UM ANTEPASSADO
O velhinho
apeou, entregou o cavalo a um moleque, subiu os degraus do copiar, avizinhou-se
do banco onde me distraía olhando, na preguiça e no calor, as cercas do curral,
a serra distante, as árvores torradas, os xique-xiques e os mandacarus que
manchavam de salpicos verdes a campina amarela.
— É você o meu
bisneto?
Ergui-me,
atentei no corpo musculoso e aprumado, na boca enérgica, no rosto liso e
vermelho, rosto de criança.
— Talvez seja.
Cheguei ontem e não conheço ninguém por estes arredores. Tenho um bisavô no
outro lado do rio. Talvez seja o senhor. Não sei.
— Sou eu
mesmo. Vim fazer-lhe uma visita.
— Ora essa!
Não devia ter vindo.
Homem tão
idoso, pegando noventa anos, deixar o travesseiro e os cochilos para visitar um
descendente quase ignorado, que já ia perdendo o parentesco. Manifestei-lhe a
surpresa com modos de gente da cidade:
— Sinto muito.
Um incômodo. Ia apresentar-me ao senhor, hoje ou amanhã. Cheguei ontem.
Interrompeu-me,
examinou sério, estirando o beiço, os meus reduzidos muques, o peito cavado, os
ombros que se encolhiam:
— Doente?
Balancei a
cabeça, esmorecido, bambo. E, num gesto vago, mostrando o organismo chinfrim:
— Um bando de
cacos.
— É o que se
ganha na rua.
Bateu à porta,
chamou, entrou pisando com força, as rosetas das esporas tinindo, foi abençoar
a filha e os netos — minha avó e meus tios. Cumprida a obrigação, voltou ao
copiar. E, enquanto lhe preparavam o café, levei-o ao quarto que me haviam
dado, o melhor de todos, com reboco, junto ao quintalzinho onde recendiam
craveiros e panelas de losna. Ofereci-lhe a cadeira única, sentei-me na rede,
procurei nas teias de aranha, no pátio branco varrido pelos redemoinhos, no
chiqueiro das cabras, nos xique-xiques e nos mandacarus objeto que pudesse
interessá-lo. As aranhas, as cabras, os espinhos, o calor e a poeira nada me
sugeriam. Contrafeito, remexi o interior, em vão. Nenhum assunto por dentro,
nenhum assunto por fora.
Mas o
constrangimento durou pouco. O ancião dirigiu a conversa, loquaz, amaciando a
palavra rude. Era um vivente alegre, simpático, sem tremura e sem calvície. As
mãos calejadas agitavam-se firmes, tencionavam amparar-me a fraqueza e a
doença; uma admirável cabeleira de teatro enfeitava aquela estranha velhice,
pura, limpa, isenta de pigarro, de bronquite; o riso franco exibia dentes
claros, perfeitos, capazes de trincar ossos.
Começou
esquadrinhando os livros que se arrumavam em cima dum caixão. Abriu um volume.
— O senhor lê
sem óculos?
— Naturalmente,
nunca precisei disso.
Encostou a
página de letra miúda aos olhos muito azuis, afastou-a, aproximou-a:
— Quelques?
Que diabo é quelques? Pronunciava cuelques. Soltou a brochura:
— Bem. Deve
ser língua de gringo. Não entendo.
— Melhor. Se
entendesse, não tinha tão boa vista. A leitura arrasa uma pessoa.
— Talvez
arrase. Para que tanto papel? Enfim. Não sei não, os tempos estão mudados.
Não aprovou
nem desaprovou a literatura exposta no caixão e na mesinha, estreita e coxa,
prosa mais abundante que a que havia absorvido em quase um século.
Pôs-se a falar
sobre D. Pedro II e a família imperial, como se se referisse a criaturas
embarcadas para o estrangeiro na véspera. Conhecia poucos fatos, obtidos por
via oral, mas estavam bem guardados.
— Que memória!
— Não é
vantagem. Queria que eu andasse com besteiras, tresvariando? Sua bisavó morreu
na caduquice. Miolo fraco. E ainda estava bem moça, a pobre. E calete. Pois,
como ia explicando, a princesa Isabel agarrou o conselheiro e disse assim...
— Parece que o
senhor foi testemunha.
— Foi o que se
deu. Todo mundo sabe.
Com certeza o
homem se lembrava de casos antigos e esquecia os acontecimentos novos. Engano.
Experimentei-o e notei que o espírito de antepassado funcionava direito, sem
falhas. Realmente o vocabulário dele tinha algumas centenas de palavras. O meu
ia muito além, mas a significação dum desses instrumentos fugia às vezes e
era-me indispensável consultar o dicionário. Se eu possuísse cabeça igual
àquela, o meu trabalho seria fácil. Lamentava-me em silêncio — e o velho
discorria sobre os negócios da fazenda. Interrompeu-se, observou as barrocas do
chão e as paredes negras:
— Você aqui
está mal acomodado. Vá lá para casa.
— Impossível.
Não faço uma desconsideração a minha avó. Estou bem.
— Vá passar
alguns dias comigo.
—
Perfeitamente.
— Que idade
tem ela?
— Vinte e
cinco anos, coitada. Vive cheia de macacoas e não há remédio que sirva. O
pequeno tem seis incompletos.
— Ora vejam
que fim de mundo! exclamei. Fiz dezoito anos e tenho um tio-avô com menos de
seis. Incrível.
— É o último,
afirmou o patriarca. A mulher, achacada, entregou os pontos, e daqui em diante
não produz.
Rio de Janeiro, abril de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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