12/29/2023

O dr. Jacarandá (Crônica), por Graciliano Ramos


O DR. JACARANDÁ

Há tempo Carlos Pontes, meu vizinho municipal, mostrou-me na rua esse popular defensor dos pequenos e ofereceu-me a seguinte observação.

— A nossa zona produziu alguns sujeitos notáveis — nós dois, Fulano, Beltrano, Sicrano e o dr. Jacarandá, que é o mais importante de todos.

Ri-me, depois achei que o final do gracejo podia ser tomado a sério. Por que não?

Naquela tarde horrível os quarenta graus anunciados pelo serviço meteorológico subiam do asfalto, entravam-nos por baixo das calças, envolviam-nos as pernas como bainhas ardentes. Considerei desalentado os nossos exteriores. Bambeávamos no calor, procurávamos um pedaço de sombra, as camisas molhadas grudavam-se à pele, os medonhos paletós escureciam nos sovacos. E os pés, lentamente arrastados, pesavam demais.

Contrastando com este abatimento, o dr. Jacarandá resplandecia, leve e retinto; como se estivesse engraxado de novo. O pixaim branco realçava na treva da nuca, valorizava o chapéu velho; as abas do fraque, impulsadas por energias intensas, agitavam-se, remedando bandeiras de uma bela cor preta amarelada, com manchas claras; os bolsos enchumaçavam-se, provavelmente de símbolos escritos; e uma rosa triunfava na lapela, vermelha e grande. Ligeiro como um redemoinho, o homem atravessou a avenida, sumiu-se na multidão suada, fatigada.

E fatigados, suados, lá nos fomos deslocando vagarosos, em busca da sombra, invejando aquele estranho conterrâneo. Por fora o dr. Jacarandá vale realmente mais que nós. E também por dentro. Rematamos meio século apagado, inútil — e ele, rijo, seguro, viveu quase o duplo.

Quando, em 1877, fugindo à seca e a outros flagelos, deixou Olhos-d’Água-do-Acioli e chegou aos arrozais de Anadia, era molecote já taludo e manejava facilmente a enxada no eito. Esse gênero de trabalho, porém, não se acomodava às aspirações do moço, que ainda não era Jacarandá nem doutor. De que modo adquiriu o nome e o título, o prestígio, o fraque e a rosa flamante, nem ele próprio talvez saiba. Deu voltas e trambolhões, mourejou decerto em ofícios vários até achar a sua tendência e surgir, experiente e maduro, com banca de advogado, consultório modesto que uma placa de papelão segura em cordões indica, junto a uma bodega de frutas. Desdenhando erudições e formalidades, esse D. Quixote escuro entrou firme a combater injustiças, a defender os senhores vagabundos e as senhoras meretrizes, conforme ele diz, e, ameaçado por uma associação de classe, afirmou à imprensa que não tomava o lugar de ninguém, que não era causídico ou advogado, como outros, mas apenas adevogado ou cosídico. O acréscimo e a redução de vogais serviram para justificá-lo. Os repórteres bateram palmas, a plateia riu — e o dr. Jacarandá, imperturbável nos seus oitenta anos robustos, envernizado e florido, continuou a desfazer agravos. Olha para cima, caminha, à pressa.

Muito divergimos dele. Andamos ronceiros, e os nossos olhos prendem-se no chão, cravam-se no chão. Estamos arriados, estazados. Que diabo esperamos? Os nossos achaques casam-se admiravelmente a achaques externos, e nesta combinação gememos ou bocejamos, recusamos engulhando os xaropes que nos receitam. O estômago é ruim, a cabeça é péssima, o espírito secou. Noções desencontradas nos dão vertigens. Para onde vamos? Os espinhaços curvam-se, os óculos embaciados, cada vez mais turvos, fixam-se na terra. Certamente houve muitas coisas belas, mas agora tudo é feio, triste. E falsificado. Alimentos falsificados e ideias falsificadas nos estragam as vísceras, superiores e inferiores. Verdades numerosas tornaram-se mentiras. E vice-versa. Infelizmente os sentidos funcionam: lemos jornais, ouvimos rádio. Poderemos ainda acreditar, admirar?

Bem. Admiramos o dr. Jacarandá, que tem crenças inabaláveis, não lê jornais nem escuta rádio. Se lesse ou escutasse, nada compreenderia. Está quase tão puro como quando, em 1877, fugiu da senzala e da seca. Usa o vocabulário e a sintaxe daquele tempo e crê nos feitiços, que se debelam, graças a Deus. A sua ocupação é    livrar de feitiços miúdos criaturas miúdas postas na gaiola. Mas há os feitiços graúdos que ele, simples cosídico, não ousaria atacar. Vive cercado de mistérios — e respeita-os, adora-os, para que não lhe causem prejuízo, não metam na colônia correcional os seus humildes constituintes. Bruxarias voam-lhe por cima da cabeça, rumorosas, conduzindo passageiros e correspondência. Ignora que essas bruxarias se multiplicam lá fora, podem transportar bombas, arrasar cidades. Pela sua natureza de pedra correram desgraças, e não deixaram mossa. Guarda uma inocência resistente, uma bondade que o leva para as misérias alheias. São as armas de que dispõe. Vai-se aguentando, e isto prova que não estamos definitivamente corrompidos.

08 de fevereiro de 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024. 

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