UM HOMEM NOTÁVEL
Residia no
interior e tinha duas qualidades que lhe adoçaram a vida, e eximiram de
inquietações: era branco e analfabeto.
Se não fosse
branco, nivelar-se-ia à canalha da roça, mais ou menos cabocla, mais ou menos
preta, sentir-se-ia pequeno, disposto à obediência. Se não fosse analfabeto,
consumir-se-ia em exercícios inúteis à lavoura do algodão e da mamona, leria
romances e telegramas da Europa, alargaria pelo mundo, à toa, pensamentos
improdutivos.
Mas como
dispunha de olhos azuis, pele clara e cabelos de gringo, viu com desprezo as
figuras chatas, encarapinhadas, foscas e oblíquas dos arredores, convenceu-se
de que possuía requisitos para dominá-las e arrogou-se direitos muito
superiores aos delas. E como não esbanjava tempo nas cogitações distantes que
os livros sugerem, observou solícito as coisas próximas e necessárias, as que
se podiam juntar e levar ao mercado.
Em
consequência prosperou. Passados alguns anos na plantação, largou a fazenda e
estabeleceu loja na cidade, onde os negócios lhe correram bem. Cresceu,
enferrujou a cara, endureceu a voz, roncou alto aos indivíduos comuns que se
avizinhavam do balcão. Não precisando curvar-se a uma banca, estragar a vista
em cima de papéis, chegou à velhice sem usar óculos, o espinhaço direto como um
fuso.
Evidentemente
fugiu de obrigações no selo, o que o isentou da chicana. E impossibilitado de
vender a crédito, por não confiar na arte dos guarda-livros, seduziu os
fregueses que se esquivavam dos outros negociantes, torciam caminho para evitar
o capital e os juros tocaiados em carteiras perversas, em bojudos volumes de
escrituração.
Construiu uma
casa vistosa, com frontaria de azulejos, encheu-a de móveis complicados e gozou
a existência comendo e bebendo em excesso.
Satisfeitas as
necessidades fundamentais, adquiriu outras de ordem mais elevada — e vestiu-se
nas melhores alfaiatarias da capital, limpou as unhas, expôs no dedo um
brilhante caro e graúdo, segurou o relógio com enorme cadeia de ouro, que saía
do bolso esquerdo do colete e ia mergulhar no bolso direito, exibindo na
casimira negra uma curva amarela de grande efeito.
Esse apuro lhe
trouxe modificações interiores: misturou a roupa, o anel e a cadeia às
qualidades que lhe tinham rendido a fortuna — e sentiu-se limpo, areado,
faiscante.
As exigências
de comunicação levaram-no a escolher alguns amigos, convidá-los para longos
jantares, abrir-lhes a alma, narrar-lhes o preço dos objetos valiosos que lhe
adornavam a residência e a pessoa.
Certos hábitos
sociais e econômicos obrigaram-no a ligar-se a uma secretária diplomada pela
escola normal. Casou-se com ela e, conseqüentemente, arranjou aptidão para
subscrever-se, desenhando as letras em cinco minutos com labor, rasgando a
folha, quebrando a pena. Ficou por aí, e nunca percebeu o valor dos símbolos
que lhe representavam o nome. Na verdade submeteu-se ao casamento por causa
deles. Precisava relacionar-se com o banco, não queria deixar o numerário mofar
no cofre, estéril. À falta de miseráveis rabiscos num cheque, prejuízo de
tantos por cento.
Havia também a
perseguição das cartas. Quando mal se precatava, em conversa com visitantes ou
fregueses, erguendo à luz o dedo e o brilhante, fazendo tilintar a corrente de
ouro, recebia um envelope e murchava. Abria-o, chateado, procurava em todos os
bolsos os óculos inexistentes, fingia examinar a antipática literatura,
aproximando-a, afastando-a, desviando-se dos indiscretos, porque receava que
ela estivesse de cabeça para baixo. Afugentava o portador:
— Está bem. Depois
respondo.
Mas não dava a
resposta nunca, para não revelar a estranhos a sua insuficiência, e ficava a
matutar no que pretendiam dizer-lhe de longe, numa forma de expressão
antinatural e estúpida. Sem se ter familiarizado com ela, manejava centenas de
contos em bens de raiz, mercadorias e papel-moeda, o que não sucedia ao juiz,
ao promotor e aos escrivães, tipos inferiores.
Casou — e
todas as dificuldades se sumiram. Para bem dizer, tornou-se proprietário dos
conhecimentos da mulher. Considerou-os coisas dele, como o brilhante, a cadeia,
o relógio, os móveis, os semoventes e os imóveis.
Aumentou o
vocabulário e começou a utilizar frases desconhecidas, com bastante
impropriedade. Esse passatempo deu-lhe satisfação. Livre do desgosto que os
bilhetes e as cartas lhe proporcionavam, a caderneta do banco a engordar no
cofre, julgou-se perfeitamente feliz e assinou jornais, que à noite escutou,
fumando o charuto, a pálpebra cerrada, grave, erguendo a mão esperta, a
aprovar, a desaprovar. O seu julgamento era decisivo e enérgico. Presumiu-se
dono da prosa dos jornais e das ideias existentes nela. E manifestou-se com
rumor e aparato.
Fez discursos,
derramou-se em afirmações definitivas, explicou mistérios, não deixou em
polêmicas nenhum ponto obscuro. Os homens respeitaram-no, elogiaram-lhe a
inteligência.
— Como diabo
conseguiu ele tanto dinheiro sem saber ler? Com certeza possuía miolos
admiráveis. A condição de analfabeto elevou-o.
Rio de Janeiro, maio de 1943.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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