UM CINTURÃO
As minhas primeiras relações com a
justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou
cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam
feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de
julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi antes do caso
do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez
minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas
sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas
grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água
de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava,
condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa,
sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele,
a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história
do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na
sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede
infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor,
batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro
da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma
exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia
habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que
não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A
força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de
conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o
pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao
açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel,
atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía
surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu
acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente,
reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil
explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da
raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam,
desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena.
Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros
de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui
sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível
responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado
me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha
infância, e as consequências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu
tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os
seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante
maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não
posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se
fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas
adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com
pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta
repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar,
causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os
dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro
entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros
eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu
pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no
quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os
cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu
corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos
- e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão?
Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi
direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o
chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de
couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia
saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu
amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa
escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de
cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do
teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha
engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso,
segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito
fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C,
valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na
sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido.
Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me
num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por
muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase
preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a
mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos
caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com
os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar
as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o
maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e
entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça,
a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me
abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente
minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu
o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se
aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e
forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão
insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que
tive com a justiça.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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