O JOGO DO BICHO, FATOR ECONÔMICO
De todas as
instituições brasileiras o jogo do bicho é com certeza a mais interessante, a
que melhor descobre a alma popular. É verdade que possuímos outras capazes de
provocar entusiasmos vivos e até a paixão das massas: o carnaval, o futebol, as
lutas políticas, por exemplo; mas são coisas que, embora aqui tenham feição
particular, existem em toda a parte. Nenhuma delas produz uma excitação
permanente, todas se manifestam com intermitências mais ou menos longas.
O jogo do
bicho é constante e puramente nacional. Aqui surgiu, criou raízes, e em nenhum
outro país se daria tão bem. Deriva da nossa desorganização econômica e da
confiança que depositamos em forças misteriosas. Todos nós, consciente ou
inconscientemente, esperamos milagres, acreditamos na Divina Providência, em
poderes sobrenaturais, que às vezes ficam no alto, inatingíveis e obscuros,
outras vezes se põem em contato com os homens, familiarizam-se, revelam-se de
maneira bastante ordinária.
As relações
entre o homem e a divindade, que a princípio se manifestam sob a forma de
troca, depois como transações de compra e venda, aqui se modificaram. Em toda a
parte o crente oferece a Deus ou aos santos um objeto para receber um favor, ou
oferece-lhes dinheiro, mas entre nós este respeitável costume se tornou uma
espécie de jogo. Daí para se tornar jogo verdadeiro a distância não era grande.
A nossa gente supersticiosa, que admite a realização dos sonhos e,
especialmente no interior, faz promessas a Santo Antônio a propósito de
casamento e a Santa Clara a propósito de chuva, encontrou meio de transformar a
graça pedida em dinheiro. Podemos acompanhar a evolução do negócio do seguinte
modo: oferecemos um objeto para receber um bem qualquer; oferecemos dinheiro
para receber o mesmo bem; oferecemos dinheiro para receber dinheiro.
Não queremos
felicidade, paz, qualquer estado de alma necessário aos místicos; desejamos
coisas concretas. O mendigo que pede para o transeunte saúde e vida longa
muitas vezes indica os meios que julga indispensáveis para se obter isso.
Impossibilitados
de adquirir uma felicidade completa, buscamos pedaços de felicidade. E, em
vista da situação precária em que vivemos, esses fragmentos são de ordinário
representados por quantias insignificantes. Sabemos que a posse delas nada resolve
definitivamente, que a nossa vida não se endireitará com tão pouco e,
consumidas essas ínfimas parcelas de riquezas, a necessidade voltará e teremos
de apelar para um novo golpe de sorte. Mas não podemos pensar no futuro quando
o presente é incerteza e confusão, respiraremos com alívio se as nossas
dificuldades irremediáveis forem procrastinadas por um mês, uma semana, um dia.
Esperaremos que tudo se arranje depois.
Por enquanto
precisamos com urgência uma determinada importância para o aluguel da casa,
importância correspondente ao dinheiro que possuímos multiplicado por vinte. O
brasileiro achou o modo de realizar a multiplicação, pelo menos de passar
algumas horas na ilusão de que ela se realize e lhe dê recursos para satisfazer
às exigências imediatas.
É verdade que
a ilusão ordinariamente falha, mas pode renovar-se no dia seguinte, caso o
homem não se ache absolutamente desprovido de pecúnia.
Ele poderia
arriscar-se a qualquer outro jogo. Isto, porém, não lhe traria grande
satisfação. Comprando bilhetes de loteria, a espera seria muito prolongada; na
roleta ou no bacará seria curta demais. Ele não quer ficar muito tempo sonhando
com uma sorte grande que lhe transforme a vida, nem encostar-se ao pano verde para
receber emoções fortes e rápidas. Contenta-se com sortes miúdas, que lhe podem
chegar diariamente, a hora certa, não se decidem no giro duma bola ou num virar
de carta.
Além disso a
loteria, a roleta, o bacará ficam fora das possibilidades da maior parte da
população, ao passo que o jogo do bicho está ao alcance de toda a gente e
possui o que é preciso para conquistar a simpatia das massas.
Em primeiro
lugar promete muito e não oferece nenhuma garantia, o que está em conformidade
com os hábitos dum país onde se organizam companhias sem capital e os profetas
são bem recebidos, ainda que sejam os mais extraordinários salvadores. Apesar
de tudo os jogadores felizes são pagos com rigorosa pontualidade, e isto é
admirável, porque entre nós nunca nenhum programa se realiza, as obrigações são
regularmente postas de lado. Os papelinhos riscados a lápis por um sujeito
desconhecido transformam-se em valores.
Em segundo
lugar é proibido, razão suficiente para viver e prosperar. Há negócios que não
têm outro motivo de êxito. O nosso instinto de rebeldia sustenta-os, faz que
protestemos contra algum funcionário demasiado consciencioso que pretenda
enxergá-los.
Aliás com
relação ao jogo do bicho talvez seja conveniente a autoridade supor que ele não
existe e deixá-lo em paz. Muitos cavalheiros ficariam em apuros se, marchando
para a repartição com o intuito severo de combater essa praga nacional,
pensassem que suas respeitáveis senhoras elaboram listas complicadas, os
rapazes no caminho da escola arriscam níqueis na dezena, o ordenado da criada
foi estabelecido com a redução da importância presumível que ela retira nas
compras e dá ao rapaz do talão, o fornecedor não está satisfeito com os
pagamentos e espera minorar as suas dívidas com a problemática fração de
riqueza que todas as manhãs lhe oferecem no balcão.
Deixemos em
paz o bicheiro. Essa fração de riqueza representa a quantia que deixou de ser
paga no salário do trabalhador, a conta que o bacharel se esqueceu de saldar na
venda. Para que privar o operário e o vendeiro da última possibilidade que lhes
resta?
O jogo do
bicho significa uma tentativa muito louvável para corrigir o desarranjo em que
vivemos. Uma tentativa oferecida a pessoas supersticiosas que acreditam em
sonhos e ainda não podem acreditar em outra coisa, mas afinal talvez seja
inconveniente suprimi-la, pelo menos por enquanto.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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