LIBÓRIO
Esta façanha
pode ser atribuída a Libório, personagem curiosa que provavelmente nunca
existiu. E que, sem ter existido, viajou muitos anos pelo Nordeste, realizando
falcatruas com engenho, de sorte que as vítimas ficavam sempre em situação
ridícula.
No sertão
bárbaro, onde se perdoa facilmente o assassino, as ofensas à propriedade são
punidas com rigor excessivo, pois a fazenda é escassa e a população cresce
demais. Contudo as malandragens desse herói, produto da ficção popular e
cabocla, provocam simpatia e riso. Porque revelam inteligência e malícia, a
reduzida inteligência e a malícia grossa existentes no roceiro. E mostram que a
pecúnia subtraída se achava nas mãos de indivíduos incapazes, dignos de ser
depenados.
Admitamos que
o caso se tenha dado com essa figura de sonho. Libório chegou a certo lugarejo
onde ninguém o conhecia. Ou antes onde o conheciam como sujeito morigerado,
trabalhador e de espírito curto. Cigano por natureza, vagabundo calejado,
adotava caracteres diferentes e acomodava-se a vários ofícios.
Dessa vez era
agricultor — e honesto.
De saco no
ombro e chiqueirador, tangendo o comboio, parou diante dos armazéns, propondo
um negócio mastigado, cheio de curvas e mal-entendidos. Ao concluir a
transação, depois de regateios e embelecos infinitos, havia percorrido todas as
ruas, estacionado em todos os balcões, feito confidências a todos os caixeiros.
Cercado por um rancho de basbaques, descarregou os animais, questionou sobre o
peso e o preço da mercadoria, recebeu a paga, que foi contar vagarosamente na
calçada. Sentou-se, dividiu as cédulas, as pratas e os níqueis em lotes,
resmungou, mexeu os dedos. Amarrou tudo no lenço vermelho e meteu o lenço na
capanga.
Em seguida
pediu um conselho. Não levava pelos caminhos aquela fortuna, que os arredores
fervilhavam de malfeitores. Queria que lhe apontassem um cristão decente para
guardá-la. Ouviu diversas opiniões e escolheu o vigário:
— Boa ideia.
Vou conversar com ele, que é pessoa de Deus. Retirou-se, entrou na igreja,
passou meia hora no confessionário, narrando pecados.
Dois meses
depois a casa do Reverendo se encheu de curiosos atraídos por gritos medonhos.
Parecia que estavam matando gente ali.
— Canalha!
Bandido! vociferava num desespero a santa criatura.
— Vossemecê
fala desse modo porque tem poderes, governa a freguesia, replicava Libório
calmo. E eu baixo a cabeça, que sou pequeno. Mas desaforo não adianta. Escondeu
o dinheiro no bolso da batina e me ofereceu papel selado. Não aceitei. Havia de
aceitar letra dum homem que tem parte com Deus?
O eclesiástico
soprava, inchava, batia os queixos. Entonteceu, embatucou, foi-se avermelhando
e acabou roxo de indignação. Aquele descaramento assombrava-o. Quando se
desenganou, explodiu:
— O senhor
está doido.
— Estou no meu
juízo perfeito, murmurou o sem-vergonha. Vossemecê é que não tem memória.
Estava rezando na sacristia. Não se lembra? Escutou a minha história, combinou
tudo muito certinho e me abençoou. Foi ou não foi?
Os olhos do
padre arregalavam-se, corriam os circunstantes, procurando o cabo:
— Para que
serve a polícia?
— Só me
faltava essa infelicidade, suspirou Libório com desalento. Bonita justiça.
Tiram-me o cobre e mandam-me para a cadeia. Além de queda, coice. Vida ruim.
Formaram-se
dois grupos: um cobria o matuto de injúrias; o outro, favorável a ele, não se
animava a apoiá-lo abertamente. No meio da balbúrdia choviam perguntas. E
Libório se desembaraçava, sem se exaltar:
— Ora
testemunha! Ia lá procurar testemunha para um trato desse, com um vivente que
anda perto do Céu? Testemunha não tenho. Mas é como se tivesse. Todo o mundo
sabe que estou em cima da verdade. Tive medo dos ladrões e fiz tolice. Pensei
que me benzia e quebrei as ventas.
Esta segurança
e o modo lorpa do safado abalavam os intrusos. Não se capacitavam de que
semelhante palerma tivesse fabricado a enorme patifaria. As caras revelavam
grande confusão, havia dúvida e constrangimento na sala.
Nesse ponto um
sujeito sabido teve a ideia de engabelar o malandro. Oferecendo-lhe uma
vantagem repentina, era possível que ele, na surpresa, metesse o rabo na
ratoeira, caísse em contradição. E atirou-lhe de chofre:
— Seu Libório,
o senhor está enganado. Quem recebeu o dinheiro fui eu. Pode ir buscá-lo quando
quiser.
— Sem dúvida,
respondeu Libório. Eu vou. Estando na sua mão, está bem guardado. Nunca
desconfiei de vossemecê não. Agora quero receber o que entreguei a seu vigário.
Dê cá o meu conto de réis, seu vigário, tenha paciência. Faça como o seu amigo,
que deve e confessa diante do povo, não esfola os pobres.
Rio de Janeiro, janeiro de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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