia trabalho direito, tirava anéis
das pessoas adormecidas, com agulhas.
Homem de merecimento. E, apesar de tudo, mais de vinte entradas na casa de
detenção, viagens à colônia correcional, fugas arriscadas. Inútil a ciência
de Gaúcho. Quando Deus
quer, as pessoas não acordam.
Onde estaria o queijo que na
antevéspera se achava em cima da geladeira? Procurou-o debalde. Entrou na
cozinha, mexeu nas caçarolas,
encontrou pedaços de carne, que devorou quase sem mastigar. Lambeu os dedos
sujos de gordura, abriu devagarinho a torneira da pia, lavou
as mãos, enxugou-as ao paletó. Respirou,
consolado. A tontura
desapareceu.
Recordou os disparates que praticara. Santa Maria! Desastrado. Se falasse a Gaúcho com franqueza, ouviria um sermão.
Mas não falaria, não
queria mais relações com Gaúcho,
ia abrir um café no arrabalde.
Voltou à sala de jantar e apagou a lâmpada. Aquela gente lá em cima tinha um sono
de
pedra.
Veio-lhe a ideia extravagante de subir de novo a escada e tornar a descê-la, convencer-se de que não era tão desazado como
parecia. E lembrou-se da menina dos
olhos verdes, que lhe surgiu na memória com um seio descoberto. Absurdo. Quem
estava com o
seio à mostra era a moça que dormia no andar de cima.
Como seriam os olhos dela?
Duas pancadas
encheram a casa. E um
tique-taque de relógio começou a aperreá-lo. Pouco antes havia silêncio, mas
agora o tique-taque martelava-lhe o
interior.
Dirigiu-se à
saleta, voltou com a tentação de entrar nos quartos, trazer de lá alguns
objetos para vender ao intrujão. Parecia-
lhe que, recomeçando o trabalho em conformidade com as regras ensinadas por
Gaúcho, de alguma forma se reabilitaria. O maço de notas, adquirido facilmente, nem lhe dava prazer.
Pisou a escada e estremeceu. As razões que o impeliam
sumiram-se, ficou o peito descoberto. Esforçou-se por imaginar o
botequim do arrabalde. Inutilmente. Subiu, parou à entrada do
corredor.
— Que doidice!
Foi até a porta do quarto iluminado, empurrou-a, certificou-se de que a mulher
continuava a dormir.
E daí em
diante, até o desfecho medonho, não soube o que fez. No dia seguinte, já perdido, lembrou-se de ter ficado muito tempo junto à cama, contemplando a moça, mas achou difícil
ter praticado a maluqueira que o desgraçou. Como se tinha dado aquilo? Nem sabia. A princípio foi um
deslumbramento, a casa girando, a cama girando, ele também girando em torno da mulher,
transformado em mosca. Girando, aproximando-se e afastando-se, mosca. E a necessidade de pousar, de se livrar dos
giros vertiginosos. A figura de Gaúcho esboçou-se e logo se dissipou, os óculos
do homem da loja e os vidros da casa fronteira confundiram-se um instante e
esmoreceram. Novas pancadas de relógio, novos apitos e cantos de galos,
chegaram-lhe aos ouvidos, mas
deixaram-no indiferente, voando. E aconteceu o desastre. Uma loucura, a maior
das loucuras: baixou-se e espremeu um beijo
na boca da moça.
O resto se narra nos papéis
da polícia, mas ele, zonzo, moído,
só conseguiu dar informações incompletas e contraditórias. É em vão que o
interrogam e machucam. Sabe que ouviu um grito de terror e barulho nos outros
quartos. Lembra-se de ter atravessado
o corredor e pisado o primeiro degrau da escada. Acordou aí, mas adormeceu de
novo, na queda que o lançou no andar
térreo. Teve um sonho rápido na viagem: viu cubículos sujos povoados de
percevejos, esteiras no chão úmido, caras horríveis,
levas de infelizes transportando vigas pesadas na colônia correcional.
Insultavam-no, choviam-lhe pancadas nas costas cobertas de pano listrado.
Mas
os insultos apagaram-se,
as
pancadas findaram.
E
houve um longo
silêncio.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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