O que mais me desgosta aqui na pensão é o hóspede
do quarto 9, sujeito de cara enferrujada que se tranca o dia inteiro e não cumprimenta as pessoas. Pelo menos não me cumprimenta.
Desconsideração: é impossível que não me veja quando nos encontramos na escada.
Ao sentar-se à mesa,
abre
um livro ou jornal, enruga a testa — e é como
se
ali não estivesse
ninguém.
Os outros hóspedes me escutam, ou
antes fingem escutar-me: sei perfeitamente que não prestam atenção às minhas conversas, mas são amáveis. Veem-me quando
passo e ouvem o que digo. Eu queria provar a eles que não sou uma criança, procedo como entendo e minha mãe confia em
mim. Isto, porém, seria inconveniente: se eu aludisse a minha mãe, logo enxergariam em mim um rapazola que o
ano passado vivia preso,
com
hora certa para entrar em casa.
Sinto que não me tomam a sério e esforço-me por vencer
a indiferença ambiente. Não, não é isto. Há até muita benevolência nas
caras que me cercam. O que preciso é dar cabo dessa benevolência, mostrar que
sou um homem. Se eu tivesse barba, passaria dias sem ir ao barbeiro, sairia à rua
com o rosto peludo. Infelizmente estas bochechas lisas e vermelhas não
inspiram respeito.
Afirmo que sou estudante. Engrosso
a voz e afirmo que sou estudante. Na província eu imaginava que isto me daria prestígio. Não dá.
O número 7 é empregado no
comércio, o 5 é oficial do exército, o 2 é funcionário aposentado, a senhora do
4, viúva, idosa e surda,
só se ocupa com igrejas. Essa gente desconhece o que
significa um estudante.
Encomendei cartões de visita,
largos, vistosos, com letras bem graúdas: Fulano de tal, estudante. Pensariam
talvez que sou acadêmico. Distribuí os cartões, não
ligaram importância a eles.
Também a ideia de oferecer um cartão ao número 7!
Sou um intelectual. Vi este nome há dias numa revista e fiquei gostando dele.
É
bonito.
Minha mãe
não tem noção do que estou fazendo aqui, pensa que vou ficar doutor logo, ignora que o curso de
humanidades é muito
comprido. Muito
comprido. Paciência. Enquanto espero, mandei fazer um smoking, que está
enrolado numa toalha, com pacotes
de cânfora nos bolsos, por causa das traças. Não vão as traças roer a seda da
gola. E aprendi a fumar. Isto não me dá prazer, mas é necessário.
O que eu
desejava era demonstrar àquele sujeito do número 9 que ele não tem razão para me considerar
menino. Não, estou enganado. O número 9
não me considera isto
nem
aquilo: retira-me do
mundo, e é o que me aperreia.
Vi-o há tempo
descer a escada com um rolo de papéis debaixo do braço e presumi que ele fosse literato.
Alegrei-me. Tenho vontade de
ser literato, não agora, naturalmente: para o futuro, quando terminar o meu
curso de direito. Direito ou medicina? Bem, não sei, qualquer
coisa. Indispensável é ter um, e chegarei lá, hei de chegar lá, porque meus tios e minha mãe acham que a gente deve formar-se.
Preciso comportar-me com juízo para virar doutor.
Depois serei literato.
Diante das vitrinas das livrarias, sonho, faço
projetos: seria bom ver o meu nome na capa de um livro.
Quando o número 9 desceu a escada, trombudo,
com o rolo de papéis debaixo do braço, disse comigo: — “É um literato.” E de repente
admirei-o. Abandonei as lições e estive duas noites trabalhando num conto, que saiu bom. Corrigi-o, mandei
copiá-lo a máquina, passei dias esperando
coragem para mostrá-lo
ao homem. Recebeu-o,
leu-o devagar, sentado à cabeceira
da mesa, enquanto
bebia café. As rugas da testa apareciam e desapareciam, os olhos baixos
escondiam-se por detrás
dos óculos escuros, a cara balofa e amarela não se mexia. Calculem a minha inquietação, ali torcendo-me na cadeira, diante do monstro
gordo e mole que, de olhos ausentes,
chupava o café, com as folhas datilografadas encostadas ao açucareiro. Leu e devolveu-me a literatura em silêncio. Uma ofensa grave, como veem. Engoli-a porque não tive outro jeito e porque me parece que o
sujeito é importante. Reparei bem no rolo de papéis que ele trazia debaixo do
braço, um rolo enorme.
Que
haveria nele?
O número 9 tem a amarelidão e a tristeza do homem de
pensamento e conserva
luz no quarto até alta noite, o que faz d.
Aurora resmungar e queixar-se. D.
Aurora embirra com essa história de trabalhar à noite.
Foram os
vidros iluminados e o rolo de papéis que me fixaram a resolução de escrever o
conto. Pensei que o 9 me pudesse
dar um conselho útil. Enganei-me: aquela gordura fria de
capado nem buliu.
A princípio
fiquei muito perturbado, supondo que o meu conto não prestasse. Realmente nunca
aprendi essas coisas, sou um ignorante.
Mas seria necessário aprendê-las? Há indivíduos que estudam em vão. O número 9
devia ser um desses. O dia inteiro
trancado, gasto enorme de luz — e no fim
era aquilo: macambúzio, grosseiro. Certamente não havia percebido as minhas letras. Julguei-me uma pessoa
incompreendida. Achei bonito o adjetivo e repeti-o várias vezes a colegas que
me escutam. Pessoa incompreendida.
A vizinhança dos colegas deu-me a
ideia de fundar um jornal. Escrevi diversas cartas a minha mãe pedindo dinheiro
para livros e matrícula, combinei
o negócio com a tipografia — e em menos de um mês o plano amadureceu, era como se o jornal existisse.
Acostumei-me a pedir colaboração aos amigos e a falar muito alto no telefone. Piso
firme diante da porta do número 9, desço a escada batendo os calcanhares, chego a um canto da sala de jantar, movo o disco.
Desligo o aparelho e ponho-me a conversar sozinho meia hora. Entretenho-me nesses
monólogos, discuto, falo sobre a tiragem, tenho
a ilusão de que a folha vai surgir no dia seguinte.
Passa-se o
tempo, desanimo, receio não efetuar o meu desejo. Continuo, entretanto, a
cultivá-lo, a rodar o
disco do telefone, a dirigir-me a
criaturas imaginárias. É impossível que, por muito ocupado que esteja, o número
9 não me ouça. Faço um barulho tão grande que ele tomará conhecimento da
minha arte. Hei de arrumar o conto numa primeira página, com entrelinhas. Quando isto acontecer,
deixarei exemplares do jornal
esquecidos em cima dos móveis. O homem pegará um por acaso e ficará
espantado vendo o meu nome.
Talvez não fique, é até possível
que ignore o meu nome. Eu, que ainda sou novo na pensão, tenho dúvidas a
respeito do dele. Pereira ou Silveira?
O hóspede do 7 diz que é Silveira, mas a viúva do 4 afirma que é Pereira,
e d. Aurora concorda com os dois. Creio que ele se chama
Pereira Silveira, ou Silveira Pereira. Afinal estou perdendo tempo, o sujeito
não merece que a gente se incomode
assim com ele.
Deve ser um pobre-diabo
carregado de achaques e dívidas.
Preciso
meter a cara no estudo, para agradar minha mãe. Estou cru. Nem sei ler francês, é uma
lástima. Vou agarrar-me aos livros.
Tomo a resolução e não me agarro.
Penso nas mulheres da pensão aqui ao lado. Abro a janela, e vejo a alguns
metros de distância um quarto forrado de papel vermelho, um pedaço de cama e
enorme quantidade de frascos. Para que tantos frascos? Às vezes, à noite, aparecem na cama pernas de mulher. Com semelhante vizinhança, não posso trabalhar. Debruço-me à janela e fumo, espiando essas coisas e as folhas da palmeira do jardim.
O pensamento vagabundo vai, vem — e escorrega para Silveira Pereira. Aperto os
dedos, com raiva. O que devo fazer é ocupar-me
com o jornal. Mas isto equivale a ocupar-me com Silveira Pereira: a lembrança
do jornal só me veio porque desejei
chamar a atenção dele. Essa necessidade de mostrar-me ao diabo do homem, de lhe
dar impressão favorável, enjoa- me.
Que ganho eu com isso? E por que fui escolher exatamente Silveira Pereira? Ele
não tem nada de particular, é um tipo ordinário. Modos indistintos, roupas indistintas. E caminha
lento, de cabeça
baixa. O que o caracteriza é o hábito
de mexer os beiços
para dentro, como se tivesse vontade de comê-los. Fora
isso, um vivente apagado.
Antes de conhecê-lo, arranjei
meio de ir a uma festa e surgi na sala de jantar vestido
no smoking. Foi um escândalo: d.
Aurora e a viúva do 4 assustaram-se.
Hoje isso não me satisfaria. O meu
desejo é convencer Silveira Pereira de que sou um intelectual. Ao sentar-me à
mesa, desdobro tiras escritas em cima
do prato. Toda a gente vê logo que são originais para a composição. O jornal,
sim senhor. Tenho gritado tanto que me comprometi, acabarei realizando o projeto longamente divulgado. Publicarei dois ou
três números, o suficiente
para justificar a propaganda. Sairão os artigos dos colegas e sairá o conto que
Silveira Pereira leu e me restituiu em silêncio. Estará ruim demais
o conto? Ou será que Silveira Pereira não entende disso?
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