TEATRO I
Na pequena
capital, de gostos simples e desejos modestos, havia poucas escadas e
ignoravam-se completamente os elevadores. Três andares representavam quase
montanha entre as casas acaçapadas. Ninguém pensava em andar nos ares,
naturalmente. Santos Dumont ensaiava os seus primeiros voos baixos em Paris,
com muitas quedas, e não se dava crédito aos telegramas que os anunciavam.
Desconhecia-se
gasolina: os automóveis ainda não tinham aparecido. A cidade se desenvolvia em
sentido horizontal, mas desenvolvia-se moderadamente, sem pressa. Um bondinho
puxado por burros atravessava de longe em longe a rua do Comércio, quase vazio.
Como rodava devagar e encrencava regularmente nas subidas, as pessoas de
horário certo na repartição e na loja procediam com segurança economizando o
tostão da passagem.
Um grande
silêncio, quebrado raramente pelo pregão dos vendedores ambulantes, pelo rumor
das carroças e dum cabriolé pertencente ao governador. Quando esse cabriolé,
único, passava diante do liceu, as aulas se interrompiam, a meninada soltava os
livros, corria para as janelas, gritando, admirando.
À tardinha as
calçadas estreitas se enchiam de cadeiras, os vizinhos palestravam algumas
horas como se estivessem num salão, indiferentes aos direitos do transeunte
raro, que descia degraus e pezunhava entre barrocas e pontas de pedra. Finda a conversa,
recolhiam-se os móveis, fechavam-se as portas e a cidadezinha repousava,
ordeira e deserta, à luz de lâmpadas miúdas, que esmoreciam, despertavam,
esmoreciam de novo e embasbacavam o sujeito do interior, habituado ao lampião
de querosene e à fuligem.
No casarão da
usina elétrica fervilhavam enormes baratas voadoras. E, como não havia esgotos,
o cheiro das sarjetas era horrível.
Nesse meio,
onde as gerações se sucediam invariáveis, o governador saía às vezes do
carrinho, andava a pé como os viventes ordinários, mas não andava só.
Acompanhavam-no pessoas dedicadas, que lhe seguravam o guarda-chuva, conduziam
embrulhos, retiravam do caminho as cascas de banana. Acatavam as opiniões dele
e achavam muita graça nas anedotas que ele contava. Esses cavalheiros exerciam
cargos notáveis: eram senadores, deputados, secretários, ou parentes de
secretários, deputados e senadores.
Dentre eles o
mais digno de confiança tomava conta do governo por alguns meses no fim do
quadriênio, por deferência à constituição. Lavradas as atas, apurados os votos,
espancados ou mortos alguns matutos, o chefe permanente declamava a promessa
legal no Congresso e voltava ao seu posto, reaquecido pela manifestação unânime
dos eleitores, que nada exigiam e nada recebiam.
Sempre
escolhido, S. Exa. determinou exibir gratidão: realizar uma obra que o
perpetuasse. Refletiu, fez estudos e procurou conselhos. As rodovias foram
repelidas, porque no Estado existiam poucos veículos, além dos carros de bois.
Excluíram-se também as pontes e quaisquer construções de alicerces profundos e
duvidosos. As escolas eram consideradas prejudiciais. Havia algumas, é certo,
para dar emprego às filhas dos prefeitos, mas estas não forneciam aos alunos
conhecimentos.
Tudo
ponderado, S. Exa. resolveu edificar um teatro. Era o que necessitava a
capital. Davam-se ali representações de amadores, apareciam, com modéstia,
companhias cambembes, cinemas vagabundos, mágicos e hipnotizadores. Espetáculos
verdadeiros não se conheciam.
O projeto foi
bem recebido, cresceu. Mas para executá-lo faltava numerário. Pouco se podia
esperar do orçamento minguado, tão minguado que os tipos mais volumosos
ganhavam, aparentemente, uma insignificância. Impossível aumentar a receita,
pois os amigos não pagavam impostos e os inimigos, espremidos, estavam secos.
Assim, os agentes políticos arrancavam dos proprietários numerosos presentes
para o governador no aniversário dele. Nada de banquetes e discursos: valores.
Essa contribuição se tornara meio oficial, e a propriedade miúda, gemendo e
chorando, se desfalcava com demonstrações de júbilo em telegramas laudatórios.
Seria imprudência onerá-la ainda mais.
Decidiu-se,
portanto, para levantar o teatro, arranjar na Europa um empréstimo, que no
decorrer dos anos subiu extraordinariamente. O dinheiro obtido produziu vários
benefícios, especialmente à personagem encarregada das negociações. Esse
funcionário viajou bastante: percorreu alguns países, fixou-se na França,
mudou-se para lugar mais seguro e aí findou os seus dias tranquilo, gordo,
europeu, tão esquecido da língua materna que já nem compreendia a vasta
correspondência que o chamava. Não houve meio de repatriá-lo, apresentá-lo aos
correligionários saudosos.
A quantia que
chegou ao Brasil deu para muita coisa, e a parte visível dela converteu-se
enfim no teatro anunciado longamente na imprensa. Esburacou-se o terreno, as
paredes ergueram-se, mas quando os trabalhos iam a meia altura, verificou-se
que o local era impróprio, desmanchou-se tudo e reiniciou-se a construção
alguns metros adiante. Vencidos diversos contratempos, o prédio se inaugurou,
vistoso, com louvores gerais, e logo na estreia adquiriu fama. Uma companhia
italiana cantou lá o Rigoletto, Aída, Barbeiro de Sevilha. Alcançou aplausos
calorosos e morreu quase toda de febre amarela. Indivíduos impertinentes
xingavam o governo, fato que provocou estranheza. Ora essa! O governo tinha
culpa?
Pouco depois
surgiu no Estado uma desordem. Gritaram-se discursos nos meetings, os jornais
oposicionistas tomaram fôlego, vieram reclamações para o Rio, a polícia
desmoralizou-se e aderiu — afinal S. Exa. notou que tinha havido uma
reviravolta na opinião pública. Lamentou a inconstância dos homens, retirou-se
e, numa obscuridade conveniente, desfrutou velhice próspera e finou-se na paz
do Senhor. Percebera na verdade vencimentos bem mesquinhos, mas como não pagava
aluguel de casa, imposto, luz, não comprava móveis, roupa de cama, pratos,
colheres, e o pessoal doméstico era constituído por elementos da Força Pública,
efetuara algumas economias e estava rico.
Nunca se
liquidou o empréstimo, naturalmente.
Rio de Janeiro, setembro de 1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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