12/29/2023

Libório (Crônica), por Graciliano Ramos


LIBÓRIO

Esta façanha pode ser atribuída a Libório, personagem curiosa que provavelmente nunca existiu. E que, sem ter existido, viajou muitos anos pelo Nordeste, realizando falcatruas com engenho, de sorte que as vítimas ficavam sempre em situação ridícula.

No sertão bárbaro, onde se perdoa facilmente o assassino, as ofensas à propriedade são punidas com rigor excessivo, pois a fazenda é escassa e a população cresce demais. Contudo as malandragens desse herói, produto da ficção popular e cabocla, provocam simpatia e riso. Porque revelam inteligência e malícia, a reduzida inteligência e a malícia grossa existentes no roceiro. E mostram que a pecúnia subtraída se achava nas mãos de indivíduos incapazes, dignos de ser depenados.

Admitamos que o caso se tenha dado com essa figura de sonho. Libório chegou a certo lugarejo onde ninguém o conhecia. Ou antes onde o conheciam como sujeito morigerado, trabalhador e de espírito curto. Cigano por natureza, vagabundo calejado, adotava caracteres diferentes e acomodava-se a vários ofícios.

Dessa vez era agricultor — e honesto.

De saco no ombro e chiqueirador, tangendo o comboio, parou diante dos armazéns, propondo um negócio mastigado, cheio de curvas e mal-entendidos. Ao concluir a transação, depois de regateios e embelecos infinitos, havia percorrido todas as ruas, estacionado em todos os balcões, feito confidências a todos os caixeiros. Cercado por um rancho de basbaques, descarregou os animais, questionou sobre o peso e o preço da mercadoria, recebeu a paga, que foi contar vagarosamente na calçada. Sentou-se, dividiu as cédulas, as pratas e os níqueis em lotes, resmungou, mexeu os dedos. Amarrou tudo no lenço vermelho e meteu o lenço na capanga.

Em seguida pediu um conselho. Não levava pelos caminhos aquela fortuna, que os arredores fervilhavam de malfeitores. Queria que lhe apontassem um cristão decente para guardá-la. Ouviu diversas opiniões e escolheu o vigário:

— Boa ideia. Vou conversar com ele, que é pessoa de Deus. Retirou-se, entrou na igreja, passou meia hora no confessionário, narrando pecados.

Dois meses depois a casa do Reverendo se encheu de curiosos atraídos por gritos medonhos. Parecia que estavam matando gente ali.

— Canalha! Bandido! vociferava num desespero a santa criatura.

— Vossemecê fala desse modo porque tem poderes, governa a freguesia, replicava Libório calmo. E eu baixo a cabeça, que sou pequeno. Mas desaforo não adianta. Escondeu o dinheiro no bolso da batina e me ofereceu papel selado. Não aceitei. Havia de aceitar letra dum homem que tem parte com Deus?

O eclesiástico soprava, inchava, batia os queixos. Entonteceu, embatucou, foi-se avermelhando e acabou roxo de indignação. Aquele descaramento assombrava-o. Quando se desenganou, explodiu:

— O senhor está doido.

— Estou no meu juízo perfeito, murmurou o sem-vergonha. Vossemecê é que não tem memória. Estava rezando na sacristia. Não se lembra? Escutou a minha história, combinou tudo muito certinho e me abençoou. Foi ou não foi?

Os olhos do padre arregalavam-se, corriam os circunstantes, procurando o cabo:

— Para que serve a polícia?

— Só me faltava essa infelicidade, suspirou Libório com desalento. Bonita justiça. Tiram-me o cobre e mandam-me para a cadeia. Além de queda, coice. Vida ruim.

Formaram-se dois grupos: um cobria o matuto de injúrias; o outro, favorável a ele, não se animava a apoiá-lo abertamente. No meio da balbúrdia choviam perguntas. E Libório se desembaraçava, sem se exaltar:

— Ora testemunha! Ia lá procurar testemunha para um trato desse, com um vivente que anda perto do Céu? Testemunha não tenho. Mas é como se tivesse. Todo o mundo sabe que estou em cima da verdade. Tive medo dos ladrões e fiz tolice. Pensei que me benzia e quebrei as ventas.

Esta segurança e o modo lorpa do safado abalavam os intrusos. Não se capacitavam de que semelhante palerma tivesse fabricado a enorme patifaria. As caras revelavam grande confusão, havia dúvida e constrangimento na sala.

Nesse ponto um sujeito sabido teve a ideia de engabelar o malandro. Oferecendo-lhe uma vantagem repentina, era possível que ele, na surpresa, metesse o rabo na ratoeira, caísse em contradição. E atirou-lhe de chofre:

— Seu Libório, o senhor está enganado. Quem recebeu o dinheiro fui eu. Pode ir buscá-lo quando quiser.

— Sem dúvida, respondeu Libório. Eu vou. Estando na sua mão, está bem guardado. Nunca desconfiei de vossemecê não. Agora quero receber o que entreguei a seu vigário. Dê cá o meu conto de réis, seu vigário, tenha paciência. Faça como o seu amigo, que deve e confessa diante do povo, não esfola os pobres.

 

Rio de Janeiro, janeiro de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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