12/29/2023

Habitação (Crônica), por Graciliano Ramos


HABITAÇÃO

Aqui vai, com pormenores inúteis do realismo, a descrição duma casa sertaneja, vista há algum tempo nos cafundós de Pernambuco.

Baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto, chato, acaçapado, quase sem declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça.

Três portas de frente e duas janelas. As portas têm altura suficiente para que possa entrar uma pessoa de média estatura sem curvar-se. As janelas, aberturas pequenas, quase quadradas, estão situadas lá em cima, perto da telha. Para atingi-las, trepa-se a gente a um caixão. Tem dobradiças de couro e trancam-se com pedaços de pau roliços, envernizados pelo uso, que se introduzem em buracos abertos nos batentes, presos a cordéis amarrados em pregos. As portas fecham-se interiormente com taramelas.

Em frente há um alpendre, o copiar, sustentado por esteios baixos, grossos, resistentes ao caruncho. Limita-o uma plataforma que se ergue meio metro acima do solo, de terra solta e pedra. É ali que dormem hóspedes sem importância, na desagradável companhia dos bodes e das cabras, que lá vão fazer idílios.

Na sala principal há três redes armadas em paus recurvos que saem do esqueleto das paredes. A um canto, um enorme traste de pernas descomunais, que atravessam uma tábua de dez centímetros de espessura, magnífico para rasgar a roupa de quem nele se senta. Aqui e ali, em tornos de madeira, penduram-se chapéus de couro, gibões, perneiras e peitorais. Alguns sacos e surrões de milho e feijão substituem as cadeiras. Enormes cordas de laçar, cabrestos de cabelo, encerados, cangalhas, alpercatas, sapatões de montar, com grossas esporas de rosetas incríveis, espalham-se desordenadamente.

Sobre uma tosca mesa, lavrada a enxó, um oratório envolto numa coberta vermelha, de florões. Há dentro dele uma litografia de Nossa Senhora, desbotada, em caixilho sem vidro, um crucifixo, alguns santos de barro e de gesso, enfeites de papel, uma lamparina e uma vela benta. Na mesa, uma gaveta, e aí um museu — rolos de cera, novelos de barbante, agulhas para sacos, pedaços de sola, um tabaqueiro, um couro de fazer rapé, um martelo, uma torquês, sovelas, chifres de veado, pontiagudos, pacotes de orações, sementes, bolas de sebo, látegos, chocalhos, pregos, fivelas, um macete e um Lunário Perpétuo.

À direita de quem entra há um cubículo cheio de algodão.

À esquerda, um salão mal-assombrado, onde se misturam montanhas de queijo, cestos, caçuás, selas de campo, cavaletes, pedras de amolar, samburás, rolos de fumo, cuias, cabaços, gamelas, arame farpado, facões, espingardas de pederneira, machados, foices e enxadas.

Da sala principal segue para os fundos um corredor estreito e sombrio, preto de pucumã e teias de aranha. Dão para eles dois quartos fronteiros. Um, das meninas, nunca se abre. O outro, dos donos da casa, deixa ver, através da porta meio aberta, algumas arcas, onde se aferrolha o tesouro da família e uma cama baixa, sem colchão, com o lastro de couro de boi, em cabelo, gasto pelo atrito de algumas gerações que ali se fizeram, viveram e morreram.

O corredor desemboca na sala de jantar. Há ali uma pequena mesa, que raramente se forra, toda escalavrada, cheia de altos e baixos, pelo hábito de picar-se fumo em cima dela, a faca de ponta. Ladeiam-na dois bancos. Perto, uma velha máquina de costura em cima dum caixão vazio. Um pote sobre uma forquilha plantada no chão. Nas pontas das varas que saem das paredes, candeeiros de folha, pendurados pela asa, de torcidas de algodão, negras, fumegantes e fedorentas.

Com a sala de jantar confinam a cozinha de um lado, do outro o quarto das criadas, duas pretas, que nasceram escravas e ali continuam, porque não sabem que fazer da liberdade. Uma delas de luxo; dorme em cama de varas, a isidora, erguida sobre quatro estacas pregadas no chão. A outra dorme na esteira. Possuem caixas de pinho, onde guardam a roupa, e combucos cheios de bugigangas — espelhos, voltas de contas, alfinetes, frasquinhos de perfume, anéis, brincos, pulseiras, rosários.

A cozinha é pequena. Uma grossa camada de fuligem dá-se um novo teto. Um jirau substitui a despensa. Amontoam-se nele mochilas de sal, réstias de cebola, espigas de milho, botijões de manteiga. Mantas de carne, linguiças, panos de toucinho penduram-se a uma corda que vai duma parede a outra. O fogo é feito no chão, entre pedras dispostas em trempe. A um canto, um monte de cinza e carvões apagados. Todos os dias uma preta, de cócoras, varre aquilo, a vassourinhas. Frigideiras, caldeirões, panelas, marmitas de folha, ralos, canecos, abanos, formam o sistema planetário dum tacho velho, rachado, coberto de nódoas verdes. Em cima dum pilão, deitado um gato ronca. Junto ao lume há quase sempre uma velhota acendendo o cachimbo de canudo de taquari com uma brasa espetada a um garfo. Encostada à trempe, uma banda de casca de coco presa num pau, a quenga. Na parede, o caritó, pequena cava em forma de concha, onde se guardam objetos miúdos — pedras de sal, pontas de cigarros de palha, dentes de alho, cordões, retalhos de pano, agulhas, peles de fumo que se oferecem a santa Clara, a troco de pequeninos milagres caseiros. 

Uma janela baixa, onde se senta um rapagão indolente, dá para o quintal, nu, com um barreiro cheio de água turva, coberto pela sombra escassa duma árvore morta.

Junto ao quintal, o jardim, povoado de algodoeiros, verduras, vasos de alecrim e losna, urtigas e flores, tudo protegido pela ramagem duma baraúna velha.

Do lado oposto, três currais de cercas eternas, mourões gigantescos.

Um pouco afastado, o chiqueiro das cabras.

Em frente, um grande pátio, branco, limitado por árvores sempre verdes que escondem montes distantes.

No terreiro, no pátio, na calçada, confraternizam galinhas, bacorinhos, carneiros, cabritos, alguns cachorros com extravagantes coleiras feitas de rodelas de sabugo queimado enfiadas em pedaços de imbira.

Uma habitação horrível, como veem. Contudo viveu ali, sem se queixar, uma família decente, religiosa e pastoril, domesticada no regime patriarcal.

Desapareceu tudo. Provavelmente aquilo está hoje reduzido a tapera.

 

Rio de Janeiro, agosto de 1941.


Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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