PREFEITURA
MUNICIPAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS
Relatório ao
Governo do Estado de Alagoas
Exmo. Sr.
Governador:
Trago a V.
Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios
em 1928.
Não foram
muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase
insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o
Município se achava, muito me custaram.
COMEÇOS
O principal, o
que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi
estabelecer alguma ordem na administração.
Havia em
Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do
Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do
Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e
Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de
polícia e advogavam.
Para que
semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos
dentro da Prefeitura e fora dela
— dentro, uma
resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua,
carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que
administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um
tiro.
Dos
funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os
que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem
onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se
enganam em contas. Devo muito a eles.
Não sei se a
administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.
RECEITA E
DESPESA
A receita,
orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290,
que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de
empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas
não estivessem determinadas no orçamento.
PODER
LEGISLATIVO
Despendi com o
poder legislativo 1:616$484 — pagamento a dois secretários, um que trabalha,
outro aposentado, telegramas, papel, selos.
ILUMINAÇÃO
A iluminação
da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o
contrato com a empresa fornecedora de luz.
OBRAS PÚBLICAS
Gastei com
obras públicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no edifício da Prefeitura,
aumentar e pintar o açougue público, arranjar outro açougue para gado miúdo,
reparar as ruas esburacadas, desviar as águas que, em épocas de trovoadas,
inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprar ferramentas.
Adquiri picaretas, pás, enxadas, martelos, marrões, marretas, carros para
aterro, aço para brocas, alavancas etc. Montei uma pequena oficina para
consertar os utensílios estragados.
EVENTUAIS
Houve
1:069$700 de despesas eventuais: feitio e conserto de medidas, materiais para
aferição, placas.
724$000
foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui
tinham mil e quatrocentos gramas. Em algumas aldeias subiam, em outras desciam.
Os negociantes de cal usavam caixões de querosene e caixões de sabão, a que
arrancavam tábuas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em
compras de cal para os trabalhos públicos.
CEMITÉRIO
No cemitério
enterrei 189$000 — pagamento ao coveiro e conservação.
ESCOLA DE
MÚSICA
A Filarmônica
16 de Setembro consumiu 1:990$660 — ordenado de um mestre, aluguel de casa,
material, luz.
FUNCIONÁRIOS
DA JUSTIÇA E DA POLÍCIA
Os escrivães
do júri, do cível e da polícia, o delegado e os oficiais de justiça levaram
1:843$314.
ADMINISTRAÇÃO
A
administração municipal absorveu 11:457$497 — vencimentos do Prefeito, de dois
secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente;
impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos
necessários à secretaria, telegramas.
Relativamente
à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles
dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos
inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a
coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado,
que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque
se derrubou a Bastilha — um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — um
telegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama. Dispêndio
inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que
nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.
ARRECADAÇÃO
As despesas
com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os
devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os
contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.
Chamei um
advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O
Município é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por
causa das secas continuadas.
LIMPEZA
PÚBLICA — ESTRADAS
No orçamento
limpeza pública e estradas incluíram-se numa só rubrica. Consumiram 25:111$152.
Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover.
Houve lamúrias
e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de
quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas
de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices
dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.
POSTO DE
HIGIENE
Em falta de
verba especial, inseri entre os dispêndios realizados com a limpeza pública os
relativos à profilaxia do Município.
Contratei com
o dr. Leorne Menescal, chefe do Serviço de Saneamento Rural, a instalação de um
posto de higiene, que, sob a direção do dr. Hebreliano Wanderley, tem sido de
grande utilidade à nossa gente.
VIAÇÃO
Consertei as
estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d’Água aos limites de Limoeiro,
na direção de Cana Brava.
Foram reparos
sem grande importância e que apenas menciono para que esta exposição não fique
incompleta. Faltam-nos recursos para longos tratos de rodovias, e quaisquer
modificações em caminhos estreitos, íngremes, percorridos por animais e
veículos de tração animal, depressa desaparecem. É necessário que se esteja
sempre a renová-las, pois enxurradas levam num dia o trabalho de meses e os
carros de bois escangalham o que as chuvas deixam.
Os
empreendimentos mais sérios a que me aventurei foram a estrada de Palmeira de
Fora e o terrapleno da Lagoa.
ESTRADA DE
PALMEIRA DE FORA
Tem oito
metros de largura e, para que não ficasse estreita em uns pontos, larga em
outros, uma parte dela foi aberta em pedra.
Fiz cortes
profundos, aterros consideráveis, valetas e passagens transversais para as
águas que descem dos montes.
Cerca de vinte
homens trabalharam nela quase cinco meses.
Parece-me que
é uma estrada razoável. Custou 5:049$400.
Tenciono
prolongá-la à fronteira de Sant’Ana do Ipanema, não nas condições m que está,
que as rendas do Município me não permitiriam obra de tal vulto.
OUTRA ESTRADA
Como, a fim de
não inutilizar-se em pouco tempo, a estrada de Palmeira de Fora se destina
exclusivamente a pedestres e a automóveis, abri outra paralela ao trânsito de
animais.
TERRAPLENO DA
LAGOA
O espaço que
separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto
acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero.
Buraco por
toda a parte. O aterro que lá existiu, feito na administração do prefeito
Francisco Cavalcante, quase que havia desaparecido.
Em um dos
lados do caminho abria-se uma larga fenda com profundidade que variava de três
para cinco metros. A água das chuvas, impetuosa em virtude da inclinação do
terreno, transformava-se ali em verdadeira torrente, o que aumentava a cavidade
e ocasionava sério perigo aos transeuntes. Além disso outras aberturas se iam
formando, os invernos cavavam galerias subterrâneas, e aquilo era inacessível a
veículo de qualquer espécie.
Empreendi
aterrar e empedrar o caminho, mas reconheci que o solo não fendido era
inconsistente: debaixo de uma tênue camada de terra de aluvião, que uma
estacada sustentava, encontrei lixo. Retirei o lixo, para preparar o terreno e
para evitar fosse um monturo banhado por água que logo entrava em um riacho de
serventia pública. Quase todos os trabalhadores adoeceram.
Estou fazendo
dois muros de alvenaria, extensos, espessos e altos, para suportar o aterro.
Dei à estrada nove metros de largura. Os trabalhos vão adiantados.
Durante meses
mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda a ordem contra o abandono
em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros —
outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de
réis, dizem.
Custarão
alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a
Prefeitura arrecada basta para que não nos resignemos às modestas tarefas de
varrer as ruas e matar cachorros.
Até agora as
despesas com os serviços da Lagoa sobem a 14:418$627.
Convenho em
que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos
bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o
em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os
meus parentes, que necessitam, coitados.
(Os gastos com
a estrada de Palmeira de Fora e com o terrapleno estão, naturalmente, incluídos
nos 25:111$152 já mencionados.)
DINHEIRO
EXISTENTE
Deduzindo-se
da receita a despesa e acrescentando-se 105$858 que a administração passada me
deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.
40$897 estão
em caixa e 11:004$050 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira. O
Conselho autorizou-me a fazer o depósito.
Devo dizer que
não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma espécie. A Prefeitura
ganhou: livrou-se de um tesoureiro, que apenas serviria para assinar as folhas
e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazem outra coisa, e
teve 615$050 de juros.
Os 40$897
estão em poder do secretário, que guarda o dinheiro até que ele seja colocado
naquele estabelecimento de crédito.
LEIS
MUNICIPAIS
Em janeiro do
ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que
havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite.
Constava a
existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei,
rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de
que o código era uma espécie de lobisomem.
Afinal, em
fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado
volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com
aparência de primeiro livro de leitura do Abílio Borges. Um furo. Encontrei no
folheto algumas leis, aliás bem-redigidas, e muito sebo.
Com elas e com
outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o
Conselho, em agosto, votou o código atual.
CONCLUSÃO
Procurei
sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde
as retas foram inteiramente impossíveis.
Evitei
emaranhar-me em teias de aranha.
Certos
indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se
julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem
impostos.
Não me entendi
com esses.
Há quem ache
tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se
morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa
para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como
assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja
isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples
como mandar quebrar as pedras dos caminhos.
Fechei os
ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci
ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém,
foram da inteligência, que é fraca.
Perdi vários
amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.
Não me fizeram
falta.
Há
descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos
dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e
prosperidade. Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.
PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS
BALANÇO (Exercício de 1928)
Receita Despesa
Licenças para
estabelecimentos 9:265$000
Décima urbana 4:914$040
Carnes verdes 18:742$000
Pesos e
medidas 4:250$000
Oficina e
artistas 210$000
Cercas e
alicerces 204$000
Vendedores
ambulantes 410$000
Feira 16:780$100
Veículos 380$000
Depósitos de
inflamáveis 450$000
Bazares e
botequins em festas 399$000
Construção e
reconstrução 210$000
Serviço
doméstico 180$000
Torcedores de
cana 10$000
Vendedores de
leite 20$000
Vendedores de
doce 40$000
Terras do
Estado 6:191$100
Bilhares 100$000
Aluguel de
medidas 3:101$800
Cemitério 340$000
Taxa sanitária
282$000
Biqueiras 316$600
Cartas de
chauffeurs 150$000
Divertimentos
públicos 150$000
Placas para
veículos 120$000
Casas de
farinha 625$000
Compradores de
madeira 500$000
Restituições 68$100
Eventuais 615$050
Multas 1:825$500
Poder
legislativo 1:616$484
Administração
municipal 11:457$497
Arrecadação
das rendas 5:602$244
Iluminação
pública 8:921$800
Obras públicas 2:908$350
Limpeza
pública e estradas 25:111$152
Cemitério 189$000
Gratificações 1:843$314
Filarmônica 16
de Setembro 1:990$660
Eventuais 1:069$700
Saldo 10:939$089
71:649$290 71:649$290
Saldo 10:939$089
Saldo do
exercício anterior 105$858
11:044$947
No Banco
Popular e Agrícola de Palmeira. 11:004$050
Em caixa 40$897
11:044$947
Palmeira, 3 de
janeiro de 1929.
MARÇAL JOSÉ OLIVEIRA
Secretário
Visto. —
Palmeira, 8 de janeiro, 1929.
GRACILIANO RAMOS
Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios. — Relatório ao Governador de Alagoas. — Sr. Governador. — Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Exa. mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios. E nas contas regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudências que excitaram o espanto benévolo da imprensa.
Isto é, pois, uma reprodução de fatos que já narrei, com algarismo e prova de guarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os acompanharam.
RECEITA — 96:924$985
No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.
E não
empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente
concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que
afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados,
esbrugados pelos exatores.
Não me resolveria, é claro, a pôr em prática no segundo ano de administração a eqüidade que torna o imposto suportável. Adotei-a logo no começo. A receita em 1928 cresceu bastante. E se não chegou à soma agora alcançada é que me foram indispensáveis alguns meses para corrigir irregularidades muito sérias, prejudiciais à arrecadação.
DESPESA — 105:465$613
Utilizei parte das sobras existentes no primeiro balanço.
ADMINISTRAÇÃO — 22:667$748
Figuram 7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000 com a fiscalização e 2:400$000 pagos a um funcionário aposentado. Tenho seis cobradores, dois fiscais e um secretário.
Todos são mal remunerados.
GRATIFICAÇÕES — 1:560$000
Estão reduzidas.
CEMITÉRIO — 243$000
Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.
ILUMINAÇÃO — 7:800$000
A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.
HIGIENE — 8:454$190
O estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928, presta serviços consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos incômodos não tornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa.
INSTRUÇÃO — 2:886$180
Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.
Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.
UMA DÍVIDA ANTIGA — 5:210$000
Entregaram-me, quando entrei em exercício, 105$858 para saldar várias contas, entre elas uma de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que deixaram de pagar à empresa fornecedora de luz.
VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS — 56:644$495
Os gastos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento, entretanto, não me haver sido possível gastar mais. Infelizmente a nossa pobreza é grande. E ainda que elevemos a receita ao dobro da importância que ela ordinariamente alcançava, e economizemos com avareza, muito nos falta realizar. Está visto que me não preocupei com todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes.
Fiz reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuidei especialmente de viação.
Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.
ESTRADA
PALMEIRA A SANT’ANA
Abandonei as trilhas dos caetés e procurei saber o preço duma estrada que fosse ter a Sant’Ana do Ipanema. Os peritos responderam que ela custaria aí uns seiscentos mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada.
Os seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam um caminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou com liberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar ao povo, não serviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos cobradores, diz sempre não ter encomendado obras públicas, mas a alguém haveriam de servir. Comecei os trabalhos em janeiro. Estão prontos vinte e cinco quilômetros. Gastei 26:871$930.
TERRAPLENO DA
LAGOA
Este absurdo, este sonho de louco, na opinião de três ou quatro sujeitos que sabem tudo, foi concluído há meses.
Aquilo, que era uma furna lôbrega, tem agora, terminado o aterro, um declive suave. Fiz uma galeria para o escoamento das águas. O pântano que ali havia, cheio de lixo, excelente para a cultura de mosquitos, desapareceu. Deitei sobre as muralhas duas balaustradas de cimento armado. Não há perigo de se despenhar um automóvel lá de cima.
O plano que os técnicos indígenas consideravam impraticável era muito mais modesto.
Os gastos em 1929 montaram a 24:391$925.
SALDO — 2:504$319
Adicionando-se à receita o saldo existente no balanço passado e subtraindo-se a despesa, temos 2:504$319.
2:365$969 estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira.
PRODUÇÃO
Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas; outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada.
Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.
Encontrei em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis entregues a animais, que nelas viviam quase em estado selvagem. A população minguada, ou emigrava para o Sul do país ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas. Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos.
E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada.
Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.
Estabeleci feiras em cinco aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora.
Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco.
Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.
MIUDEZAS
Não pretendo levar ao público a ideia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros ainda menores, demonstraram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio.
Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo Município.
Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem.
Ou as obras públicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo
Estado. Chegarei a convencer-me de que não fui eu que as realizei.
BONS
COMPANHEIROS
Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis.
Quase tudo foi feito por eles. Eu apenas teria tido o mérito de escolhê-los e vigiá-los, se nisto houvesse mérito.
MULTAS
Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.
E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.
Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.
Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica: encomendava-se a Deus e ia à capital. E os prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo sr. secretário do Interior, por intermédio da polícia.
REFORMADORES
O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres-diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência.
Belo programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigos que pagam, os que administram, os que hão de administrar. Seria ótimo. E existiria por preço baixo uma Prefeitura bode expiatório, magnífico assunto para commérage de lugar pequeno.
POBRE POVO
SOFREDOR
É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu.
Bem-comido, bem-bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão.
Como ninguém
ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta
respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.
PROJETOS
Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo — e os projetos morrem.
Iniciarei, se
houver recursos, trabalhos urbanos.
Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro.
Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis.
Julgo que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas dois meses de preguiça durante o inverno bastarão para que eles se renovem.
Empedrarei, se puder, algumas ruas.
Tenho também a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja.
Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande.
O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.
Paz e prosperidade.
Palmeira dos
Índios, 11 de janeiro de 1930.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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