TRANSAÇÃO DE CIGANO
Um punguista me afirmou há tempo que a sociedade se compõe de malandros e otários. Não seria possível achar um terceiro grupo: até nos indivíduos mais inexpressivos há, latentes, as qualidades que determinam uma das duas categorias. Inútil querermos destruir a ordem natural. O malandro veio ao mundo para esfolar, o otário deve ser esfolado — e, quer estejamos de acordo quer não estejamos, a operação dolorosa tem de realizar-se, porque isto é a vontade de Deus.
Os sertanejos aceitam em geral a opinião do punguista. E resignam-se, coçam a cabeça, murmurando com fatalismo duas frases que se repetiram em demasia e se transformaram em provérbios:
— Quem é do chão não se trepa. Quem nasceu para vintém não chega a tostão.
Conformam-se. E na sua condição azinhavrada e modesta de vinténs, admiram e veneram os tostões. Os verdadeiros, é claro, os legais, pois os falsos não merecem nenhuma consideração.
Entre os vários tipos de malandros sustentados pelo matuto figuram os que se dedicam a negócio de animais.
Em primeiro lugar vêm os ladrões, organizados numa vasta maçonaria que se ramifica por todo o Nordeste, com hábitos e linguagem especiais, regras complicadas, uma hierarquia de numerosos graus, em cima a personagem que vende longe o bicho furtado, intermediários de colarinho ou sem colarinho, embaixo o caboclo de alpercatas. Os graúdos fogem às perseguições, os de somenos valia morrem na emboscada, como é de justiça. Ordinariamente o júri absolve o assassino e condena o ladrão, mas às vezes se atrapalha no julgamento. E como se considera a pena muito fraca, liquida-se, por segurança, o indivíduo pernicioso, o agente inferior.
Além dessas criaturas temíveis, há os negociantes de cavalos. Atacadistas ou retalhistas, solitários ou agrupados, profissionais ou diletantes, nômadas ou sedentários. Inspiram antipatia ao agricultor, um receio que se disfarça por dois motivos: adotam ocupação lícita e são hábeis, ardilosos, capazes de dar lições a rato. Nas suas transações mais claras há manha encoberta. Têm partes com o diabo, deitam poeira nos olhos dum cristão, mostram o que não existe e escondem as coisas evidentes.
Os de mais respeito são os ciganos, que já não são ciganos e talvez nem tenham sangue deles, mas vivem à toa, aboletam-se no campo ou em pontas de rua, em barracas, ligam-se a diversas mulheres e usam uma algaravia arrastada, para ganhar importância. O sertanejo evita-os, nega-lhes um caneco d’água em tempo de seca e, invariavelmente, ensina-lhes o caminho errado.
Há os trocadores. Andam nas fazendas e nas povoações do interior, buscando roceiros inexperientes, e se os descobrem, oferecem logo, em conversas abundantes e repisadas, cheias de exclamações, alguma pequenina besta de cangalha.
— O melhor bichinho do mundo, ligeiro como gato, uma beleza, direitinho moça nua.
Desafiam a réplica, entram em longas discussões obscuras, em que gestos e risadas substituem as palavras. Não se apressam. Vencem as objeções com amabilidades ou injúrias, conforme as circunstâncias, fatigam os adversários, acabam impingindo-lhes quartaus esparavonados, recebendo outros menos ruins e algum dinheiro, que não admitem barganha sem isto, pois a volta é que faz o anzol. Recebem dez mil-réis, cinco mil-réis, mas enfim recebem qualquer lambujem. Um desses viventes sagazes chegou à feira um dia, montado num sendeiro manco. Vendeu-o, efetuou muitas operações. À noite havia readquirido o mesmo sendeiro.
Tornou a casa montado nele, com gêneros para a semana e duzentos mil-réis em notas, prata e níquel na capanga.
— Defeito? O defeito do meu cavalo está na vista.
O parceiro julga que o defeito está patente e engana-se. O malandro falou direito: o cavalo é cego. A vítima do embuste oculta a derrota como se ocultasse doença feia.
Um código interessante regula essas patifarias — jogo em que a patota dá prestígio a quem sabe utilizá-la. O pexote que se deixa embromar enche-se de vergonha e cobre-se de ridículo. Afinal não é vantagem iludi-lo. Caso digno de interesse é engabelar um sujeito sabido, como na história seguinte.
O chefe dos ciganos atravessou a porteira, deixou o bando aí, aproximou-se da casa-grande, conduzindo um burro idoso pelo cabresto, varreu o chão com a aba do chapéu diante do senhor de engenho. Este mandou buscar uma égua do cambito, objeto dum arranjo meio apalavrado antes. Cada um dos contendores elogiou o seu animal e examinou cuidadosamente o do outro. Somaram as falhas visíveis, fizeram acréscimos e, certos de que possuíam duas desgraças vivas, realizaram a permuta com os embelecos da praxe. Despediram-se. O vagabundo reuniu-se aos companheiros, saiu da propriedade, tomou o caminho. Ao passar um riacho, a égua mudou de cor: dissolveu na água a tinta que a enfeitava e exibiu as peladuras da sarna. Pouco adiante cansou. Impelida a caminhar, puxada por todos os lados, acuou. E deixou nas mãos dum homem o rabo postiço. O chefe dos ciganos abriu a boca, refletiu e decidiu:
— Vamos voltar.
Regressaram, quase arrastando a égua cambiteira. Vendo-os, o coronel gritou do alpendre da casa-grande.
— Que é lá isso? Arrependimento? O que se fez está feito. Negócio é negócio.
— Sem dúvida, ganjão, respondeu o cigano descobrindo-se, curvando-se numa profunda reverência. Quem falou em arrependimento? Negócio é negócio. Eu resolvi largar esta vida. E venho entregar o bando a vossa senhoria.
Rio de Janeiro, agosto de 1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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