UM DESASTRE
Alagoas é um
estado pobre. Em pouco mais de vinte e oito mil quilômetros quadrados arruma-se
quase um milhão de habitantes. Para bem dizer, não se arruma: na praia há
charco, mosquito, sezão; na catinga há seixo, cardo, fome. Entre as duas zonas
aperta-se a mata, com algodão e cana-de-açúcar, mas aí não se consegue terra
facilmente, o salário é baixo — e para lá das cancelas o despotismo do
proprietário vale o mosquito e o cardo juntos.
Em toda a
parte o amarelão — desânimo, gordura fofa: homens cor de cera, indecisos entre
a vida e a morte; raparigas velhas, uns cacos de mulheres na adolescência;
meninos ramelosos, de pernas finas como cambitos, barrigas enormes, grávidas de
lombrigas. E muita porcaria: falta de água no sertão, excesso no litoral, o
solo empapado, lama.
Nessa penúria,
os que têm restos de energia emigram; outros olham os pontos cardeais,
esperando um milagre. Em cima, o fazendeiro, o negociante e o burocrata.
Escorados nos
balcões das vilas, sujeitos ociosos conversam; os beiradeiros das lagoas nem
força têm para conversar. Pernas arrastadas, beiços pálidos, meia dúzia de
palavras bambas, como neste diálogo que Pedro Lima inventou:
— Seu
compadre, se esta miséria continuar, nós acabamos pedindo esmola.
— A quem?
A população
cresce demais. Se a dos outros estados fosse tão densa, o país seria uma nova
China. Mais de novecentas mil sombras. Insignificante produção para tanta
gente. Na roça uma família inteira se esconde nas camarinhas, nua, enquanto a
mãe vai à cacimba, lavar roupa. Um indivíduo mendiga para casar.
— Como é que
você sustenta mulher e filhos, criatura?
— Deus dá o
jeito.
Ali por volta
de 1930 só um município arrecadava cem contos. Hoje as rendas parecem ter
subido um pouco. Mas terão “realmente” subido?
Não devemos
falar em tais coisas a estranhos. Em vez de penalizá-los, humilhando-nos,
exibimos a sala de visitas, arranjada com decência. Apesar de tudo, o alagoano
tem momentos de vaidade e abomina considerações desagradáveis. Possuímos
glória: Tavares Bastos, Sinimbu, heróis no Paraguai, colonizados do Amazonas. E
proclamamos a República. Para alguma coisa a emigração haveria de servir.
Infelizmente
precisamos renunciar por enquanto a essas lembranças consoladoras e expor os
nossos males. Vieram males grandes, além dos ordinários. Chuva incessante,
inundação, dilúvio. O Senhor resolveu afogar os nossos pecados. Os rios
engrossaram, submergiram campos, mataram plantas, bichos e cristãos; riachinhos
incharam, converteram-se em torrentes, devoraram morros numa erosão faminta e
raivosa. Aluíram pontes, ruíram casas, sumiram-se povoações. Impossibilitou-se
o trânsito nos caminhos alagados; descansaram as locomotivas; nos lugares onde
rodavam trens e bondes vogam canoas. Fecharam-se os estabelecimentos comerciais:
a indústria emperrou; trabalhadores esqueceram as suas profissões e tentaram,
nervosos, defender ruínas que se dissolvem. De espaço a espaço um
desmoronamento — e os restos das cidades emergem como se fossem construídos em
palafitas. A agricultura foi varrida: canaviais e arrozais desceram na
correnteza ou sepultaram-se no lodo.
Se as notícias
calamitosas se referissem a uma cheia do Yang-Tsé-Kiang, acharíamos enorme a
catástrofe distante, alargada pelasagências telegráficas. Estamos, porém,
diante de uma tragédia caseira, narrada economicamente por Nelson Flores. E,
julgando-nos favorecidos pela Providência, buscamos atenuar as nossas aflições.
Contudo esses horrores próximos, que dia a dia o conhecimento de pormenores engrandece, não podem ser desfeitos com sorrisos apenas. Há uma desgraça. Evidentemente o governo local não tem meio de combatê-la. É indispensável o socorro da União. E é indispensável o auxílio do particular, bondade que não faltaria se uma erupção do Aconcágua houvesse destruído algumas aldeias.
Certo não se
trata de consertar as máquinas das usinas. Elas se desenferrujarão naturalmente
— e o açúcar terá bom preço. A campanha iniciada aqui tende a minorar o
sofrimento do homem que nunca entrou num banco e só conheceu durezas, o vaqueiro
do sertão mudado em brejo, o pescador da lagoa tornada mar. Vestir os nus,
curar os doentes, erguer o casebre da viúva, amparar o órfão, enfim semear
naquela região infeliz uns pedaços de obras de misericórdia. Quando as águas
baixarem, a maleita se desenvolverá junto aos mangues crescidos, bandos
exaustos andarão trêmulos. Pensamos nessa gente mais ou menos inútil. Mas que
poderia não ser inútil. E poderá talvez não ser inútil.
Rio de Janeiro, 25 agosto de 1944.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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