DR. PELADO
Chamava-se
Raimundo Pelado, residia em Viçosa, interior de Alagoas, professava a medicina
e a poesia. Era um grande mulato risonho e fornido, de bela cor vermelha, mãos
rijas, dentes fortes e olhos vivos.
Tinha estudado
num seminário e largara a batina em véspera de ordenação, mas nunca foi
possível localizar direito esse estabelecimento. Os estudos eram indispensáveis
à publicidade literária do homem, publicidade que, feita por via oral, nas
esquinas e nos balcões, apresentava falhas, repetições e incongruências. Essa
história de ter vivido perto do altar não encerrava originalidade, pois no
começo do século, quando Raimundo Pelado floresceu, rábulas, palhaços e atores
de companhias vagabundas a utilizavam.
Não era aí que
se revelava a imaginação do poeta. Existiam na vida dele muitos casos
interessantes: viagens complicadas ao Rio, à Bahia, ao Recife. Tinha visto o
Imperador e outras figuras enormes, tinha tido uma discussão notável com certo
chefe de polícia de capital graúda. S.M. era pessoa muito simpática. E o chefe
de polícia ficara absolutamente arrasado, fato que provocava o espanto dos
caixeiros e dos fregueses, nas lojas.
Descendo
dessas alturas, Pelado metrificava redondilhas nos bordões e nas primas da
viola. É possível que soubesse ler, mas, se sabia, esta prenda nunca lhe
serviu. O seu estro se manifestava na linguagem falada, ou antes na linguagem
cantada, que Pelado era cantador, inimigo de Pacífico Pacato Cordeiro Manso,
natural de Quebrangulo e quase parnasiano.
Cordeiro Manso
pensava pouco e devagar. Redigia com dificuldade umas coisinhas meio certas e
horríveis, publicadas em folhetos magros, que Raimundo xingava em excesso, pois
desdenhava a letra de fôrma e confiava na memória dos homens.
Confiança
imerecida. Nenhum literato desocupado se lembrou de colecionar e guardar a
larga produção, bem razoável, do mulato de Viçosa. E a safra do adversário,
chinfrim, talvez ainda hoje exista, copiada e emendada.
Realmente era
no sonho que vivia o grande mulato. Quando o chefe de polícia quis saber o
ofício dele, Pelado respondeu:
— Cantar.
— Cantar?
Alguém se emprega em cantar?
— Sem dúvida.
É melhor que chorar.
Certamente não
houve pergunta, não houve resposta, não houve chefe de polícia, mas é como se
tivesse havido. Isso explica a natureza do homem. Vivia no sonho. E não podia
viver de sonho.
Se fosse
tuberculoso e miúdo, possuísse olhos fundos, sustentar-se-ia algum tempo com
gemidos e soluços. Infelizmente era corpulento demais — e não tinha jeito para
soluçar e gemer. Cantava, mas as suas cantigas, agudas, furavam a carne de
Pacífico Pacato Cordeiro Manso, poeta domesticado no alfabeto.
E como
sustentava mulher e filhos, robustos, Raimundo Pelado às vezes se ausentava da
poesia, entrava na vida ordinária e curava as doenças do próximo.
Na composição
de versos, como na de receitas, o que temos dele são notícias conservadas pela
tradição e certamente ampliadas. Arrumam-se aí a inteligência e a malícia duma
geração matuta, exatamente o que sucede com alguns gênios que houve no Rio em
fins do século passado. Não fizeram nada, não escreveram nada, mas deixaram
algumas anedotas insossas, que se contavam nos cafés da província, originando
gargalhadas, em 1910, e ainda se repetem.
Em momentos de
apuro Raimundo Pelado abandonava a cidade e, à frente de uma carga de remédios,
servido por arneiro submisso, entrava no sertão num cavalo esquipador,
importante, de botas altas, colarinho e gravata, roupa de cassineta, um
Chernoviz no bolso da carona. Abria esse volume encorpado em horas
convenientes, espiava as gravuras e a letra miúda, estirava o beiço, enrugava a
testa — e recebia a consideração dos matutos.
A sua fama se
alargava por muitas ribeiras. E na casa onde se hospedava ofereciam-lhe o
melhor quarto, matavam para ele a galinha mais gorda. Fazia-se anunciar nos
arredores e passava uma semana a combater padecimentos com xaropes em
garrafadas enormes, que inspiravam respeito à clientela e se vendiam bem.
Reduzidos os
males vizinhos, os seus negócios melhorados, ia percorrer outra zona, aliviar
novas macacoas e encher as algibeiras utilizando as gravuras do Chernoviz e as
garrafadas.
Regressava ao
cabo de seis meses, largava a ciência e dedicava-se inteiramente à sua ocupação
natural, a poesia.
Numa dessas
viagens dirigiu-se a uma fazenda, onde achou modos lúgubres no dono da casa,
olhos úmidos e rosto comprido. A fazendeira estava bamba, e desde a véspera um
médico andava a estudá-la.
— Ah! exclamou
o viajante alarmado. Que espécie de médico? Quando o outro apareceu, logo
serenou: percebeu nele um simples raizeiro, incapaz de assustar alguém. O
proprietário dava graças a Deus, que lhe mandava dois doutores tratar a mulher.
—
Perfeitamente, decidiu Pelado, dominando a situação. Vamos fazer uma
conferência. O colega já diagnosticou?
O outro não
entendeu e mudou de conversa. Jantaram e foram ver a doente.
— Examine,
colega, disse o curandeiro número um.
— Não, senhor,
respondeu Pelado, examine vossemecê, que chegou antes. Eu falo depois.
O sujeito
arregaçou as mangas, colocou a mulher em diversas posições, alisou-a,
machucou-a, desconjuntou-a, ficou uns minutos com o ouvido colado ao peito
dela, procurando batizar a doença. Tinha ouvido falar em trombose — e este nome
pareceu-lhe adequado. Ergueu-se, desarregaçou as mangas, franziu a cara e
opinou:
— Eu penso que
ela tem um trombone.
Pelado
encostou a orelha ao corpo da paciente. E, indeciso:
— Não sei não.
Se é trombone, deve estar tocando muito longe, porque não ouço nada.
Rio de Janeiro, julho de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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