INSÔNIA
Sim ou não? Esta pergunta surgiu-me de chofre o sono profundo e acordou-me. A inércia findou num instante, o corpo morto levantou-se rápido, como se
fosse impelido por um maquinismo.
Sim ou não?
Para bem dizer não era pergunta, voz interior ou fantasmagoria de sonho: era uma espécie de mão poderosa
que me agarrava os cabelos e me levantava do colchão, brutalmente, me
sentava na cama, arrepiado e aturdido. Nunca ninguém despertou de semelhante maneira. Uma garra segurando-me os
cabelos, puxando-me para cima, forçando-me a erguer o espinhaço, e a voz soprava aos meus ouvidos, gritada aos
meus ouvidos: — “Sim ou não?”
Nada sei: estou atordoado e
preciso continuar a dormir, não pensar, não desejar, matéria fria e impotente.
Bicho inferior, planta ou pedra, num
colchão. De repente a modorra cessou, a mola me suspendeu e a interrogação
absurda me entrou nos ouvidos: — “Sim ou não?” Encostar de novo a
cabeça ao travesseiro e continuar a dormir, dormir sempre. Mas o
desgraçado corpo está erguido e não tolera a posição horizontal. Poderei dormir sentado?
Um, dois, um, dois. Certamente são
as pancadas de um pêndulo inexistente. Um, dois, um, dois. Ouvindo isto,
acabarei dormindo sentado. E
escorregarei no colchão, mergulharei a cabeça no travesseiro, como um bruto,
levantar-me-ei tranquilo com os rumores da rua,
os pregões dos vendedores, que nunca escuto.
Um, dois, um, dois. Não consigo
estirar-me na cama, embrutecer-me novamente: impossível a adaptação aos lençóis
e às coisas moles que enchem o
colchão e os travesseiros. Certamente aquilo foi alucinação, esforço-me por
acreditar que uma alucinação me
agarrou os cabelos e me conservou deste modo, inteiriçado, os olhos muito
abertos, cheio de pavores. Que pavores? Por que tremo,
tento sustentar-me em coisas passadas,
frágeis, teias de aranha?
Sim ou não? Estarei completamente
doido ou oscilarei ainda entre a razão e a loucura? Estou bem, é claro. Tudo em
redor se conserva em ordem: a cama
larga não aumentou nem diminuiu, as paredes sumiram-se depois que apertei o botão
do comutador,
a
faixa de luz que varre o
quarto é comum, igual à que ontem me feriu os olhos e me despertou subitamente.
Por que fui
imaginar que este jato de luz é diferente dos outros e funesto? Caí na cama e rolei
fora daqui nem sei que tempo, longe, muito longe, gastando-me no espaço. Partículas
minhas boiaram à toa entre os mundos. De repente uma janela se abriu na casa vizinha, um jorro
de
luz atravessou-me a vidraça,
entrou-me em casa e interrompeu a ausência prolongada.
Sim ou não?
Quem me está fazendo na sombra esta horrível pergunta? Com a golfada de luz que
penetrou a vidraça, alguém chegou, pegou-me os cabelos, levantou-me do colchão,
gritou-me as palavras sem
sentido e escondeu-se num canto. Arregalo os
olhos, tento convencer-me de que a luz é ordinária, emanação de um foco
ordinário aqui da casa próxima. Se alguém tivesse torcido uma lâmpada para a
esquerda ou tocado um botão na parede, eu teria continuado a rolar na
imensidão, fora da terra. Mas isto não se deu — e a réstia que me divide o quarto muda-se
em pessoa.
Quem está aqui? Será um ladrão?
Aventura inútil, trabalho perdido. Não possuo nada que se possa roubar. Se um
ladrão passou pelos vidros,
procurá-lo-ei tateando, encontrá-lo-ei num canto de parede e direi baixinho,
para não amedrontá-lo: — “Não te
posso dar nada, meu filho. Volta para o lugar donde vieste, atravessa novamente
os vidros. E deixa-me aí qualquer coisa.”
Não, nenhum ladrão se engana comigo. Contudo alguém me entrou em casa, está
perto de mim, repetindo as palavras que
me endoidecem: — “Sim ou não?”
Sim, não,
sim, não. Um relógio tenta chamar-me à realidade. Que tempo dormi? Esperarei
até que o relógio bata de novo e me diga que vivi mais meia hora, dentro
deste horrível jato de luz.
Um, dois, um, dois. Tudo isto é
ilusão. Ouvi uma pancada dentro da noite, mas não sei se o relógio está longe
ou perto: o tique-taque dele é muito próximo
e muito distante.
Sim ou não? Deverei levantar-me,
andar, convencer-me de que saí daquele sono de morte e posso mexer-me como um vivente qualquer, ir, vir, chegar à janela
e receber o ar da madrugada? Impossível mover-me. Para alcançar a janela
preciso atravessar esta claridade que
me fende o quarto como uma cunha, rasga a escuridão, fria, dura, crua. Se a
escuridão fosse completa, eu conseguiria
encostar-me de novo, cerrar os olhos, pensar num encontro que tive durante o
dia, recordar uma frase, um rosto, a mão que me
apertou os dedos, mentiras
sussurradas inutilmente.
O
relógio lá embaixo
torna a bater. Conto as pancadas e engano-me. Duas ou três? Daqui a uma hora certificar-me-ei. Uma hora imóvel,
os cotovelos pregados
nos joelhos, o queixo nas mãos, os dedos sentindo
a dureza dos ossos da cara. O que há de sensível nesta carcaça trêmula concentrou-se nos dedos,
e os
dedos apalpam ossos de caveira.
Um, dois, um, dois. Evidentemente
me equivoco, não ouço o tiquetaquear do pêndulo: o relógio afastou-se, gastará
uma eternidade para me dizer se foram duas ou três as pancadas que me penetraram a carne e rebentaram ossos.
Que está aqui, a martelar no escuro, sim ou não, sim ou não, roendo-me, roendo-me? Será um rato faminto que roeu a porta, se chegou a
mim e continuou a roer interminavelmente? Não. Se fosse um rato, eu me
levantaria, iria enxotá-lo. Usaria as pernas, que se
tornaram de chumbo, atravessaria a zona
luminosa, acenderia um cigarro.
Houve agora uma pausa nesta
agonia, todos os rumores se dissiparam, a vidraça escureceu, o soalho fugiu-me
dos pés — e senti-me cair devagar
na treva absoluta. Subitamente um foguete rasga a treva e um arrepio sacode-me.
Na queda imensa deixei a cama, alcancei
a mesa, vim fumar.
Sim ou não? A pergunta corta a
noite longa. Parece que a cidade se encheu de igrejas, e em todas as igrejas há
sinos tocando, lúgubres: “Sim ou não? Sim ou não?” Por que é que estes sinos tocam fora de hora,
adiantadamente?
A pessoa
invisível que me persegue não se contenta com a interrogação multiplicada:
aperta-me o pescoço. Tenho um nó na
garganta, unhas me ferem,
uma horrível gravata me estrangula.
Por que estão rindo? Hem? Por que
estão rindo aqui no meu quarto? An, an! An, an! Não há motivo. An, an! An, an!
Um sujeito acordou no meio da noite,
não reatou o sono, veio sentar-se à mesa e fumar. Apenas.
Inteiramente calmo, os cotovelos pregados na madeira, o queixo apoiado nas munhecas, o cigarro
preso nos dentes, os dedos quase parados percorrendo as excrescências de uma caveira. Toda a carne fugiu, toda a carne
apodreceu e foi comida pelos vermes. Um feixe de ossos, escorado à mesa, fuma. Um esqueleto veio da cama até
aqui, sacolejando-se, rangendo.
Sim ou não? Lá está o diabo do
relógio a tiquetaquear, a matracar: — “Sim ou não?” Desejaria que me deixassem
em paz, não me viessem fazer
perguntas a esta hora. Se pudesse baixar a cabeça, descansaria talvez, dormiria
junto à pilha de livros, despertaria
quando o sol entrasse pela janela.
Um, dois, um, dois. Que me dizia
ontem à tarde aquele homem risonho, perto de uma vitrina? Tão amável! Penso que discordei dele e achei tudo
ruim
na vida. O homem amável sorriu para não me contrariar.
Provavelmente está dormindo.
Terá parado, o maldito
relógio? Terá batido
enquanto me ausentei,
consumi séculos da cama para aqui?
Um silêncio grande envolve o
mundo. Contudo a voz que me aflige continua a mergulhar-me nos ouvidos, a
apertar-me o pescoço. Estremeço. Como
é possível semelhante coisa? Como é possível uma voz apertar o pescoço de
alguém? Rio, tento libertar-me da
loucura que me puxa para uma nova queda, explico a mim mesmo que o que me
aperta o pescoço não é uma voz: é uma gravata. A voz diz apenas: — “Sim ou não?”
Hem? Que vou responder?
Há uma terrível injustiça. Por que
dormem os outros homens e eu fico arriado sobre uma tábua, encolhido, as
falanges descarnadas contornando órbitas vazias?
Hem? Os vermes insaciáveis dizem baixinho: —
“Sim ou não?”
A luz que vinha da casa próxima
desapareceu, a vidraça apagou-se, e este quarto é uma sepultura. Uma sepultura
onde pedaços do mundo se ampliam desesperadamente.
Sim ou não? Como entraram aqui estas palavras? por onde entraram estas palavras?
Enforcaram-me,
decompus-me, os meus ossos caíram sobre a mesa, junto ao cinzeiro, onde pontas de
cigarros se acumulam. Estou só e morto. Quem me chama lá
de fora, quem me quer afastar do túmulo, obrigar-me a andar na rua, tomar o
bonde, entrar no café?
Sim ou não?
Sei lá! Antes de morrer, agitei-me como doido, corri como doido, enorme
ansiedade me consumiu. Agora estou imóvel e tranquilo. Como posso fumar se estou imóvel e
tranquilo? A brasa do cigarro desloca-se vagarosamente, chega-me à boca, aviva-se, foge, empalidece. É uma brasa animada, vai e vem,
solta no ar, como um fogo-fátuo. Os meus dedos estão longe dela, frios e sem carne, metidos em órbitas vazias. Toda a
vontade sumiu-se, derreteu-se — e a brasa é um olho zombeteiro. Vai e vem, lenta, vai e vem, parece que me está perguntando qualquer coisa.
Evidentemente sou um sujeito
feliz. Hem? Feliz e imóvel. Se alguém comprimisse ali o botão do comutador, eu
veria no espelho uma cara sossegada,
a
mesma que vejo todos os dias,
inexpressiva, indiferente, um sorriso idiota pregado
nos beiços.
Amanhã comportar-me-ei direito,
amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas como um bicho doméstico,
um cidadão comum, arrastado para aqui, para acolá, dizendo
frases convenientes. Feliz,
completamente feliz.
Novos foguetes rompem a escuridão
e acendem novos cigarros.
Feliz e imóvel. Se a noite findasse, erguer-me-ia, caminharia como os outros, entraria
no banheiro, livrar-me-ia das impurezas que me estão coladas
nos ossos. Mas a noite não finda,
todos os relógios
descansaram — e a
terra está imóvel como eu.
O silêncio é
um burburinho confuso, um sopro monótono. Parece que um grande vento se derrama
gemendo sobre as árvores dos quintais vizinhos. Um zumbido longo de abelhas. E
as abelhas partem os vidros da janela escura,
o vento vem lamber-me os ossos,
enrolar-se no meu pescoço como uma gravata.
Frio. A tocha quase apagada do
cigarro treme; os dedos, que percorrem buracos de órbitas vazias, tremem. E a
tremura reproduz o tique-taque de um relógio.
Desejaria conversar, voltar a ser
homem, sustentar uma opinião qualquer, defender-me de inimigos invisíveis. As
ideias amorteceram como a brasa do
cigarro. O frio sacode-me os ossos. E os ossos chocalham a pergunta invariável:
— Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?
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