“ESTÁ ABERTA A SESSÃO DO JÚRI”
O dr. França,
juiz de Direito numa cidadezinha sertaneja, andava em meio século, tinha
gravidade imensa, verbo escasso, bigodes, colarinhos, sapatos e ideias de
pontas muito finas. Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na
justiça procedessem da mesma forma — e chegou a mandar retirar-se do Tribunal
um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razoável e
fúnebre, para não prejudicar a decência do veredicto.
Não via, não
sorria. Quando parava numa esquina, as cavaqueiras dos vadios gelavam. Ao
afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta
centímetros, exatos, apesar de barrocas e degraus. A espinha não se curvava,
embora descesse ladeiras, as mãos e os braços executavam os movimentos
indispensáveis, as duas rugas horizontais da testa não se aprofundavam nem se
desfaziam.
Na sua
biblioteca digna e sábia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na
encadernação negra semelhante à do proprietário, empertigavam-se — e nenhum
ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso.
Dr. França
levantava-se às sete horas e recolhia-se à meia-noite, fizesse frio ou calor,
almoçava ao meio-dia e jantava às cinco, ouvia missa aos domingos, comungava de
seis em seis meses, pagava o aluguel da casa no dia 30 ou no dia 31,
entendia-se com a mulher, parcimonioso, na linguagem usada nas sentenças, linguagem
arrevesada e arcaica das ordenações. Nunca julgou oportuno modificar esses
hábitos salutares.
Não amou nem
odiou. Contudo exaltou a virtude, emanação das existências calmas, e condenou o
crime, infeliz consequência da paixão.
Se
atentássemos nas palavras emitidas por via oral, poderíamos afirmar que o dr.
França não pensava. Vistos os autos etc., perceberíamos entretanto que ele
pensava com alguma frequência. Apenas o pensamento de dr. França não seguia a
marcha dos pensamentos comuns. Operava, se não nos enganamos, deste modo:
“considerando isto, considerando isso, considerando aquilo, considerando ainda
mais isto, considerando porém aquilo, concluo”. Tudo se formulava em obediência
às regras — e era impossível qualquer desvio.
Dr. França
possuía um espírito, sem dúvida, espírito redigido com circunlóquios, dividido
em capítulos, títulos, artigos e parágrafos. E o que se distanciava desses
parágrafos, artigos, títulos e capítulos não o comovia, porque dr. França
estava livre dos tormentos da imaginação.
* * *
Pé-de-Molambo,
oficial de justiça, era uma criatura arrasada. Tinham-lhe posto no batismo
outra designação, que se juntara ao nome da família e emprestara ao homem um
pouco de valia. Mas com o correr do tempo isso foi esmorecendo. O pequeno
funcionário adoeceu, arriou, amarelou — e no fim da vida nasceram-lhe nas patas
copiosas perebas que se estenderam e avultaram, abriram sulcos na pele,
corromperam a carne, supuraram, sangraram, impossibilitaram o uso do calçado.
Entraparam-se as duas chagas, dos dedos aos tornozelos. Pé-de-Molambo.
Se o velho
tivesse guardado silêncio, a alcunha escorregaria nele sem deixar mossa.
Ofendeu-se, respondeu com desaforos e, em consequência, as pilhérias tomaram
feição agressiva, saíram do bilhar, da farmácia e da barbearia, desceram à rua,
transmitiram-se à molecoreba.
—
Pé-de-Molambo!
A condição
econômica do oficial da justiça era ruim, os filhos pesavam-lhe demais no
orçamento, as camisas esfiapavam-se, a comida minguava — e isto o reduzia muito
no conceito público.
—
Pé-de-Molambo!
O latido
contrafeito se esganiçava por detrás de uma janela. O desgraçado examinava os
arredores, tentava inutilmente localizar a injúria, xingava com desespero os
ascendentes de um sujeito invisível e desconhecido.
—
Pé-de-Molambo!
Outras vozes
se erguiam. A vítima aturdida virava-se para a direita, para a esquerda, não
achava no vocabulário canalha expressões suficientemente obscenas para
desafrontar-se. Foi declinando e perdeu os últimos vestígios de compostura.
Afinal já não tinham a precaução de ocultar-se para molestá-la: os garotos
berravam-lhe o insulto e safavam-se, iam gozar de longe a zanga excessiva.
—
Pé-de-Molambo!
Os olhos biliosos enchiam-se de raiva e lágrimas, o rosto enxofrado coloria-se de manchas vermelhas, a boca mole e desguarnecida espumava, o corpo alquebrado inchava como um peru, ameaçava rebentar as costuras da roupa suja e esgarçada, arrastava, bambo e trôpego, os dois chumaços escuros e sanguinolentos. Tremores agitavam aquela ruína, sacudiam as bambinelas do pescoço magro, os cabelos grisalhos que enfeitavam a pobre velhice desmoralizada.
*
* *
Um dia, à
porta da prefeitura, Pé-de-Molambo, no exercício das suas funções, repenicando
a sineta, esbaforia-se num pregão fanhoso:
— Está aberta
a sessão do júri.
A sala se
povoava. Agentes da lei perfilavam-se, armados. O réu sucumbia no tamborete.
Dr. França fiscalizava o promotor, o advogado, o escrivão, os juízes de Fato.
Está aberta a
sessão do júri, gemia o oficial de justiça na calçada, movendo a sineta. Quando
se manifestava pela terceira vez, o desastre se deu.
— Está aberta
a sessão...
—
Pé-de-Molambo! gritou perto um moleque sem-vergonha. Pé-de-Molambo despiu-se de
responsabilidades, retirou do
anúncio o nome
da instituição admirável, substituiu-o pelo de uma pessoa ausente, do sexo
feminino, que foi rudemente insultada:
— A sessão
da...
Uma praga
horrível estragou a cerimônia.
Rio de Janeiro, março de
1943.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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