Pedaços de algodão e gaze amarelos
de pus enchem o balde. Abriram todas as vidraças. E no calor da sala mergulho
num banho de suor. Já me vestiram
diversos camisões brancos, que em poucos minutos se ensoparam. Não posso
afastar os panos molhados e ardentes.
As crianças estiveram a correr no chão lavado a petróleo.
— Retirem essas crianças.
Inútil trazê-las para aqui,
mostrar-lhes o corpo que se desmancha numa cama estreita de hospital. Não as
distingui bem na garoa que invade a sala: são criaturas
estranhas, a recordação das suas
fisionomias apagadas fatiga-me.
— Retirem essas crianças barulhentas.
As paredes amarelas cobrem-se de
pus, o teto cobre-se de pus. A minha carne, que apodrece, suja a gaze e o
algodão, espalha-se no teto e nas paredes.
A alguns passos, uma figura de
mulher se evapora. Aproxima-se, está quase visível, tem uma cara amiga, uma
vida que esteve presa à minha. Mas
essa criatura, dificilmente organizada, pesa demais dentro de mim, necessito
esforço enorme para conservar unidas as suas partes que se
querem desagregar.
As minhas
pálpebras cerram-se, a
mulher esmorece, transforma-se em sombra pálida. Se me fosse possível falar,
pedir-lhe- ia que me deixasse.
Os médicos
estiveram aqui há pouco, fizeram o
curativo. Enquanto amarravam a atadura, os enfermeiros me levantavam, e eu me sentia leve, parecia-me que ia
voar, flutuar como balão, esgueirar-me por uma janela, fugir do cheiro de
petróleo e do calor, ganhar o espaço, fazer companhia aos urubus. As palmas dos coqueiros ficariam longe, na praia
branca, invisíveis como a mulher que desapareceu na sala neblinosa.
Os meus olhos não podem varar esta neblina densa.
Creio que dormi horas. O balde
sumiu-se. Muitas pessoas falam, há um burburinho interminável na escuridão.
Seria bom que me deixassem
em paz. A conversa
comprida rola na sala enorme; a sala é uma praça cheia de movimento
e
rumor.
A imobilidade atormenta-me, desejo
gritar, mas apenas consigo gemer baixinho. Se pudesse, diria qualquer coisa à
figura alvacenta, que tem agora as
feições de minha mulher. Um assunto me preocupa, mas certamente ela não me
entenderia se eu fosse capaz de expressar-me. Contudo necessito pedir-lhe
que mande chamar o médico.
A voz sai-me arrastada, provavelmente digo incongruências. Minha
mulher espanta-se, grande aflição marcada
nos beiços lívidos
e na ruga da testa.
Aborreço-me, exijo que me levem
para a enfermaria dos indigentes. Estaria lá melhor, talvez lá me
compreendessem. Horríveis estas
paredes. Sinto-me abandonado, lamento-me, injurio a criatura solícita que se
chega à cama. Por que me olha com olhos de mal-assombrado? Não percebeu
o que eu disse? Bom que me mandassem para a enfermaria dos indigentes.
A ferida
tortura-me, uma ferida que muda de lugar e está em todo o lado direito. Procuro convencer
minha mulher de que o lado direito se inutilizou e é
conveniente suprimi-lo.
A enfermaria dos indigentes.
Que fim teria levado o médico? Ele me compreenderia,
não
me olharia com espanto
e
ruga na testa.
A minha banda direita está perdida,
não há meio de salvá-la. As pastas de algodão
ficam amarelas, sinto que me decomponho, que uma perna, um braço,
metade da cabeça, já não me pertencem, querem largar-me. Por que não me levam outra vez para a mesa de operações?
Abrir-me-iam pelo meio, dividir-me-iam em dois. Ficaria aqui a parte
esquerda, a direita
iria para o
mármore do necrotério.
Cortar-me, libertar-me deste miserável
que se agarrou a mim e tenta corromper-me.
A
neblina se dissipa,
as paredes se aproximam, estão
visíveis as folhas
dos coqueiros e o telhado
da penitenciária, o avental da enfermeira aparece
e desaparece.
A ruga da testa de minha mulher
desfez-se. Provavelmente ela supôs que o delírio tinha terminado. Absurdo
imaginar um indivíduo preso a mim, um
indivíduo que, na mesa de operações, se afastaria para sempre. Arrependo-me de
ter revelado a existência do intruso. Certamente minha mulher vai afligir-se com a loucura que me persegue.
Fecho os olhos, vexado, como um menino surpreendido a
praticar tolice. Finjo dormir: talvez minha mulher julgue que falei em sonho.
Contenho a respiração, o suor corre-me
na cara e no pescoço.
Lá fora eu era um sujeito
aperreado por trabalhos maçadores, andava para cima e para baixo, como uma
barata. Nunca estava em casa.
Recolhia-me cedo, mas o pensamento corria longe, fazia voltas em redor de negócios desagradáveis. Recordações de tipos odiosos,
rancor, a ideia de ter sido humilhado,
muitos anos antes,
por
um sujeito que se multiplicava.
O nevoeiro embranquece novamente a sala, as paredes somem-se, o rosto da mulher mexe-se numa sombra leitosa. Torno a desejar que me levem para a mesa de operações, cortem as amarras que me ligam ao intruso.
Evidentemente uma pessoa achacada
tomou conta de mim. Esta criatura surgiu há dois meses, todos os dias me xinga
e ameaça, especialmente de noite ou
quando estou só. Zango-me, discuto com ela, penso em João Teodósio, espirita e
maluco. João Teodósio tem olhos
medonhos, parece olhar para dentro e fala nos bondes com passageiros
invisíveis. O homem que se apoderou
do meu lado direito não tem cara e ordinariamente é silencioso. Mas
incomoda-me. Defendo-me, grito palavrões, e
o sem-vergonha escuta-me
com um sorriso
falso, um sorriso impossível,
porque ele não
tem
boca.
Tentei ler
um jornal. As linhas misturavam-se, indecifráveis. Receei endoidecer, mastiguei
uns nomes que
minha mulher não entendeu, queixei-me do médico e
de Paulo. Como ela não conhecia Paulo, impacientei-me, julguei-a estúpida,
esforcei-me por me virar para o outro lado, o que não consegui.
Certamente as criaturas que me
cercam embruteceram, são como as crianças que estiveram correndo no chão lavado
a petróleo. A enfermeira tem
caprichos esquisitos, o médico não perceberá que é necessário operar-me de
novo, minha mulher franze a testa e arregala os olhos ouvindo as coisas mais simples.
Comecei um discurso, uma espécie
de conferência, para explicar quem é Paulo, mas atrapalhei-me, cansei e
desprezei aquelas inteligências tacanhas. Tempo perdido.
Sentia-me superior aos outros, apesar de não me ser possível exprimir-me.
Realmente Paulo é inexplicável:
falta-lhe o rosto, e o seu corpo é esta carne que se imobiliza e apodrece,
colada à cama do hospital.
Entretanto sorri. Um sorriso medonho, sem dentes, sorriso amarelo que escorre
pelas paredes, sorriso nauseabundo que
se derrama no chão lavado a petróleo.
Escurece. A camisa molhada já não
me escalda a pele: esfriou, gelou. E os meus dentes batem castanholas. Morrem
os cochichos que zumbiam
na sala. Alguém me pega
um braço, dedos procuram a artéria.
A escuridão
se atenua, o burburinho confuso reaparece, a camisa torna a queimar-me a pele,
os dentes calam-se.
Incomoda- me
a pressão que me fazem no pulso, tento libertar o braço. A mão desconhecida
tateia, procurando a artéria. Há um zum-zum na sala,
vozes confundem-se como
rumor de asas num cortiço.
Sinto ferroadas terríveis
na ferida.
Os dedos seguram-me, tenho a
impressão de que Paulo me agarra. Um ruído enfadonho, provavelmente reprodução
de maçadas antigas, berros de
patrões, ordens, exigências, choradeira, gemidos, pragas, transforma-se num
sussurro de abelhas que Paulo me sopra ao ouvido. Agito a cabeça para afugentar o som importuno. Se pudesse,
cobriria as orelhas com as palmas das
mãos.
Afinal ignoro quem é Paulo e
reconheço que minha mulher tem razão quando me oferece pedaços de realidade:
visitas de amigos, colheres
de remédio, a comida horrível.
Devo aceitar isso. Curar-me-ei, percorrerei as ruas como os
outros. A princípio arrastar-me-ei pelos corredores do hospital, com
muletas, parando às portas das enfermarias dos indigentes; depois sairei, a
perna ainda encolhida, andarei escorado a uma bengala,
habituar-me-ei a subir nos bondes,
verei João Teodósio fazendo
sinais misteriosos a um lugar vazio.
Preciso resistir às ideias
estranhas que me assaltam. Bebo o remédio, peço a injeção, espero ansioso que o
médico venha mudar a gaze e
o algodão molhado de pus.
Entrarei nos cafés, conversarei
sobre política. Uma, duas vezes por semana, irei com minha mulher ao cinema. De
volta, comentaremos a fita,
papaguearemos um minuto com os vizinhos na calçada. Não nos deteremos diante da
porta de João Teodósio. Apressaremos o passo, fugiremos
daqueles olhos medonhos de quem vê almas.
Em que estará pensando João
Teodósio? Minha mulher interroga-me admirada, repete palavras incoerentes que
dirigi a João Teodósio.
Sem querer, entro a palestrar com ele,
de
volta do cinema.
Apoio-me à bengala e suspendo
um
pouco a perna avariada.
A ferida começa a torturar-me. Não
estou de pé, cavaqueando com um vizinho amalucado, estou de costas num colchão duro.
Veio-me um acesso de tosse, e o tubo de borracha que me atravessa a barriga
parece um punhal. Gemo, o suor
corre-me entre as costelas magras como as de um cachorro esfomeado.
Tenho sede. A enfermeira chega-me aos beiços gretados um cálice de água. Bebo, ponho-me
a soluçar. Os soluços sacodem-me, rasgam-me, enterram-me o punhal nas entranhas.
Estou sendo assassinado. Em redor
tudo se transforma. O avental da enfermeira ficou transparente como vidro.
Minha mulher abandonou-me. Acho-me
numa floresta, caído, as costas ferindo-se no chão, e um assassino fura-me
lentamente a barriga. As paredes
recuam, fundem-se com o céu, as folhas dos coqueiros tremem, e passa entre elas
o cochicho que zumbe na sala.
Paulo está curvado por cima de
mim, remexe com um punhal a ferida. Estertor de moribundo na floresta, perto de
um pântano. Há uma nata de petróleo
na água estagnada, coaxam
rãs na sala.
Não conheço Paulo. Tento explicar-lhe que não o conheço, que ele não tem motivo para matar-me. Nunca lhe fiz mal, passei a vida ocupado em trabalhos
difíceis, caindo, levantando-me, cansado. Peço-lhe que me deixe, balbucio
súplicas nojentas. Não lhe quero mal, não
o conheço.
Mentira. Sempre vivemos juntos.
Desejo que me operem e me livrem dele.
Sairei pelas ruas, leve, e o meu
coração baterá como o coração das crianças. Paulo ficará na mesa de operações,
continuará a decompor-se no mármore do necrotério.
O que estou dizendo, a gemer, a
espojar-me, é falsidade. Paulo compreende-me. Curva-se, olha-me sem olhos,
espalha em roda um sorriso
repugnante e viscoso que treme
no ar.
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