O DR. JACARANDÁ
Há tempo
Carlos Pontes, meu vizinho municipal, mostrou-me na rua esse popular defensor
dos pequenos e ofereceu-me a seguinte observação.
— A nossa zona
produziu alguns sujeitos notáveis — nós dois, Fulano, Beltrano, Sicrano e o dr.
Jacarandá, que é o mais importante de todos.
Ri-me, depois
achei que o final do gracejo podia ser tomado a sério. Por que não?
Naquela tarde
horrível os quarenta graus anunciados pelo serviço meteorológico subiam do
asfalto, entravam-nos por baixo das calças, envolviam-nos as pernas como
bainhas ardentes. Considerei desalentado os nossos exteriores. Bambeávamos no
calor, procurávamos um pedaço de sombra, as camisas molhadas grudavam-se à
pele, os medonhos paletós escureciam nos sovacos. E os pés, lentamente
arrastados, pesavam demais.
Contrastando
com este abatimento, o dr. Jacarandá resplandecia, leve e retinto; como se
estivesse engraxado de novo. O pixaim branco realçava na treva da nuca,
valorizava o chapéu velho; as abas do fraque, impulsadas por energias intensas,
agitavam-se, remedando bandeiras de uma bela cor preta amarelada, com manchas
claras; os bolsos enchumaçavam-se, provavelmente de símbolos escritos; e uma
rosa triunfava na lapela, vermelha e grande. Ligeiro como um redemoinho, o homem
atravessou a avenida, sumiu-se na multidão suada, fatigada.
E fatigados,
suados, lá nos fomos deslocando vagarosos, em busca da sombra, invejando aquele
estranho conterrâneo. Por fora o dr. Jacarandá vale realmente mais que nós. E
também por dentro. Rematamos meio século apagado, inútil — e ele, rijo, seguro,
viveu quase o duplo.
Quando, em
1877, fugindo à seca e a outros flagelos, deixou Olhos-d’Água-do-Acioli e
chegou aos arrozais de Anadia, era molecote já taludo e manejava facilmente a
enxada no eito. Esse gênero de trabalho, porém, não se acomodava às aspirações
do moço, que ainda não era Jacarandá nem doutor. De que modo adquiriu o nome e
o título, o prestígio, o fraque e a rosa flamante, nem ele próprio talvez
saiba. Deu voltas e trambolhões, mourejou decerto em ofícios vários até achar a
sua tendência e surgir, experiente e maduro, com banca de advogado, consultório
modesto que uma placa de papelão segura em cordões indica, junto a uma bodega
de frutas. Desdenhando erudições e formalidades, esse D. Quixote escuro entrou
firme a combater injustiças, a defender os senhores vagabundos e as senhoras
meretrizes, conforme ele diz, e, ameaçado por uma associação de classe, afirmou
à imprensa que não tomava o lugar de ninguém, que não era causídico ou
advogado, como outros, mas apenas adevogado ou cosídico. O acréscimo e a
redução de vogais serviram para justificá-lo. Os repórteres bateram palmas, a
plateia riu — e o dr. Jacarandá, imperturbável nos seus oitenta anos robustos,
envernizado e florido, continuou a desfazer agravos. Olha para cima, caminha, à
pressa.
Muito
divergimos dele. Andamos ronceiros, e os nossos olhos prendem-se no chão,
cravam-se no chão. Estamos arriados, estazados. Que diabo esperamos? Os nossos
achaques casam-se admiravelmente a achaques externos, e nesta combinação
gememos ou bocejamos, recusamos engulhando os xaropes que nos receitam. O
estômago é ruim, a cabeça é péssima, o espírito secou. Noções desencontradas
nos dão vertigens. Para onde vamos? Os espinhaços curvam-se, os óculos
embaciados, cada vez mais turvos, fixam-se na terra. Certamente houve muitas
coisas belas, mas agora tudo é feio, triste. E falsificado. Alimentos
falsificados e ideias falsificadas nos estragam as vísceras, superiores e
inferiores. Verdades numerosas tornaram-se mentiras. E vice-versa. Infelizmente
os sentidos funcionam: lemos jornais, ouvimos rádio. Poderemos ainda acreditar,
admirar?
Bem. Admiramos
o dr. Jacarandá, que tem crenças inabaláveis, não lê jornais nem escuta rádio.
Se lesse ou escutasse, nada compreenderia. Está quase tão puro como quando, em
1877, fugiu da senzala e da seca. Usa o vocabulário e a sintaxe daquele tempo e
crê nos feitiços, que se debelam, graças a Deus. A sua ocupação é livrar de feitiços miúdos criaturas miúdas
postas na gaiola. Mas há os feitiços graúdos que ele, simples cosídico, não
ousaria atacar. Vive cercado de mistérios — e respeita-os, adora-os, para que
não lhe causem prejuízo, não metam na colônia correcional os seus humildes
constituintes. Bruxarias voam-lhe por cima da cabeça, rumorosas, conduzindo
passageiros e correspondência. Ignora que essas bruxarias se multiplicam lá
fora, podem transportar bombas, arrasar cidades. Pela sua natureza de pedra
correram desgraças, e não deixaram mossa. Guarda uma inocência resistente, uma
bondade que o leva para as misérias alheias. São as armas de que dispõe. Vai-se
aguentando, e isto prova que não estamos definitivamente corrompidos.
08 de fevereiro de 1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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