12/27/2023

Silveira Pereira (Conto), de Graciliano Ramos


SILVEIRA PEREIRA

O que  mais me desgosta aqui na pensão é o hóspede do quarto 9, sujeito de cara enferrujada que se tranca o dia inteiro e não cumprimenta as pessoas. Pelo menos não me cumprimenta. Desconsideração: é impossível que não me veja quando nos encontramos na escada. Ao sentar-se à mesa, abre um livro ou jornal, enruga a testa  e é como se ali não estivesse ninguém.

Os outros hóspedes me escutam, ou antes fingem escutar-me: sei perfeitamente que não prestam atenção às minhas conversas, mas são amáveis. Veem-me quando passo e ouvem o que digo. Eu queria provar a eles que não sou uma criança, procedo como entendo e minha mãe confia em mim. Isto, porém, seria inconveniente: se eu aludisse a minha mãe, logo enxergariam em mim um rapazola que o ano passado vivia preso, com hora certa para entrar em casa.

Sinto que não me tomam a sério e esforço-me por vencer a indiferença ambiente. Não, não é isto. Há até muita benevolência nas caras que me cercam. O que preciso é dar cabo dessa benevolência, mostrar que sou um homem. Se eu tivesse barba, passaria dias sem ir ao barbeiro, sairia à rua com o rosto peludo. Infelizmente estas bochechas lisas e vermelhas não inspiram respeito.

Afirmo que sou estudante. Engrosso a voz e afirmo que sou estudante. Na província eu imaginava que isto me daria prestígio. Não dá.

O número 7 é empregado no comércio, o 5 é oficial do exército, o 2 é funcionário aposentado, a senhora do 4, viúva, idosa e surda, se ocupa com igrejas. Essa gente desconhece o que significa um estudante.

Encomendei cartões de visita, largos, vistosos, com letras bem graúdas: Fulano de tal, estudante. Pensariam talvez que sou acadêmico. Distribuí os cartões, não ligaram importância a eles. Também a ideia de oferecer um cartão ao número 7!

Sou um intelectual. Vi este nome dias numa revista e fiquei gostando dele. É bonito.

Minha mãe não tem noção do que estou fazendo aqui, pensa que vou ficar doutor logo, ignora que o curso de humanidades é muito comprido. Muito comprido. Paciência. Enquanto espero, mandei fazer um smoking, que está enrolado numa toalha, com pacotes de cânfora nos bolsos, por causa das traças. Não vão as traças roer a seda da gola. E aprendi a fumar. Isto não me dá prazer, mas é necessário.

O que eu desejava era demonstrar àquele sujeito do número 9 que ele não tem razão para me considerar menino. Não, estou enganado. O número 9 não me considera isto nem aquilo: retira-me do mundo, e é o que me aperreia.

Vi-o há tempo descer a escada com um rolo de papéis debaixo do braço e presumi que ele fosse literato. Alegrei-me. Tenho vontade de ser literato, não agora, naturalmente: para o futuro, quando terminar o meu curso de direito. Direito ou medicina? Bem, não sei, qualquer coisa. Indispensável é ter um, e chegarei lá, hei de chegar lá, porque meus tios e minha mãe acham que a gente deve formar-se. Preciso comportar-me com juízo para virar doutor. Depois serei literato.

Diante das vitrinas das livrarias, sonho, faço projetos: seria bom ver o meu nome na capa de um livro.

Quando o número 9 desceu a escada, trombudo, com o rolo de papéis debaixo do braço, disse comigo:  “É um literato.” E de repente admirei-o. Abandonei as lições e estive duas noites trabalhando num conto, que saiu bom. Corrigi-o, mandei copiá-lo a máquina, passei dias esperando coragem para mostrá-lo ao homem. Recebeu-o, leu-o devagar, sentado à cabeceira da mesa, enquanto bebia café. As rugas da testa apareciam e desapareciam, os olhos baixos escondiam-se por detrás dos óculos escuros, a cara balofa e amarela não se mexia. Calculem a minha inquietação, ali torcendo-me na cadeira, diante do monstro gordo e mole que, de olhos ausentes, chupava o café, com as folhas datilografadas encostadas ao açucareiro. Leu e devolveu-me a literatura em silêncio. Uma ofensa grave, como veem. Engoli-a porque não tive outro jeito e porque me parece que o sujeito é importante. Reparei bem no rolo de papéis que ele trazia debaixo do braço, um rolo enorme. Que haveria nele? O número 9 tem a amarelidão e a tristeza do homem de pensamento e conserva luz no quarto até alta noite, o que faz d. Aurora resmungar e queixar-se. D. Aurora embirra com essa história de trabalhar à noite.

Foram os vidros iluminados e o rolo de papéis que me fixaram a resolução de escrever o conto. Pensei que o 9 me pudesse dar um conselho útil. Enganei-me: aquela gordura fria de capado nem buliu.

A princípio fiquei muito perturbado, supondo que o meu conto não prestasse. Realmente nunca aprendi essas coisas, sou um ignorante. Mas seria necessário aprendê-las? Há indivíduos que estudam em vão. O número 9 devia ser um desses. O dia inteiro trancado, gasto enorme de luz —  e no fim era aquilo: macambúzio, grosseiro. Certamente não havia percebido as minhas letras. Julguei-me uma pessoa incompreendida. Achei bonito o adjetivo e repeti-o várias vezes a colegas que me escutam. Pessoa incompreendida.

A vizinhança dos colegas deu-me a ideia de fundar um jornal. Escrevi diversas cartas a minha mãe pedindo dinheiro para livros e matrícula, combinei o negócio com a tipografia  e em menos de um mês o plano amadureceu, era como se o jornal existisse. Acostumei-me a pedir colaboração aos amigos e a falar muito alto no telefone. Piso firme diante da porta do número 9, desço a escada batendo os calcanhares, chego a um canto da sala de jantar, movo o disco. Desligo o aparelho e ponho-me a conversar sozinho meia hora. Entretenho-me nesses monólogos, discuto, falo sobre a tiragem, tenho a ilusão de que a folha vai surgir no dia seguinte.

Passa-se o tempo, desanimo, receio não efetuar o meu desejo. Continuo, entretanto, a cultivá-lo, a rodar o disco do telefone, a dirigir-me a criaturas imaginárias. É impossível que, por muito ocupado que esteja, o número 9 não me ouça. Faço um barulho tão grande que ele tomará conhecimento da minha arte. Hei de arrumar o conto numa primeira página, com entrelinhas. Quando isto acontecer, deixarei exemplares do jornal esquecidos em cima dos móveis. O homem pegará um por acaso e ficará espantado vendo o meu nome.

Talvez não fique, é até possível que ignore o meu nome. Eu, que ainda sou novo na pensão, tenho dúvidas a respeito do dele. Pereira ou Silveira? O hóspede do 7 diz que é Silveira, mas a viúva do 4 afirma que é Pereira, e d. Aurora concorda com os dois. Creio que ele se chama Pereira Silveira, ou Silveira Pereira. Afinal estou perdendo tempo, o sujeito não merece que a gente se incomode assim com ele. Deve ser um pobre-diabo carregado de achaques e dívidas.

Preciso meter a cara no estudo, para agradar minha mãe. Estou cru. Nem sei ler francês, é uma lástima. Vou agarrar-me aos livros.

Tomo a resolução e não me agarro. Penso nas mulheres da pensão aqui ao lado. Abro a janela, e vejo a alguns metros de distância um quarto forrado de papel vermelho, um pedaço de cama e enorme quantidade de frascos. Para que tantos frascos? Às vezes, à noite, aparecem na cama pernas de mulher. Com semelhante vizinhança, não posso trabalhar. Debruço-me à janela e fumo, espiando essas coisas e as folhas da palmeira do jardim.

O pensamento vagabundo vai, vem —  e escorrega para Silveira Pereira. Aperto os dedos, com raiva. O que devo fazer é ocupar-me com o jornal. Mas isto equivale a ocupar-me com Silveira Pereira: a lembrança do jornal só me veio porque desejei chamar a atenção dele. Essa necessidade de mostrar-me ao diabo do homem, de lhe dar impressão favorável, enjoa- me. Que ganho eu com isso? E por que fui escolher exatamente Silveira Pereira? Ele não tem nada de particular, é um tipo ordinário. Modos indistintos, roupas indistintas. E caminha lento, de cabeça baixa. O que o caracteriza é o hábito de mexer os beiços para dentro, como se tivesse vontade de comê-los. Fora isso, um vivente apagado.

Antes de conhecê-lo, arranjei meio de ir a uma festa e surgi na sala de jantar vestido no smoking. Foi um escândalo: d.

Aurora e a viúva do 4 assustaram-se.

Hoje isso não me satisfaria. O meu desejo é convencer Silveira Pereira de que sou um intelectual. Ao sentar-me à mesa, desdobro tiras escritas em cima do prato. Toda a gente vê logo que são originais para a composição. O jornal, sim senhor. Tenho gritado tanto que me comprometi, acabarei realizando o projeto longamente divulgado. Publicarei dois ou três números, o suficiente para justificar a propaganda. Sairão os artigos dos colegas e sairá o conto que Silveira Pereira leu e me restituiu em silêncio. Estará ruim demais o conto? Ou será que Silveira Pereira não entende disso?

De qualquer forma o homem esquisito me atrapalha. Farei novas tentativas, escreverei outros contos, que não me darão nenhuma vantagem. Talvez deem desvantagem, uma reprovação, porque enfim estou cru. Além disso minha mãe e meus tios xingam sempre os literatos. Devem ter razão. Mas não importa. Vou fazer outros contos, que mostrarei a Silveira Pereira. Preciso conhecer a opinião de Silveira Pereira.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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